Uma senhora de 65 anos, Maria da Conceição Cerqueira da Silva, foi agredida com pedras na última sexta-feira em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Leiam o revoltante relato da reportagem do G1:
Migrante nordestina, Maria estabeleceu moradia em Nova Iguaçu há quatro décadas. Candomblecista, passou a sofrer constantes ataques verbais por parte da vizinhança, segundo afirmou a filha dela, a vendedora Eliane Nascimento da Silva, de 42 anos.
A vendedora contou que também recebe ofensas por conta de sua religião. Ao contrário da mãe, ela é umbandista, prática também de matriz africana.
“Eu engulo calada [as ofensas]. A minha mãe não, ela enfrenta. Ela tem sangue nordestino, é uma idosa, semianalfabeta, e acaba revidando as agressões verbais. Só que o que fizeram com ela dessa vez foi uma covardia”, ressaltou.
Segundo Eliane, nesta sexta a mãe passava pela rua quando ouviu uma vizinha, que reiteradamente lhe dirige ofensas, dizer “lá vem essa velha macumbeira. Hoje eu acabo com ela”. Maria foi tirar satisfações e a vizinha pegou uma pedra no chão e arremessou contra a idosa.
“Ela [a vizinha] estava com a filha pequena no colo. A menina começou a chorar porque não entendeu o motivo da mãe fazer aquilo. Minha mãe chegou em casa esvaindo em sangue e o meu pai, um senhor de 72 anos, ficou desesperado sem saber o que fazer”, contou Eliane.
Casos de agressão por intolerância religiosa são recorrentes no Brasil. Em 2015, uma menina de 11 anos também foi agredida com uma pedrada no RJ. No Estado do Rio, o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), criado em 2012, registrou 1.014 casos entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de religiões de matrizes africanas, segundo matéria da BBC.
A intolerância contra as religiões de matrizes africanas é, evidentemente, um dos refúgios do racismo. No mais recente caso de violência, relatado acima, juntou-se ao preconceito racial o preconceito contra os nordestinos.
Como o racismo escancarado não é mais aceitável socialmente, ele acaba migrando para comportamentos associados à população negra.
A recente tentativa de criminalização do funk, em projeto de lei apresentado no Congresso, é um exemplo. Em 2015 um projeto de lei apresentado na Assembleia dos Deputados gaúcha tentou proibir o sacrifício de animais em cultos de origem africana. O poder público, que deveria ter o papel de garantir a liberdade religiosa de todos os cidadãos, acaba, muitas vezes, sendo um agente propulsor da intolerância e da violência.
Para completar, alguns pastores de igrejas neopentecostais instigam o ódio ao associar a macumba com maldade, com o “demônio”, etc. Inclusive por meio de transmissões de cultos na TV aberta, em rede nacional (alô, Ministério Público)!
A origem da umbanda é retrato do pesado histórico racista do nosso país. A inclusão de elementos católicos na religião teve o objetivo de torná-la palatável aos senhores de escravos. A umbanda acabou abarcando um sincretismo religioso incrível, com elementos africanos, católicos e indígenas. É um belo exemplo de como as ricas e diferentes culturas que compõem o Brasil podem e devem conviver em paz.
Situações tristes e inaceitáveis como a agressão sofrida pela valente dona Maria são, portanto, reflexos do arraigado racismo brasileiro, que vem da nossa origem escravocrata não resolvida. Com a palavra, o sociólogo Jessé de Souza:
As pessoas são montadas, criadas, pelas instituições, e isso é fácil provar. E a instituição básica no Brasil foi a escravidão. Mas o Brasil nunca criticou a sua herança escravocrata. É importante repetir sobre isso porque se um povo não tem memória, ele não reflete sobre o que ele é, de que maneira que a história foi feita. Mas isso é feito com um sentido, para que a gente nunca saiba quem a gente é, quem manda na gente e de que modo manda.