Por Lia Bianchini, de Curitiba, exclusivo para o Cafezinho
“Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás”
Os versos são do diálogo final entre Severino e Seu José, personagens do célebre poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.
Com tais versos, o poeta narrava o fim do deslocamento de Severino, que saiu do sertão de Pernambuco em busca de uma vida melhor na capital do estado. O fim de seu trajeto marca também o encontro com a melancolia de uma esperança perdida e de um sonho prestes a afundar nas águas do mar pernambucano.
Severino, retirante, depois de todos os percalços de sua jornada, entende que, se na vida só há sofrimento, melhor seria mergulhar na imensidão do mar e ali morrer. O mestre carpina, por sua vez, tenta mostrar ao retirante que mais vale lutar para estar vivo do que ceder à inexistência. O poema termina com o impasse do diálogo inconcluso, mas com uma ação que sobrepõe a vida ao desejo de morte: o nascimento do filho de Seu José.
Os versos esperançosos de Seu José foram escolhidos pelo advogado Marcello Lavenère para começar a justificativa de seu voto a favor da condenação da operação Lava-Jato, no Tribunal Popular da Lava-Jato, que aconteceu na última sexta-feira (11), em Curitiba, no Paraná.
Lavenère utilizou a estória de Severino como alusão aos milhares de brasileiros e brasileiras cujas vidas têm sido impactadas pela insegurança política, jurídica e institucional que a operação Lava-Jato trouxe ao Brasil.
Para o advogado e ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, a Lava-Jato deve ser condenada, porque “não combate corrupção nenhuma e representa a destruição de um projeto de país soberano e sustentável”.
Voltando à figura do retirante Severino, Lavenère ponderou, ainda, que os 13 anos de governos petistas asseguraram “a democracia política no país, mas não conseguiram assegurar a democracia social”. Fato que se reflete, no atual momento pós-golpe, no aprofundamento do abismo social e nos retrocessos impostos pelas classes abastadas às classes pobres do país.
A justificativa do advogado foi complementar à exposição do acusador do processo no Tribunal Popular, o ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, que também evocou os aspectos classistas da operação Lava-Jato. “Não existe poder imparcial, assim como não existe controle de um Poder sobre outro. O poder é um só: ele não se separa e não se tripartida. O poder é de classe, ele representa os poderes de classe e se capilariza em todas as funções de Estado, quer no judiciário, legislativo, executivo. Em última análise, o poder de classe se esforça para manter as desigualdades entre classes”, explicou Aragão.
O ex-ministro afirmou também que, em uma sociedade de classes, todo poder é exercido pela classe dominante. No entanto, mesmo na democracia burguesa, existem mecanismos de controle que asseguram o funcionamento de um sistema de justiça igualitário, independente de classe social. Na atual conjuntura brasileira, porém, segundo Aragão, tais instrumentos falharam e “a justiça de classe se exibe com toda sua força e toda sua truculência”.
Ainda em sua argumentação, Aragão disse que o Poder Judiciário brasileiro foi tomado por “filhos da classe média”, que enxergam em seus cargos públicos uma via fácil de manutenção de seus privilégios. “Os filhos da classe média se apropriaram desse instrumento para concretização de seus interesses mais comezinhos”, afirmou.
O discurso do acusador foi rebatido por Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que fez papel de advogado de defesa da operação Lava-Jato no Tribunal Popular. Kakay fundamentou seu argumento na teoria de que a Lava-Jato teve início como um instrumento de defesa para a população brasileira, mas que foi tendo sua função desvirtuada, principalmente, pelo jogo midiático. Recheada de sarcasmo e ironias, a argumentação da defesa fez o público cair aos risos, mas não causou empatia ao júri popular, que decidiu, por unanimidade, condenar a operação Lava-Jato.
Avanço neoliberal na América Latina
Após a sentença do julgamento, o ex-ministro Eugênio Aragão conversou com o Cafezinho sobre o âmbito internacional da Lava-Jato e os interesses imperialistas que cercam a operação. Para Aragão, “existe um esforço estratégico de certos atores internacionais de modificar o status quo na América Latina”.
Os ataques à democracia brasileira e, mais recentemente, à venezuelana são um ofensiva norte-americana para desestabilizar os governos progressistas latino-americanos e minar as possibilidades de soberania desses povos. “A Lava-Jato é um dos sintomas dessa mudança de eixo político. Assim como o golpe, o corte de direitos, a desnacionalização das riquezas brasileiras, a quebra do parque industrial brasileiro, tudo isso faz parte desse plano neoliberal que está em curso na América Latina”, explicou Aragão.