Prisões cautelares e perseguição judicial para lideranças de esquerda e proteção e blindagem para políticos da direita.
A gente já viu esse filme antes, né?
É o que está acontecendo com a Lava Jato no Peru.
A expansão da Lava Jato, patrocinada pela Procuradoria Geral da República do Brasil, começou a exportar a nossa instabilidade política e econômica para outros países.
A entrevista com o diretor de um site investigativo do Peru, feita por uma das editoras da Agência Pública, é muito interessante.
A gente vê o que aconteceu no Brasil ter início em outro país, com métodos muito parecidos: abuso de poder, excesso de prisão cautelar, uso político de delações.
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Prisão de Humala é abusiva e pode prejudicar a Lava Jato no Peru, diz jornalista
por Natalia Viana | 18 de julho de 2017
Diretor de site investigativo avalia que ex-presidente peruano corre o risco de ser bode expiatório
Na noite da última quinta-feira, 13 de julho, a atmosfera no centro de Lima, capital do Peru, estava estranha. Um cortejo de carros seguia rumo ao Tribunal Penal Nacional, onde o ex-presidente Ollanta Humala e sua esposa, Nadine Heredia, se entregaram para cumprir 18 meses de prisão preventiva por causa das investigações da Lava Jato no Peru. Nos bares, todos estavam vidrados na televisão, que trazia plantões de notícia; alguns aplaudiam, outros davam de ombro, outros, ainda, balançavam a cabeça lamentando a prisão do líder de esquerda.
Por decisão do juiz Richar Concepción, Humala foi o primeiro ex-presidente a ser preso na investigação da Lava Jato no continente. Porém, sua prisão pode ser uma “nuvem de fumaça” para proteger outros políticos mais poderosos e também implicados pela delação de Marcelo Odebrecht, como o ex-presidente Alan García e a candidata derrotada na última eleição Keiko Fujimori, filha do ditador que comandou o país entre 1990 e 2000. Essa é a opinião de Gustavo Gorriti, principal jornalista investigativo do Peru e diretor da organização sem fins lucrativos IDL-Reporteros.
Dedicado a investigar corrupção no seu país há décadas e debruçado sobre a Lava Jato desde 2015, Gorriti recebeu a reportagem dois dias depois, em Lima, para uma entrevista na qual esmiúça a inação do poder judiciário peruano, o papel dos sites de jornalismo independente e os interesses e intrigas por trás da prisão. Ele caracteriza o procurador que pediu o encarceramento, Germán Juárez, como “alguém que ataca raivosamente uma pessoa e se faz de bobo, esquece e faz todo o possível para não investigar outras pessoas”. E adverte que houve abuso de poder na detenção. “Se você contamina uma investigação legítima com um abuso de autoridade, faz um enorme dano e pode acabar com ela”, diz.
Ollanta Humala foi o primeiro ex-presidente a ser preso na investigação da Lava Jato no continente (Foto: Presidência do Peru)
Qual a sua opinião sobre a prisão de Ollanta Humala?
Contrariamente ao que parece à primeira vista, não é um avanço positivo para as investigações contra a corrupção, mas pode ser um retrocesso. De acordo com as nossas leis, só se pode fazer uma prisão preventiva se a pessoa representar um perigo para o processo: se existe possibilidade de fuga, de alterar, esconder, destruir as provas, ou se há uma possibilidade de intimidar, comprar, subornar ou eliminar testemunhas. O procurador deveria ter apresentado provas, e o juiz deveria tê-las avaliado. Mas nem a apresentação do procurador nem a avaliação do juiz têm muita lógica.
Primeiramente em relação ao risco de fuga: entre todos os que estão sendo investigados, Ollanta Humala e a sua esposa são os que estiveram aqui no Peru todo o tempo. Quando ela foi nomeada alta funcionária da FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] na Suíça, isso foi uma tormenta aqui. Mas quando o juiz ligou, ela voltou no dia e na hora que haviam pedido. O fato de que as filhas, que não tinham nenhum impedimento para sair do país, tenham ido com a avó aos Estados Unidos foi apresentado como uma prova de preparação de fuga. E os procuradores foram à escola das filhas. Passaram de todos os limites. Foi um abuso grosseiro.
Em relação aos testemunhos, apontaram alguns áudios antigos do caso de “Madre Mía”, um caso de violação de direitos humanos no qual se acusa Humala de haver tentado comprar testemunhas. Mas esse é um caso que foi julgado na Corte Suprema e está arquivado. E, sobre a possibilidade de destruir as provas, estão falando de provas que não são destrutíveis, porque se sabe onde se encontram e como processá-las. E Humala não pode fazer nada porque ele é a pessoa com menos poder que existe no Peru neste momento. Creio que um sorveteiro tem mais poder do que Humala. E esse é um dos problemas de fundo.
Como se chegou a essa prisão?
Uma das acusações fundamentais contra Ollanta Humala é ter recebido US$ 3 milhões de caixa 2 da Odebrecht nas eleições de 2011, quando não era presidente. Ele nega. Então, o procurador Germán Juárez foi para Curitiba, e tomaram o depoimento de Marcelo Odebrecht seguindo as leis brasileiras. Antes, tiveram de publicar uma ata de imunidade, onde diziam que não se podia processar ninguém da Odebrecht nem da Braskem no Peru usando os elementos que Marcelo daria.
Assinaram. Fazem perguntas sobre Ollanta Humala, e Marcelo começa a falar muito mais do que eles queriam escutar. Por exemplo, lhes disse que Antônio Palocci pediu em 2011 que tirasse US$ 3 milhões da conta do PT para Ollanta Humala. Ele diz que chamou o superintendente da Odebrecht Jorge Barata, mas este ficou muito descontente porque não gostava nada de Humala, porque o via como um esquerdista, um chavista. E dizia que todos os seus amigos empresários – naquele momento ele era um dos empresários mais importantes do Peru – iam ficar contra ele. Então, segundo Marcelo, esse lhe disse: “Olha, Barata, eu te entendo, mas isso não é uma coisa sua, é uma coisa que pediram para mim. Ou seja, você faz isso, mas é por minha conta”. Até aí os procuradores estavam felizes. Mas ele disse: “Agora, Barata, se você está descontente com Humala e pensa que pode haver represálias contra você, dá mais a Keiko”, que era a outra candidata. Ele ainda disse que a Odebrecht sempre apoiava todos os candidatos. No caso do Peru, ele diz ter certeza de que apoiaram a Keiko e o partido de Alan García. Sobre as quantias, ele disse que deveriam perguntar a Barata. Quando indagados se tinham mais perguntas, os procuradores peruanos não quiseram saber nada mais.
Como essa informação veio à tona?
Eu escrevi naquela mesma noite sobre isso. Já tinha uma boa ideia do que tinha se passado depois de ter falado com algumas fontes. No dia seguinte, a minha reportagem causou um furor, e na tarde desse dia a Procuradoria peruana emitiu um comunicado lamentando algumas versões jornalísticas que faltam com a verdade. Ou seja, dizendo que eu sou um mentiroso. Isso fez com que à noite houvesse um ataque tão furibundo, uma campanha contra mim. Aí me dei conta de que o Ministério Público estava obviamente encobrindo. Depois nós conseguimos a informação de uma nota de Marcelo Odebrecht capturada pela PF que dizia “Aumentar Keiko para 500 e eu fazer visita”. E publicamos o fac-símile em junho. Daí o Ministério Público publicou outro comunicado dizendo que eles não têm isso no seu expediente. Ao que eu respondi que isso não prova que a nota não existe, mas que eles são incompetentes e idiotas.
Mas você publicou o depoimento completo do Marcelo, ao final?
Claro. Mas descobri outra coisa antes. Esse procurador, Germán Juárez, chegou ao Peru e pediu para embargar contas, incluindo as de Barata, e assim faltou com o compromisso que tinha assinado no Brasil. Quando acontece isso, Barata diz que não vai mais colaborar. E Germán Juárez diz que está de acordo, pois não quer mais interrogá-lo. Isso foi para não ter de perguntar , conforme o que disse o Odebrecht, quanto deu a Keiko e onde, e somente concentrar tudo em Humala. Eu, depois, consegui o depoimento completo e a publiquei inteirinho.
Nessas circunstâncias se apresenta a prisão de Humala, como se ele fosse a única coisa ruim, o único corrupto que houve, e como se esse pobre homem fosse o maior perigo para a nação.
Por que você acha que o Ministério Público está protegendo Alan García e Keiko Fujimori?
É uma questão indireta. Aqui a Lava Jato é maior que a Odebrecht, embora aqui gostem de dizer que foi apenas a Odebrecht. Mas há muitas empresas brasileiras e muitas empresas peruanas envolvidas. E isso é uma coisa que estão tentando jogar para debaixo do tapete. Quem está envolvido aqui são os ex-presidentes Alejandro Toledo, Alan García, Ollanta Humala, sem nenhuma dúvida. E também, um pouco antes, houve o Alberto Fujimori. As pessoas esquecem que durante a época de Fujimori a Odebrecht assinou mais contratos em termos numéricos – não de volume de dinheiro – do que em qualquer outro período. O caso está muito mais avançado contra dois ex-presidentes: Toledo e Humala. Qual a diferença em relação aos outros dois? O poder que Humala tem no momento é zero. Sua capacidade de intimidação, que é um fator muito real na política latino-americana, é também zero. Já García, apesar de ter tido um desastre eleitoral, tem poder, tem um partido forte, e há muita gente sua no poder judiciário e no Ministério Público, que, postos ali durante seus governos, fizeram carreira e obviamente vão favorecê-lo. Fujimori tem 72 congressistas neste momento, tem a maioria do Congresso; se eles quiserem, poderão destituir o procurador-geral da nação de um dia para outro. Os procuradores têm terror disso.
Há outra coisa importante: toda informação que tem o nosso Ministério Público é o que chegou do Brasil. Agora, a delação do Odebrecht foi muito extensa sobre o Brasil, mas muito limitada em relação ao resto da América Latina. A principal fonte de informação foi Barata, que, está claro, detesta Omalla, detesta Toledo. Todas as suas informações foram sobre os dois, não há nada sobre García, que era seu grande amigo. E sobre Fujimori também poderia haver mais.
Para Gorriti, o ex-presidente Alan García está sendo protegido pelo Ministério Público peruano (Foto: Carlos Lezama/ANDINA)
Então não houve grandes investigações do Ministério Público daqui?
Não. Os procuradores são seletivos, lentos. No Brasil, demonstraram que tudo deve ser público para que os jornalistas vão atrás disso. E agora há uma guerra feroz no Ministério Público entre o procurador anticorrupção Hamilton Castro, que é quem conduz fundamentalmente o caso da Lava Jato, e este Germán Juárez Atoche, que cuida de casos de lavagem de dinheiro. Bom, já contei como trabalha Juárez Atoche. E o Hamilton avança na velocidade de lesmas que estivessem praticando tai chi chuan.
Em junho do ano passado, o deputado independente Juan Pari teve de assinar sozinho o relatório sobre o “caso Lava Jato” no Congresso, depois que a comissão parlamentar de investigação foi esvaziada. O que mudou desde então?
Nós não permitimos que o assunto morresse. Como resultado disso, em primeiro lugar se criou uma rede de jornalistas investigativos e, em segundo, conseguimos informações muito boas, que não vieram do Ministério Público, mas nós mesmos conseguimos. E devem vir muito mais. Conseguimos mover a opinião pública, certamente. Quando eu estou nas ruas, as pessoas me abraçam e dizem “continue fazendo isso”.
Antes havia certa inatividade dos veículos tradicionais?
Claro que sim.
O que mudou?
Eles tiveram de mudar porque obviamente nós, o jornalismo sem fins lucrativos, estivemos na dianteira. Além de IDL-Reporteros, há o Convoca e o Ojo Público, que se meteram também no baile. Mas isso veio do jornalismo sem fins lucrativos. Os outros jornalistas, os sites que cobram a Justiça, publicam coisas, mas sempre tendo como fonte o Ministério Público.
De maneira mais geral, como funciona a corrupção no Peru?
Igualzinho ao Brasil.
Quando se escuta a cobertura das investigações pela imprensa peruana, parece que apenas a Odebrecht era corrupta…
Não, não. Esse é um dos problemas. A corrupção nos nossos países é tão velha que tem uma grande capacidade de sobreviver. Neste caso, no Peru e em boa parte dos países da América Latina, estão colocando todo o foco na Odebrecht. Aqui no Peru, não se diz “o caso Lava Jato”, mas “o caso Odebrecht”. Então, estão buscando criar um nível tão grande de indignação contra Odebrecht para que seja algo como “vamos matar a besta”. E encapsular tudo na Odebrecht faz um auto de fé, coloca na fogueira os que confessaram tudo, dançar ao redor da fogueira. E ao final, dado que a única coisa que há para investigar é a informação que vem da Odebrecht, está muito claro: se você confessa, vai para a fogueira. Se se cala, sobrevive.
Quem são os sócios peruanos da Odebrecht?
Em um caso, era o Grupo Graña y Montero, a JJ Camet, são os principais. Claro que disseram que são inocentes. Mas existem atas que mostram que eles abriam mão do lucro para pagar à Odebrecht o que a Odebrecht pagou em seu nome. As atas dizem que reconhecem os esforços extraordinários realizados pela Odebrecht para conseguir o fim esperado, e por isso ela merecia uma participação especialmente grande nos lucros. É o tanto que ela teria que pelos subornos e mais o que a Odebrecht cobrava pelas comissões e os mecanismos de pagamento, suas offshores pelo mundo.
“Quando há um caso escandaloso, agarram alguém para atirar no fogo”, diz Gustavo Gorriti (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)
E essas empresas peruanas estão sendo investigadas?
Não. A Graña y Montero está muito assustada porque era uma companhia pública e agora tem coisas no exterior, em Nova York; então a Comissão de Títulos e Câmbio e o Departamento de Justiça devem estar fazendo perguntas. Também nos interessa muito a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez, que possivelmente sabem mais sobre o período de Toledo.
A Odebrecht chegou ao Brasil nos anos 1980… Qual era o real papel da Odebrecht na corrupção no Peru?
Primeiro, este país não era Shangri-la. Eles não chegaram a um país limpinho, alheio à corrupção. A única coisa que fizeram é que competiram eficazmente, a organizavam melhor, sobretudo nas obras de construção de infraestrutura. E ganharam dos outros. Mas nunca trabalharam sozinhos, sempre trabalharam em cartel. E isso se expressava em cada obra em um consórcio diferente, com eles quase sempre como um fator dominante, assim como no Brasil. Mas há muitas outras transações corruptas. A grande vantagem é que essas foram grandes, centralizadas, organizadas ao longo de muitos anos, o que é uma grande coisa para o jornalismo investigativo, porque permite solucionar muitas coisas e chegar a muitas pessoas. Se os investigadores fossem realmente bons, chegariam a partir desse caso a muitos outros. E poderiam chegar ao que eu vejo que é um projeto no Brasil e aqui é ainda um sonho: demonstrar que há um custo tão alto na corrupção que ela já não vale a pena.
O que vai acontecer com Ollanta Humala?
É difícil dizer porque essa mobilização, parte espontânea e parte muito dirigida, para linchá-lo vai continuar. Eu já disse que me pareceu um excesso, é um insulto à inteligência. Eu penso que isso traz um dano à investigação. Quando se está cometendo um abuso contra alguém que está legitimamente investigado, dá a entender que se busca um castigo através de trapaça. Acho que foi uma prisão preventiva injusta, que não deveria ter ocorrido, e espero que a instância superior os ponha em liberdade. Creio que Humala tem de ser investigado. E é muito provável que, assim que a investigação terminar, ele deverá entrar legitimamente na cadeia, mas não assim, não dessa maneira. Se você contamina uma investigação legítima com um abuso de poder, um abuso de autoridade, faz um enorme dano, pode acabar com ela. O procurador que fez a prisão… ele fez coisas que eu não posso interpretar senão como conscientemente dirigidas a excluir do mesmo tipo de investigação Keiko Fujimori e possivelmente a Alan García. É alguém que ataca raivosamente uma pessoa e se faz de bobo, esquece e faz todo o possível para não investigar outras pessoas. É uma técnica que já utilizaram por aqui. Quando há um caso escandaloso, agarram alguém para atirar no fogo: “Esse é o culpado de tudo”. Depois se esquecem as coisas. E volta tudo a ser o que era antes. Esse é o grande perigo.