Folha derrapa entre conceitos e feitos
por Luis Felipe Miguel, em seu Facebook
A Folha dá outra manchete para os surveys de seu instituto de pesquisa e observa um crescimento da “esquerda” na população brasileira. O resultado é baseado em índice criado a partir das respostas a 16 perguntas. É de esquerda, por exemplo, quem responde que a pobreza “está ligada à falta de oportunidades iguais”. A resposta da direita é que a pobreza “está ligada à preguiça de pessoas que não querem trabalhar”. A resposta de que a pobreza é consequência de desequilíbrios estruturais do capitalismo não é uma alternativa.
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Questões sobre economia, sobre direitos e sobre valores são misturadas livremente. Foi considerado de direita quem concordou com a afirmação “quanto menos eu depender do governo, melhor será minha vida”, interpretada como uma oposição aos programas sociais. Mas quem discordaria dela, sabendo que os benefícios recebidos do Estado podem a qualquer momento ser ameaçados por algum governo golpista? Melhor não depender mesmo.
Em suma, a pesquisa é um planetário dos erros metodológicos e da ingenuidade epistemológica que caracteriza grande parte dos surveys e da construção de índices, algo sobre o qual falei outro dia. Creio que seu valor como perscrutação das posições “ideológicas” (posição no eixo esquerda-direita não é “ideologia”, mas essa é outra discussão) dos brasileiros tende a zero.
Poucas páginas adiante, o colunista Celso Rocha de Barros dá seu pitaco sobre o que é a esquerda e qual devia ser seu programa, a propósito do livro de Ruy Fausto. Elogia no livro o objetivo de “livrar” a esquerda de “heranças totalitárias e populistas”.
São dois adjetivos que me provocam arrepios. Como conceito, “totalitarismo” é uma invenção da Guerra Fria, elaborado para estabelecer uma identidade política entre a União Soviética e a Alemanha nazista (ambas “totalitárias”), em oposição ao fato de que os países do Eixo e o autodenominado “mundo livre” eram duas variedades da dominação burguesa. Teve versões mais sofisticadas, como a de Hannah Arendt, mas, fora do contexto da Guerra Fria, mostrou-se um conceito inservível. Transitou para a linguagem corrente designando simplesmente um autoritarismo muito forte, tingido – e aí está o pulo do gato – pela ambição de transformar radicalmente a sociedade. É esse o ponto, parece, que incomoda mais a Barros. Já o populismo tornou-se um passe-partout conceitual para enquadrar negativamente tudo o que cheira a compromisso com a resposta imediata às demandas mais prementes dos pobres.
Essa interpretação do significado de “totalitarismo” e “populismo” é consistente com a principal crítica que Barros faz a Fausto (cujo livro, convém deixar claro, eu não li). Ele “teme” que as incursões “pelo tema do ‘anticapitalismo’, embora nuançadas, possam favorecer a esquerda economicamente irresponsável”.
Este é o ponto: talvez uma linha divisória entre esquerda e direita seja a aceitação ou não do critério de “responsabilidade econômica” definido pelo capital. Nesse caso, Barros devia se eximir de ficar na posição de porta-voz de uma posição que não é a sua.
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