Sobre comportamentos técnicos de heróis e políticos de “inimigos do Brasil”
Por Eugênio Aragão
Até há pouco era assim: criticar a Lava-Jato era atitude política, participar do golpe fingindo que as instituições estavam a funcionar era técnico. Agora, é difícil definir se ter náuseas e ânsia de vômito é técnico ou político. O momento é oportuno para produzir clareza sobre a obtusidade dessa ideológica distinção entre o técnico e o político. É evidente que o primeiro se subordina ao segundo e acaba tudo por ser político.
O Ministério Público Federal gosta muito desse jogo de palavras. Recentemente, em entrevista ao “Estado de São Paulo”, seu chefe foi incisivo: “os que querem frear a Lava Jato são inimigos do Brasil”. E concluiu com a pérola: “…não concordo que existam abusos por parte do Ministério Público. Temos como ponto basilar da atuação a observância à Constituição Federal e nos pautamos por ela. Nossa atuação é técnica, apolítica e responsável”. Tive que ouvir bobagem similar quando, há mais de ano, despedi-me da amizade de Janot. Mas o tempo não era de risadas. Mais recentemente ouvi essa mesma troça de seu assistente, o importador xinguelingue da teoria do domínio do fato que foi desmentido por Claus Roxin, o criador da teoria.
Agora dá vontade de apor um “smiley” de gargalhada. Argumentar nunca foi o forte de Rodrigo e nem de seu entourage. O chefe prefere se gabar, deblaterar, xingar ou fazer piada. E o entorno aplaude. Ao agasalhar esse velho bordão da atuação técnica que distinguiria os membros “patrióticos” do MPF dos “inimigos” do outro lado, o PGR ou é tolinho ou acha que nós o somos.
O direito é um instrumento de legitimação de decisões. Nem o instrumento e nem a legitimação em si seguem regras objetivas que correspondam a esforço de precisão lógica. Decisões não são redutíveis a cálculos sentenciais sem graves problemas de consistência.
Toda tomada de decisão jurídica comporta dois ou mais caminhos de legitimação, que, de regra, são contraditórios. Simplificando, pode-se dizer que um juiz tem que optar entre a tese do autor e a do réu. Tem a sua disposição um espectro relativamente largo de alternativas, sempre dentro desse intervalo. Todas são juridicamente igualmente sustentáveis (e, portanto, ao ver dos juristas “legítimas”), mesmo que fundamentem pretensões opostas. Dizer que o réu ou o autor tem razão não é um resultado inexorável, com precisão da conclusão de um silogismo em Bar-ba-ra! É resultado de uma escolha que corresponde melhor às convicções subjetivas do julgador. No fundo, para tudo ficar como está. A única coisa que o juiz é obrigado a fazer é motivar essa escolha, de modo que possa ao menos ser criticada e contestada e, com isso, ganhar um brilhozinho de falsa falseabilidade.
A “técnica” não está na opção, que, quase sempre, é a priori e política, mas na motivação. Esta trata de travestir de “exato” um conteúdo que nada tem de exato. Oferece à opção a aparência de um resultado científico. É só casca, não é essência. É um acessório apenas e, como tal, tem a mesma natureza do principal. É um instrumento da política.
E quando operadores perdem a paciência, seja por náuseas, seja porque o bambu para fabricar flechas está acabando, não coram ao mandarem a técnica para aquele lugar. Fazem hashtags nos seus perfis de Facebook, lembrando que #2018tachegando e tornam públicas gravação de Geddel Vieira Lima a chorar para humilhá-lo. Fazem seus troféus humanos desfilarem algemamos, de Baraço e pregão pelas ruas da vila. Anunciam à “IstoÉ” a sentença condenatória contra Lula e dizem que delações contra o PSDB não vêm ao caso. Fazem estardalhaço com diálogo ilicitamente captado entre Dona Marisa e Fábio, recheado de linguagem coloquial, só para refratar a imagem da primeira dama que foi. E depois dizem que sentem náuseas…
Não é sua “técnica” que faz esses energúmenos melhores. Ledo engano. A técnica somente lhes penteia a vaidade. E olha que às vezes penso (só penso) que alguns deles estudaram no exterior não foi direito, mas culinária, tamanha a gula pelo poder.
Não quero afirmar aqui que a técnica só é engodo. É, na verdade, como uma chave de fenda. Serve para apertar parafusos ou para estocar alguém num acesso de raiva. Depende como a manuseamos, com que índole, com que objetivo político. Se a usarmos para abraçar e acolher os filhos pródigos que à casa do Pai retornam, está valendo! Se for para castigar, maltratar, expor e arruinar a esmo e, com isso, se exaltar com inexistentes virtudes a si mesmo atribuídas, passa a ser uma arapuca “satânica” (ou será diabólica, que nem a prova impossível, Senhor PGR?).
Uma boa técnica usada por um operador politicamente consciente enaltece a Justiça. Legitima a decisão, porque lhe oferecerá a roupagem em que todos se espelham. Mas isso não funciona com quem a usa orgulhosamente apenas para se distinguir daqueles que, sem moral, desqualifica, para lograr apoio de uma sociedade doente pelo ódio disseminado por instituições e mídia deformadas. Esse é apenas o caminho mais seguro para desacreditar o direito e seus profissionais, procuradores lavajateiros ou não. E aí não adiantam as mais pontudas flechas de bambu. Não serão elas que redimirão os vaidosos arqueiros.
* Eugênio Aragão é ex-ministro da Justiça e ex-subprocurador da república.