Faz muito calor em Paris.
Eu vim passar uns dias na capital francesa, para acompanhar minha mulher, que tem uns trabalhos a fazer por aqui e para fugir um pouco da atmosfera de pesadelo do Brasil.
Como FHC não nos emprestou sua cobertura da Avenue Foch, ficamos num “studiô” de vinte metros quadrados, no sexto andar de um prédio sem elevador, no coração do Marais, bairro judeu, boêmio e LGBT. E estamos felizes.
Não é exatamente férias porque blogueiro não tira férias. Blogueiro “dá um tempo”. Ou seja, puxa um pouco o freio da produção jornalística. Por isso vocês estão vendo menos posts meus e mais do Luis Edmundo, um amigo jornalista que convidei para me substituir nesse meu período semi-sabático, que dura até o final desta semana.
Para falar a verdade, sou contra o conceito de “férias”, sobretudo porque, no meu campo profissional, embora talvez seja exagero dizer que tudo é prazer, posso afirmar, com toda convicção, que tudo que eu faço é trabalho.
Ontem, por exemplo, eu voltei ao Louvre com a determinação de encontrar alguma coisa interessante para oferecer aos leitores do blog.
E encontrei!
Na seção histórica, dedicada às descobertas arqueológicas do oriente próximo, há um dos monumentos mais famosos do mundo: uma pedra de basalto negro de dois metros de altura, datada de dois mil anos antes de Cristo. A parte superior traz um desenho, cortado na rocha, do rei Hamurabi recebendo o código de um deus. Abaixo deles, e ocupando a maior parte da pedra, frente e verso, vemos milhares de milhares de letras em sumério antigo.
É o famoso Código de Hamurabi, um conjunto de leis e regulamentos que formam um dos primeiros documentos jurídicos da história da civilização humana.
O Código de Hamurabi tem uma fama injustamente negativa, porque ele incluiu alguns itens da famigerada Lei de Talião, a qual prevê que, se um homem quebrar o dente de outro homem, terá também o seu dente quebrado, e se furar o olho de outrem, terá o seu próprio olho furado.
Essa lei, porém, é um enorme avanço jurídico da Antiguidade, pois antes dela a coisa era muito mais pesada: se alguém quebrasse o dente de outro, ficava a mercê de ter sua família toda assassinada como retaliação. O Talião inaugurou a dosimetria, conceito jurídico fundamental para equilibrar o sistema de castigos.
Entretanto, o Código tem muito mais que isso! Em muitos pontos, identificamos um sistema jurídico surpreendentemente moderno, até mesmo para os padrões de hoje.
E aí eu lhes digo o que realmente me chamou a atenção, e me fez decidir dedicar um post inteiramente a este assunto.
Ao lado da rocha, o museu reproduziu a tradução das primeiras leis presentes no Código. E qual não foi minha surpresa ao ver que as primeiras leis do Hamurabi são castigos contra a falsa acusação e contra o mau juiz!
Dallagnol e Sergio Moro, portanto, são representantes de uma mentalidade anterior ao próprio Código de Hamurabi.
A primeira lei do Código de Hamurabi é essa, conforme tradução literal do francês para o português, feita pelo blogueiro:
§ 1 Se um homem acusa outro homem e lhe imputa um homicídio, mas não pode trazer provas contra ele, o acusador será executado.
É uma interpretação jurídica impressionantemente moderna, porque desconsidera o fator metafísico ou moral da “culpa”: o que vale é a prova!
O nosso zé do powerpoint, se fosse agente de justiça da Babilônia antiga, não sobreviveria muito tempo a exigências tão rigorosas!
As cinco primeiras leis do Hamurabi parecem ter sido escritas diretamente para Dallagnol e Sergio Moro, que cito aqui como representantes mais caricatos do sistema judicial brasileiro.
Da primeira já falamos. A segunda lei é um texto meio complicado, meio esotérico, mas que, à luz da conjuntura brasileira, soa como uma metáfora política. É a seguinte: se alguém for acusado de magia, poderá se defender da seguinte forma. Irá se jogar no rio: se as águas o levarem, então a sua culpa estará provada. Neste caso, o seu patrimônio ficará com o acusador. Mas se não se afogar e voltar à terra são e salvo, então sua inocência terá sido atestada por Deus, então é o acusado que ficará com o patrimônio do acusador.
Como as acusações contra Lula, pela Lava Jato, tem muito de esotérico, e como a sua culpa e, sobretudo, o seu risco de prisão, parecem ser medidos não pelas provas (que não existem), mas por sua resiliência ou não em ser tragado pelas águas tumultuosas da mídia, a segunda lei do Hamurabi se aplica perfeitamente neste caso.
A terceira lei de Hamurabi é outro petardo direto no sistema grotesco de delações da Lava Jato: se um homem vai ao tribunal com falso testemunho, e não prova sua declaração, então ele será executado. Ou seja, os juristas da Babilônia já sabiam muito bem dos enganos da delação premiada!
A quarta lei é uma continuação da primeira. Passemos para a quinta lei, que atinge, desta vez, em cheio, o juiz Sergio Moro e todos os juízes que lhe imitam:
Um juiz deve julgar um caso, alcançar um veredito e apresentá-lo por escrito. Se erro posterior aparecer na decisão do juiz, e tal juiz for culpado, então ele deverá pagar doze vezes a pena que ele mesmo instituiu para o caso, sendo publicamente destituído de sua posição de juiz, e jamais sentar-se novamente para efetuar julgamentos.
E já que estamos falando de Dallagnol, me parece oportuno comentar reportagem da Folha sobre o procurador, publicada há pouco (imagem acima).
Sou obrigado a cumprimentar a repórter Anna Virginia Balloussier, que conseguiu, com ironia sutil (provavelmente para sobreviver à censura velada do jornal e de seus leitores, fãs incondicionais da Lava Jato), pôr em evidência o ridículo da situação de um procurador participar, mediante gordo cachê, de um congresso de “cirurgia plástica”.
O fato de Dallagnol, supostamente, doar seu cachê para instituição filantrópica apenas lhe dá um toque ambíguo e demagógico. O procurador está usando a fama que lhe foi conferida pela mídia, pelo golpe e pelas elites entreguistas, para ganhar dinheiro e/ou faturar politicamente com doações para instituições filantrópicas de seu interesse.
O procurador, diz a reportagem, iniciou sua palestra com um “afago”: “Gosto dos médicos porque médicos gostam da Lava Jato.”
É um autoritário! Quer dizer que o procurador só gosta de adulações? Ele esqueceu de dizer também que a classe médica brasileira, a mesma que “gosta da Lava jato”, é majoritariamente reacionária, egoísta e preconceituosa. Quem não lembra da médica que se recusou a tratar de uma criança após descobrir que sua mãe era “petista”, ou do caso, mais recente, de um ginecologista que machucou a paciente quando soube que ela trabalhava no restaurante do sindicato de metalúrgicos?
Dallagnol também é cínico, ao afirmar o seguinte:
“Nós antes éramos os golpistas. Agora nós somos os golpistas dos golpistas? Eu fico confuso”, afirma, lembrando que a operação vira e mexe acusada de ser algoz do petismo atingiu outros partidos –como o presidente Michel Temer (PMDB) e o senador Aécio Neves (PSDB).
Sim, Dallagnol, você está bem confuso. É interessante que você esteja acompanhando os blogs, já que é apenas neles que você soube que havia alguém que lhe chamava de golpista. Mas continue lendo com atenção, que eu vou lhe explicar.
Vocês, de Curitiba, golpistas puro sangue, embora desprovidos de qualquer senso de soberania, nacionalidade ou mesmo de bom senso econômico e social, souberam montar no cavalo do golpe que a mídia e setores do capital fizeram correr na frente de vocês.
A agenda da Lava Jato seguiu estritamente, desde o início, os interesses políticos do golpismo. Para isso, tiveram que mobilizar forças que vocês nem sempre conseguem controlar. Daí podemos explicar tanto a caçada contra boa parte da classe política (mas preservando, por exemplo, inexplicavelmente, um FHC…), como também esse movimento autodestrutivo que levou à devastação da indústria de óleo gás, de construção pesada e que agora começa a desestabilizar todo o setor brasileiro de carnes.
Temer e acólitos deram o golpe por medo da Lava Jato, mas a Lava Jato cuidou para que eles tivessem, primeiro, a liberdade e o poder de derrubar a presidenta Dilma para, só depois, serem também alvos de uma caçada.
Os líderes do golpe, e isso nós identificamos desde o início, jamais foram a meia dúzia de políticos degenerados do PMDB ou PSDB, e sim duas forças poderosíssimas: a burocracia jurídica, representada por ministros do TCU e tribunais superiores, procuradores, juízes, de um lado; e a mídia corporativa, representante do grande capital privado, em especial do capital estrangeiro (via agências de publicidade norte-americanas), de outro.
Os acordos da Lava Jato com o departamento de justiça dos EUA apenas deixaram claro o que muita gente desconfiava: o golpe foi uma convergência de interesses entre uma elite historicamente entreguista, ansiosa para voltar a ganhar comissões com a privatização do que nos restou de patrimônio público; o capital internacional, sedento para aumentar o controle sobre os estratégicos recursos naturais do Brasil (terra, carne, petróleo, minérios, população); e uma alta burocracia completamente enlouquecida ideologicamente por anos e anos de lavagem cerebral.
Mídia (em especial a Globo) e burocracia jurídica: eis os donos do golpe, Dallagnol. Você pertence à burocracia jurídica, mas ela é muito maior que você. Se você tivesse lido qualquer pensador da ciência política saberia que as burocracias, em qualquer momento da história, sempre tenderam a exercer um papel egoísta e antidemocrático na articulação do poder nacional.
Vocês não são golpistas dos golpistas. Vocês são os verdadeiros golpistas querendo assumir o poder político que lhes cabe, de direito, como lideranças do golpe.
Ainda na Folha, há uma outra reportagem que merece ser comentada nesse post, porque é o mesmo assunto: a pauta única, interminável, do golpe.
Sou insuspeito de defender Michel Temer. Acho-o golpista e, como tal, deveria estar preso, sob condenação máxima. Mas o papel da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário, que deveríamos chamar simplesmente de Poder Coercitivo, de ficar monopolizando a agenda política do país com esse tipo de vazamentos, repassados sempre à grande mídia sem nenhuma responsabilidade, está inviabilizando completamente o país, sob todos os aspectos: político e econômico. Não haverá uma empresa, um governo, uma instituição que conseguirá respirar enquanto não submetermos o Poder Coercitivo e a mídia ao controle democrático.
Fuçar os pertences alheios em busca de material que possa ser levado à mídia e transformado, de maneira sensacionalista, em escândalo, é um crime e uma irresponsabilidade. Se a Polícia Federal quer investigar Michel Temer, e faz muito bem em fazê-lo, deve ser discreta e se manter distante da mídia. O argumento de delegados, procuradores e juízes, de que é preciso “usar a mídia” para se proteger das ingerências de autoridades da política é uma desculpa esfarrapada para fomentar o caos, a instabilidade, a suspeita generalizada, e protagonizar o mais irresponsável populismo penal.
A mídia é a própria ingerência política, porque ela tem seus próprios interesses econômicos, tão ou mais perniciosos e corruptos do que os de políticos. Políticos, mal ou bem, precisam atender os interesses dos eleitores. A grande mídia, por sua vez, é patrocinada por agências de publicidade norte-americanas, cujos interesses econômicos e políticos são, por vezes, profundamente hostis ao bem estar e à soberania do nosso povo.
O Brasil não merecia a Lava Jato. A corrupção poderia ser combatida como é feita em todo o mundo, sem destruição de suas indústrias, sem golpes de Estado, sem devastação do mercado de trabalho, sem levar o país ao caos.
No programa Cafeína da semana passada, o deputado federal Jorge Solla nos lembrou que os EUA viveram, há pouco, uma espécie de Lava Jato, envolvendo indústrias de construção civil americanas, mas que passou despercebida do grande público, porque durou menos que duas semanas. O sistema de justiça prendeu alguns executivos, indiciou políticos, mas foi tudo feito sem que houvesse a perda de um emprego, sem que fosse paralisada uma obra. Aqui no Brasil, a Lava Jato, que se espalhou como metástase pelo sistema judicial, caminha para o seu quarto ano, destruindo tudo que vem pela frente, nos fazendo retroceder décadas, tanto em matéria de investimento como em direitos, e ainda tem gente que, por ingenuidade, medo ou oportunismo, bate palma.