(Marco Aurélio Garcia. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Marco Aurélio Garcia, que morreu hoje em São Paulo, é um dos símbolos da política externa exitosa dos governos petistas. Reproduzimos aqui, para homenageá-lo, uma de suas últimas análises (foi publicada no último dia 07), na qual versa sobre a diferença abismal entre as políticas que alçaram o Brasil a um patamar inédito no cenário mundial e as posturas desastrosas, apequenadas e submissas adotadas pelo governo ilegítimo de Temer.
Por Marco Aurélio Garcia, no Nocaute
Pode parecer estranho que no momento em que o governo do presidente Temer está derretendo, não sei se quando essa emissão for ao ar ele vai continuar presidente, eu queira dedicar a conversa de hoje a um tema aparentemente longínquo, o tema da política externa. Mas não é longínquo não. O tema da política externa tem uma importância muito grande, ele é um elemento constitutivo do país, não é só projeção do Brasil lá fora. E ele supõe duas coisas: primeiro lugar, que o Brasil, ou outro país qualquer, tenha o que exibir lá fora. E segundo lugar, que esse país também tenha uma boa análise da situação internacional e portanto possa estabelecer com clareza e com perfeição, se possível, qual o lugar que ele pretende pro seu país no mundo.
No governo do presidente Lula, no governo da presidenta Dilma, nós tínhamos algo a exibir. O governo teve os seus problemas, não resolveu todas as questões, mas nós tínhamos a exibir um país que crescia, um país que incluía socialmente grandes contingentes, dezenas de milhões de pessoas, que combatia a pobreza e a desigualdade, que eram as questões fundamentais que nós enfrentávamos. E por outro lado, nós tínhamos também realizado todo esse trabalho num quadro de preservação e de aprofundamento da democracia. A análise que nós fazíamos da situação internacional também era uma análise cuidadosa, aprofundada e que tendia a romper com certos paradigmas de submissão que haviam marcado os países da região e o Brasil entre eles nas últimas décadas. Nós precisávamos dar uma importância muito grande a unidade da América Latina e da América do Sul em particular. Buscar aproximarmos dos países do sul do mundo, dos países da Ásia, da África, sul aqui estou utilizando como um conceito fundamentalmente geopolítico, menos que um conceito geográfico, porque a Rússia, por exemplo, não é um país que esteja no sul do mundo e estava, no entanto, no marco das nossas alianças. Nós integrávamos com a Rússia, com a Índia, com a China e com a África do Sul, os BRICS. Sem hostilizar outros países, os países desenvolvidos, de maneira nenhuma.
Agora, nós acreditávamos que o mundo estava se reconstituindo e que a partir, sobretudo de 2009, com o advento dessa grande crise econômica, era de fundamental importância que nós pudéssemos constituir um bloco sólido no sul do mundo para enfrentar as grandes potências imperiais que eram a origem da crise, eram aqueles países que estavam tocando a economia mundial para baixo. Então a partir dessa análise, da necessidade de ter uma política multipolar, da necessidade de preservar a paz, de preservar valores como os direitos humanos, do meio ambiente, que nos levou inclusive ao acordo de Paris, é que nós construímos a nossa política externa. Qual é a situação que se estabeleceu depois do golpe parlamentar do ano passado, de 2016. Uma situação totalmente nova. Primeiro lugar, não tinha condições de exibir um país próspero, democrático, com viço, para o exterior. Não era mais aquele Brasil que o Obama dizia do nosso presidente: “esse é o cara”. Pelo contrário, nós tínhamos um governo de pessoas desqualificadas, depois, pouco a pouco, começaram a aparecer, inclusive, como um bando de ladrões.
Nós passamos a ter um governo sem mulheres, sem jovens, um governo que colecionava gafes, que representava tudo de pior que tinha no mundo político brasileiro. Quem viu no exterior, muitos viram e eu conversei com muita gente no exterior sobre aquela dramática sessão da Câmara dos deputados, quando se votou a autorização para processar a presidenta Dilma, saiu com uma impressão aterradora do Brasil. Não é possível que vocês tenham uma classe política desse nível tão baixo, tão rasteiro. Mas assim é. Então, nós não podemos apresentar muita coisa. É um país que não cresce, é um país que se aprofunda na crise, é um país mergulhado na corrupção, uma país que viola todos os dias a democracia e sobretudo é um governo que está plantando uma tragédia nesse país. Porque se essas reformas, eu chamo muito mais de contrarreformas, passarem, nós vamos ter nos próximos anos uma situação gravíssima. Nós vamos ficar reduzidos a uma republiqueta dessas de pior nível econômico e social.
Em segundo lugar houve um diagnóstico absolutamente equivocado da situação mundial, tratados de livre comércio, tratados de livre comércio era a grande bandeira. Como se nos não tivéssemos tentando e não tivemos nos dado conta que haviam obstáculos concretos para que esse tratados se fizessem. Mas o que nós vimos foi uma reversão dessa tendência. Vamos nos aproximar dos Estados Unidos porque o Lula e a Dilma eram antiamericanos. Não é verdade porque tivemos relações muito boas com os Estados Unidos. E ainda quando querem se aproximar dos Estados Unidos, o Trump não quer. O Trump se fecha, desenvolve uma política protecionista e as coisas ficam muito mais complicadas.
Recentemente num ato absurdo, porque isso teria consequências e terá, se manifestar-se efetivo, consequências dramáticas para economia brasileira, o Brasil pede ingresso na OCDS clube dos grandes países desenvolvidos. O que aconteceu? O Trump disse: não nós não queremos ampliar a OCDS, deixa estar. Então, nós não temos o que exibir e nós fizemos uma aliança ou uma avaliação, mais bem dito, uma avaliação da situação internacional, absolutamente equivocada. Isso tudo esta provocando um sentimento muito, muito negativo, não só naqueles quadros da administração pública brasileira que tem sentimento nacional, que tem responsabilidade, que tem tradição. Que estão comprometidos efetivamente no país, mas particularmente entre os próprios diplomatas. Eu tenho conversado muito com diplomatas brasileiros, estrangeiros e com analistas da cena diplomática e todos me dizem o seguinte: os diplomatas brasileiros andam de cabeça baixa, quase que se escondendo, porque têm vergonha de representar um país com esse quadro interno tão deteriorado e mais ainda, não tem condições de defender essa ausência de política externa que é muito mais uma política de submissão que nós estamos praticando na esfera internacional.
Durante o governo Lula e durante o governo Dilma nós fomos acusados, eu pessoalmente muitas vezes, de interferir no Itamaraty. Nunca exibiram um elemento, uma prova dessa interferência. Diziam que nós estávamos partidarizando, que nós tínhamos uma diplomacia paralela. E hoje o que nós verificamos é isso: há uma partidarização do Itamaraty. Não é por acaso que dois quadros políticos não diplomáticos foram mandados para esse Ministério, sem grandes resultados, muito pelo contrário. E mais grave: decisões de importância como o ingresso do Brasil na OCDE e o ingresso do Brasil no Clube de Paris que também traz problemas muito graves para nossa política Sul-Sul, estas duas decisões foram empurradas goela abaixo do Itamaraty. A nossa diplomacia não queria, na sua imensa maioria, não queria tomar essa decisão e considerou que isso foi uma imposição desses quadros jovens neoliberais que infestam, seja a equipe econômica e alguns estão plantados também na Casa Civil.
Então se eu falo essas coisas não é por um sentimento de oposição, eu sou oposição, evidentemente, mas eu falo muito mais para chamar a atenção para a gravidade do momento que nós estamos enfrentando e pra mostrar que é fundamental que a sociedade brasileira tenha a capacidade de reagir em torno de três questões essenciais: uma nova política econômica e uma política social que beneficie a imensa maioria e que não torre o futuro do país como vem acontecendo agora. Segundo lugar a preservação da emenda da democracia o que vai exigir evidentemente que nós tenhamos eleições diretas já. Que o senhor Temer vá embora, mas que não ponham outro Temer.