Ontem, 21 de agosto, a capa do jornal O Globo estampava a seguinte manchete:
É uma reportagem fraca, que não se aprofunda no problema, e não oferece nenhum pensamento crítico ao leitor.
O Cafezinho então procurou a prata da casa, o nosso colunista Rogério Dultra, professor de Direito na UFF, especialista no tema da segurança pública e direito penal, além de doutor em ciência política, para dar sua opinião sobre o tema.
Dultra nos presenteou com uma aula, que partilhamos com vocês:
Cafezinho: Dultra, queríamos sua opinião sobre essa matéria do Globo, que foi capa do jornal desta segunda-feira.
Dultra:
1 – Em primeiro lugar, o homicídio não é um crime disfuncional ao capitalismo. Na modernidade política, a previsibilidade do sistema jurídico foi inicialmente mais prezada para garantir a estabilização de expectativas econômicas e financeiras do que a proteção dos indivíduos. Os crimes de sangue, antes combatidos pelo antigo regime na França, dão lugar à repressão mais ou menos organizada aos crimes contra o patrimônio. A estes crimes é que se volta a atividade repressiva por excelência.
2- Em segundo lugar, parte significativa dos homicídios no Brasil são estatisticamente cometidos por agentes do Estado (6%, segundo estudo do Ipea, com forte subnotificação. Brasil já chegou a ser condenado pela ONU por isso). Na origem, realizados pelas instituições repressivas e (não) investigados por elas próprias. E no seu desenrolar institucional, esses delitos ocorrem em afinidade e com a conivência do poder judiciário.
3- Em terceiro lugar, desde os governos Dilma, uma extensa, complexa e interinstitucional política de Direitos Humanos foi paulatinamente desprestigiada e desbaratada em prol do apoio institucional do Executivo a legislações e políticas repressivas, tendentes inclusive a privatizar o controle do processo penal e disponibilizar a barganha e a negociação quase que ilimitadas de fato para órgãos do judiciário, como o MP. Caso exemplar é o da legislação da delação premiada, obra diligentemente construída pelo então Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo.
4- Em quarto, existe uma profunda ignorância administrativa e de gestão do poder judiciário sobre o seu próprio funcionamento. Simplesmente não existe tratamento unificado de dados, estatísticas, relatórios fidedignos e sistemáticos sobre as decisões. O judiciário brasileiro é uma caixa preta para ele próprio. É isto é do absoluto interesse de um poder que quer se manter aristocrático, antidemocrático e pouco transparente.
5- Em quinto lugar. O legislativo nunca teve interesse em controlar o funcionamento do poder judiciário. Sempre operou para estender o seu arbítrio.
6- Os tribunais de Justiça em geral são controlados politicamente pelas facções estaduais dominantes, que organizam a atividade repressiva das polícias. Controlar homicídios significa limitar o poder dos governadores. É isto não é politicamente viável de acontecer nesses casos.
7- Em sétimo, como diz a reportagem, há preferência pelo processamento dos flagrantes. Mas isto significa de fato que é a polícia que pauta o judiciário e não o judiciário que controla a polícia.
8- Observações sobre as opiniões dos “juristas” da reportagem:
A) A “modernização” da legislação processual sugerida significa flexibilização de garantias processuais em detrimento daqueles réus que são os mais fragilizados economicamente e que não têm condições de defesa técnica.
B) O tribunal do júri não é o vilão que pintam. Se começar a haver barganha e delação premiada em homicídios, a ditadura do MP contra os cidadãos do país será sacramentada e passada em cartório.
C) Dar celeridade a julgamentos de homicídios é estimular a decisão judicial ser pautada pelos meios de comunicação, pela dita “opinião pública”. É isto é tudo menos justiça.
D) Não existe “escalada de violência”. O que existe é ampliação da atividade repressiva via privatização de processos e procedimentos: desde ampliação de contingente policial cada vez mais mal formado até a compra de viaturas, armas e construção de presídios. A capacidade de ampliação do sistema repressivo independe da criminalidade real porque é a repressão que cria criminalidade e não o contrário.
E) Aumento de produtividade no processo penal é antítese de devido processo legal. A questão do baixo processamento de homicídios pelo judiciário não é uma questão de produtividade, mas de prioridade e interesse político, institucional e ideologico, como dito acima.
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Obs: O item 2 deste artigo dizia que “os homicídios no Brasil são estatisticamente crimes cometidos em sua maioria por agentes do Estado”. A informação foi corrigida para “parte significativa dos crimes”, porque um estudo do IPEA informa que os agentes de Estado seriam responsáveis por 6% dos crimes, o que é um percentual bastante elevado, e inclusive foi o motivo pelo qual o Brasil já foi condenado pela ONU.