É um tanto perturbador assistir a cúpula judicial brasileira, desde o ano passado, prestando conta de suas ações ao Instituto Woodrow Wilson Center, um think tank fortemente vinculado à Casa Branca e aos serviços de informação do país.
Perturbador, porém, ilustrativo.
O historiador que estudar o golpe de 2016, precisa estar atento à série de palestras organizadas pelo Brazil Institute, um sub-think tank do Wilson, criado para estudar o maior país da América Latina. A série começou em 2016 e vai até o fim desse ano.
Ele precisa estudar uma iniciativa do Wilson de 2011, chamada Judicial Dialogues, Diálogos do Judiciário, que visava aproximar os dois sistema judiciais. O esforço, naturalmente, e que foi bem sucedido, era tentar atrair o judiciário brasileiro para a esfera de influência dos Estados Unidos. Afinal, não são os juízes e procuradores americanos que vem ao Brasil falar de suas experiências, tampouco estudar o sistema legal brasileiro. O movimento sempre foi unilateral: juízes e procuradores brasileiros indo aos EUA, muitas vezes ganhando bolsas, como foi o caso de Sergio Moro, para estudar o sistema legal americano.
O documento que explica a iniciativa desses “Diálogos Judiciais” deixa bem claro a fascínio do Wilson pelo julgamento do mensalão feito pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os estrategistas do Wilson provavelmente perceberam que estava em curso, no Brasil, uma transferência de poder da esfera política para a esfera judicial.
A iniciativa do Wilson visava os juízes brasileiros. Houve um esforço deliberado para ampliar a influência norte-americana sobre judiciário do nosso país.
Pulemos alguns anos e vamos a 2016. Neste ínterim, o Brasil importou, dos Estados Unidos, o instituto da colaboração premiada (plea bargain). A mudança já tinha começado em 2003, mas tornou-se oficial e consolidou-se, através de uma nova lei, sancionada por Dilma Rousseff, a partir do final de 2013, após as “jornadas de junho”.
Na palestra que deu hoje, 17 de julho, no Wilson, o procurador-geral da república, Rodrigo Janot, admitiu que o instituto da colaboração premiada é uma peça do direito anglo-saxão enxertado num arcabouço jurídico de tipo germânico, como é o nosso.
O tema da palestra de hoje era justamente a delação premiada.
Paulo Sotero, diretor do Brazil Institute, fez uma introdução algo sinistra, a meu ver, ao afirmar, em nome da instituição, que o Brasil era uma “democracia” e um “grande exemplo para o mundo de como construir uma democracia estável”.
A razão do entusiasmo declarado dos membros do Instituto Wilson com o Brasil certamente não são as nossas instituições políticas, mas sim o judiciário.
Em julho de 2016, Sergio Moro foi o primeiro ou um dos primeiros juízes a participarem da série de palestras organizadas pelo Wilson Center com o tema “Estado de Direito”. A palestra de Moro pode ser assistida neste link.
Em seguida, o Wilson trouxe vários ministros da corte suprema do Brasil. Havia sempre a preocupação, por parte do diretor do Brazil Institute, de deixar bem claro a satisfação do Wilson com o andamento dos processos judiciais em curso no Brasil.
O diretor do Brazil Institute, Paulo Sotero, publicou artigo em setembro de 2016, no site do próprio Wilson, que não deixa dúvida sobre sua posição em favor do impeachment.
No debate realizado nesta segunda-feira 17, o Wilson convidou um juiz federal americano, Peter Messitte, para fazer algumas comparações entre o instituto da colaboração premiada nos dois países.
Grande entusiasta da operação Lava Jato, Messitte costuma afirmar que a operação conduzida pelo juiz Sergio Moro é um “exemplo para o mundo”.
Massitte conheceu o Brasil ao final dos anos 60, mais exatamente entre 1966 e 1968, quando veio para São Paulo como membro dos famigerados Peace Corps, uma organização bancada pelo governo americano que, segundo estudiosos, operava no Brasil desde 1962 com objetivo explícito de remover o presidente João Goulart de seu cargo.
A carreira de Massitte como juiz começa tarde, aos 53 anos, quando foi indicado por Bill Clinton, em 1993.
Essa diferença básica entre os sistemas penais brasileiro e americano raramente é debatida no Brasil: nos EUA, juízes não são “concursados”. Eles são nomeados diretamente pelo presidente da república. Coisa de ditadura bolivariana.
Também na mesa, ao lado de Janot, estava o homem forte do Brazil Institute (o brasileiro Paulo Sotero é só um empregado), o embaixador Anthony Harrington, que foi embaixador no Brasil de 1999 e 2001 e, segundo sua ficha no site do próprio Wilson, ocupa uma posição de destaque na comunidade de inteligência dos Estados Unidos.
Harrington trabalhou, por alguns anos, como um dos advogados da poderosa Hogan Lovells, uma das maiores companhias de lobby dos Estados Unidos e do mundo, e que abriu seu primeiro escritório no Brasil em julho de 2013.
Após as apresentações, Janot deu início à sua conferência. O procurador geral fez um histórico da introdução do instituto da colaboração (ou delação) premiada no Brasil. Tentando demonstrar moderação e, sobretudo, para responder aos críticos da delação premiada no Brasil, Janot mencionou o caso Enzo Tortora, um apresentador de tv italiano que, apesar de inocente, foi “delatado” por vários agentes da máfia.
Modéstia à parte, o primeiro a falar em Enzo Tortora, no Brasil, foi o Cafezinho, com a publicação, ao final de 2014, de um longo artigo sobre os “perigos da delação premiada”. Fazendo uma pesquisa no Google, não se encontra nenhum outra menção, na internet brasileira, anterior à publicação do meu artigo.
Janot afirmou, com muita convicção, que a lei que regula a delação premiada no Brasil determina que a colaboração precisa ser espontânea e voluntária. Em seguida, rebateu as acusações de que a Lava Jato utilizaria prisões cautelares como uma maneira de forçar os presos a colaborarem. Apresentou um gráfico, com o qual Sergio Moro também andou desfilando, segundo o qual 85% dos réus da Lava Jato que optaram em fazer delação premiada, fizeram-no fora da cadeia, enquanto aguardavam o processo em liberdade.
Essa é uma das falácias da Lava Jato. Não sei se a estatística é correta, mas todos assistiram ao festival de prisões cautelares, feitas com um espetáculo midiático assombroso, e que se estenderam por meses ou mesmo anos a fio. A falácia consiste em contabilizar os peixinhos, cujas delações não interessaram a ninguém, omitindo que os principais delatores tomaram a decisão enquanto estavam presos. Ou então uma falácia maior: pode até haver alguém que decidiu colaborar estando em liberdade, mas só foi posto em liberdade após deixar claro que estava disposto a se beneficiar da delação premiada. Ou seja, ficou preso um tempão, numa das prisões políticas da Globo, e só quando seus advogados deixaram claro para o juiz Sergio Moro e procuradores, de que o fulano tinha tomado a decisão de delatar, é que foram soltos. E aí, soltos, mas aterrorizados com a possibilidade de voltar à prisão, decidiram delatar.
A comparação de Janot me lembrou uma imagem. É como se um torturador dissesse que 85% dos delatores tomaram a decisão de delatar enquanto estavam sentados numa cadeira e tranquilos, fumando um cigarro, comendo um lanche de melhor qualidade oferecido pela polícia. Ele omite que, antes do delator ficar naquela posição, ele havia sido torturado por dias a fio.
Foi triste ver o juiz americano olhar para aqueles gráficos com um sorriso de satisfação, pois eles lhe asseguravam que a operação da qual ele é tão entusiasta, é, além de tudo, humana e respeitadora das garantias individuais.
Não tinha ninguém no debate para apresentar um outro ponto-de-vista. Não esqueçamos de que Luigi Ferrajoli, um jurista respeitado, autor de clássicos, além de um estudioso da política do Brasil e da Itália, chamou a Lava Jato de um processo ilegítimo, que lhe lembrava a Inquisição.
Entretanto, o próprio Janot deixa bem claro que o instituto de colaboração premiada, conforme usado no Brasil, representa uma insuportável escravidão do réu diante do Estado. O réu que fez um acordo com o MP se torna uma espécie de morto-vivo, cujas palavras e ações serão, a partir daquele momento, por anos a fio, julgadas pelo MP. Se o MP entender que o réu não está mais sendo “pro-ativo”, então o acordo pode ser cancelado.
Janot explicou ainda que uma das consequências da importação da delação premiada para o sistema penal brasileiro foi a sua “exportação” para outros países. Como o MP não tem jurisdição para punir empresas brasileiras em outros territórios, o MP usou trechos de acordos internacionais para inovar, e entregar informações sobre nossas empresas aos ministérios públicos de outros países.
Esse trecho não foi motivo de debate, talvez porque os americanos dificilmente entenderiam que o governo (eles tratam o sistema de justiça como integrante do “governo”) trabalhasse deliberadamente para destruir empresas que geram empregos e divisas para o Brasil.
O procurador-geral empolgou-se e disse que a corrupção não era apenas um problema do Brasil, mas sim um problema regional, ou seja, dos nossos vizinhos latinos e nossos amigos da África. É um tanto curioso – e alarmante – Janot se arvorar em paladino da luta contra corrupção em outros países. Janot trata os países como vítimas e as empresas brasileiras como agressoras, que “prejudicaram” esses países com suas propinas. O viralatismo, a antipolítica, a cultura antinacional de Janot e do MP como um todo, sempre me surpreendem.
Janot disse que a Lava Jato começou a se desenvolver em outros países de maneira muito parecida com que age no Brasil. Vimos que isso é verdade. No Peru, o ex-presidente Ollanta Humala acaba de ser preso, através de uma medida cautelar que prevê regime fechado de 18 meses, para ele e sua esposa. Prisão cautelar de 18 meses!
O procurador disse não se arrepender da denúncia que fez contra Michel Temer. Segundo ele, faria uma segunda ou terceira vez, se fosse o caso.
Mas desconversou quando alguns repórteres lhe apertaram para saber o que ele achava de um eventual perdão político no congresso. Foi o único ponto em que Janot se permitiu um pouco de ousadia. Os dois primeiros repórteres a quem foi dado o direito de perguntar eram da Globo. Os dois se posicionaram, de maneira muito agressiva, em favor da acusação.
Segundo Janot, o sistema judicial e prisional brasileiro precisam ser oxigenados e simplificados, e a solução seria ampliar o “acordo penal”, um conceito ao qual ele diz aderir com “entusiasmo”.
Ao final da palestra, Janot quis comparar um ponto da realidade italiana com a brasileira e disse uma besteira típica de burocratas desprovidos de sensibilidade democrática.
Janot explicou que o novo tipo de corrupção que as organizações criminosas estão desenvolvendo não é mais corromper um político diretamente.
“O sujeito chega para o político e pergunta: quantos votos o senhor precisa em tal região? 700 mil votos? Deixa com a gente”.
Daí o mafioso, depois de conseguir os “700 mil votos” senta-se à mesa com o político, para conversarem…
Ora, Janot fala como se fosse fácil conseguir 700 mil votos… Essa mentalidade é que está fazendo o nosso judiciário derrubar prefeitos, governadores e presidentes como quem troca de roupa.
O próximo a bater ponto na matriz da Casa Grande é o ministro da Justiça, Torquato Jardim, cuja palestra foi agendada ainda para esta semana, no dia 19 de julho.
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