(Dultra, ao centro. Fotos: Aline Bonifácio e Flávia Sepúlveda)
No Jornal GGN
Usada no triplex, tese que Dallagnol aprendeu nos EUA é “esdrúxula”
Por Cíntia Alves
TER, 27/06/2017 – 06:47
Para o doutor em Ciência Polícia e professor de Direito da UFF, Rogério Dultra, a teoria da abdução das provas, criada por Scott Brewer – professor e orientador de Dallagnol em Harvard – tem “problemas na origem”. Em entrevista ao GGN, Dultra explicou porquê a Lava Jato recorre aos Estados Unidos para processar políticos no Brasil
Jornal GGN – As alegações finais do Ministério Público Federal sobre o triplex estão recheadas de argumentos que Deltan Dallagnol, procurador que lidera o time que processa o ex-presidente Lula, importou dos Estados Unidos após seu mestrado em Harvard, em 2013, sob orientação do professor Scott Brewer.
Foi de Brewer que Dallagnol emprestou a teoria da abdução das provas, numa tentativa de supervalorizar as chamadas “provas indiciárias”. No caso, o procurador alega que o conjunto de indícios criado pelo MPF, num contexto em que provas cabais de culpa não foram encontradas, deve bastar para condenar Lula.
Em entrevista exclusiva ao GGN, Rogério Dultra, doutor em Ciência Política e professor de Direito da Universidade Federal Fluminense, apontou que é a primeira vez que a “abdução das provas, onde você imagina uma hipótese e quer condenar alguém com ela”, é usada no processo penal brasileiro de maneira tão “esdrúxula” – embora “certamente não é a primeira vez que o Ministério Público pede para condenar sem provas.”
“Essa abdução, como disse o professor Lênio Streck [em artigo, veja aqui], é completamente exótica. Ninguém utiliza isso aqui”, acrescentou Dultra, afirmando que trata-se de uma “invencionice dos procuradores”, “completamente alienígena, estranha à tradição do processo penal brasileiro, que não é uma tradição tão democrática, mas não chega a ponto de ser uma coisa totalmente esdrúxula como estão colocando.”
A abdução das provas foi desenvolvida para uso do Direito por Brewer a partir do trabalho do pensador pragmático norte-americano Charles Peirce, um clássico da filosofia da linguagem. O problema é que Brewer teria feito uma interpretação demasiadamente heterodoxa de Peirce.
Uma metáfora, sugerida por Dultra, ajuda a entender o conceito de abdução: imagine que um sujeito está em frente a um relógio de corda e não pode abri-lo. Então ele imagina qual deva ser o mecanismo que faz aquele relógio funcionar. A hipótese que ele cria pode inclusive fazer o relógio realmente funcionar, mas ele nunca vai saber se essa hipótese equivale ao mecanismo do relógio, de forma completa e precisa, já que ele não abriu o relógio para ver.
“O que o Scott Brewer está fazendo é dizer que a simples abdução garante que aquela hipótese criada, que de repente é uma hipótese forte, é suficiente para você condenar o sujeito. É um uso completamente esdrúxulo da teoria da abdução do Charles Peirce. Na verdade, Scott Brewer está se utilizando de um conceito completamente marginal da filosofia da linguagem como um instrumento para legitimar suas ideias, que estão vinculadas a uma compreensão muito mais religiosa do mundo do que qualquer outra coisa”, apontou Dultra.
Para o professor, “a teoria tem problemas na origem”, pois Brewer deu outro sentido ao trabalho de Peirce ao dizer que o conceito de abdução não só formula hipóteses, “como formula hipóteses válidas e, por isso, pode servir como elemento de produção da verdade.”
“Não é bem isso que Peirce diz. Aliás, o Peirce diz o contrário. Ele fala: olha só, eu faço qualquer hipótese com essa linha de raciocínio. Posso ter 10 hipóteses boas para explicar um fato, e nenhuma delas necessariamente ser a verdadeira. Scott Brewer usou isso para dizer que é possível transformar imaginação em fato consumado e Dallagnol reproduz isso aqui, no processo penal, de forma muito temerária.”
Ao replicar a tese no Brasil, Dallagnol ainda ignorou o contexto do caso triplex, no qual o Ministério Público admite não ter provas da participação de Lula nas acusações a ele imputadas. Em contrapartida, a defesa do ex-presidente levou aos autos indícios de que delatores da OAS mentem sobre o apartamento no Guarujá ser de Lula, de olho nos benefícios da delação.
De acordo com Dultra, ao contrário de Dallagnol, Brewer não desconsidera que elementos que refutem provas criadas pela abdução devam ser considerados. “O problema não é Scott Brewer necessariamente. Ele tem os problemas filosóficos dele lá. O que nos importa é como o Dallagnol usa isso para justificar a falta de trabalho na produção de provas concretas. Da falta de trabalho ou da inexistência pura e simples de provas que sejam suficientes para a condenação de Lula”, comentou.
O professor da UFF ainda fez um paralelo com a Ação Penal 470, mais conhecida como Mensalão, ao recordar que, ali, ministros do Supremo Tribunal Federal também admitiram a importação de uma tese – a do domínio do fato, da Alemanha – cuja aplicação no Brasil foi criticada por seu próprio criador, Claus Roxin.
PORQUE ESTADOS UNIDOS
Para Dultra, a Lava Jato não recorre aos Estados Unidos à toa.
“Lá os ‘prosecutors’ [procuradores] detêm autonomia para negociar pena, culpa, numa lógica de transação que retira o caráter público da ação penal, que é o que caracteriza o processo penal brasileiro. O processo penal dos Estados Unidos tem uma característica completamente adversa da nossa. Nos últimos 20 anos começamos a importar, aos pouquinhos, uma legislação que admite a negociação da culpa no processo. Já temos um corpo legislativo exógeno à lógica do processo penal brasileiro, que aponta para sua privatização, para que o Ministério Público escolha a seu bel-prazer, sem necessidade de justificar ao público, as negociações que ele quer fazer. Estamos vivendo tempos sombrios”, refletiu.
Segundo Dultra, os Estados Unidos têm uma espécie de “corrente doutrinária no Direito” muito forte quando o assunto é o chamado crime de colarinho branco.
“Eles foram conformados por novas abordagens do processo penal que dizem, em resumo, que crimes contra o sistema financeiro são de difícil comprovação. Então, para manter os caras presos, é preciso dar uma rebolada e criar alguma coisa. O Moro está dentro dessa perspectiva. Eles vão para os Estados Unidos porque lá tem essa corrente doutrinária no Direito que é forte, de criminalização dos crimes de colarinho branco porque é politicamente interessante. Assim você neutraliza concorrentes políticos. Quando você tem a máquina na mão, você faz isso com muita facilidade. A diferença é que o PT tinha a máquina na mão e foi criminalizado.”
O partido, segundo avaliou o cientista político, “não soube dominar as instituições repressivas no Brasil no sentido positivo, republicano, de fazê-las funcionar de acordo com a Constituição. Outras forças – que dizem respeito não só a questões políticas e econômicas, mas também ideológicas – passaram a ditar o que o sistema repressivo deveria fazer. E daí foi escolhida a necessidade de repressão às esquerdas.”
“O que Cristiano Zanin [advogado de Lula] fala sobre ‘lawfare’ – a guerra através do Direito – é um conceito muito mais recente do que o conceito clássico da teoria do Direito do século XX, sobre justiça política. No Brasil, isso sempre foi utilizado para controlar as classes subalternas. Agora está sendo usado para neutralizar a esquerda”, concluiu.