Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Por Rogerio Dultra dos Santos, colunista d’O Cafezinho
Os únicos? elementos? que unem? os setores do golpe são as reformas previdenciária e trabalhista. Independentemente de como o golpe se concluirá – por Temer, por eleições indiretas, pela supressão das eleições diretas em 2018 ou até por eleições diretas – o objetivo comum dos golpistas é facilitar o desmonte do que resta do Estado Social e implantar o modelo de controle repressivo da população desassistida.
Nesse sentido, o tratamento dado aos moradores da cracolândia em São Paulo é uma demonstração impressionista do que pode se tornar o futuro do país sob a nova ordem.
Para que se compreenda a dimensão dessa retomada do projeto neoliberal pelos setores que perderam com a democracia e que voltaram ao poder por via do Golpe de Estado, vale a pena dar uma olhada na história recente dos Estados Unidos.
Lá se pode vislumbrar o que receita semelhante de corte de gastos sociais gerou no país que vem servindo de inspiração – e muitos dizem, de estímulo ativo – para o desmonte da democracia formal e dos direitos no Brasil.
Alguns movimentos isolados e aparentemente não alinhados entre si podem apontar para conseqüências muitos semelhantes no país ao que ocorreu nos Estados Unidos da América em termos de destruição da incorporação – parcial, diga-se de passagem – da população pobre e miserável à cidadania. Seja através da destruição dos direitos legados pela Era Vargas, seja pelo desmonte das políticas assistenciais e de renda produzidas nos governos Lula/Dilma.
Nos dizeres do sociólogo francês Loïc Wacquant, em seu livro Punir os Pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (cuja terceira edição, pela Editora Revan, completa dez anos), a destruição dos direitos sociais legados pelo New Deal de Roosevelt se realizou na administração Bill Clinton, em 1996.
Clinton substituiu nos EUA a “guerra contra a pobreza” pela “guerra contra os pobres”. Desde então, instalou-se o movimento de extinção do Estado-Providência e sua mudança pelo que Wacquant chama de Estado carcerário e policial.
Para o sociólogo, os EUA são um laboratório vivo do futuro neoliberal. É claro que no Brasil, elementos deste futuro transparecem em situações pontuais, como a utilização da repressão truculenta para “resolver” o “problema” da cracolândia em São Paulo ou o processo de expansão do sistema carcerário via privatização. Os governos do PDSB são, nesse sentido, o ovo da serpente.
No caso da cracolândia, o Prefeito João Dória desmontou as políticas de assistência social e médica produzidas depois de anos de organização do Estado junto aos dependentes de drogas e simplesmente comandou a mais brutal, despropositada e espetacular repressão.
O livro de Wacquant é uma denúncia de um processo que tem todas as condições de gerar a “cracolandização” do Brasil. Isto é, pode-se vislumbrar aqui a substituição de políticas sociais pelo mais puro, privatizado, industrializado e fascista sistema repressivo, sustentado não pelos resultados, mas, como na gestão cracolandizada de Dória, pela propaganda.
Wacquant chama movimentos como o do Prefeito de São Paulo de políticas públicas pornográficas. O objetivo dessas políticas é exibir-se, serem vistas, dar espetáculo. Espetáculo que esconde o objetivo real de implantação de políticas de “austeridade” à fórceps.
Assim, o combate ao crime passa a ser o mote previsível da performance de políticos que manejam o discurso da lei e da ordem até o limite do grotesco, ignorando fatores sociais e econômicos – ignorando as causas reais dos problemas sociais – em nome de acrobacias previsíveis e vazias diante dos holofotes, a justificar a repressão.
Não surpreende, portanto, que, na sua origem, a ideia chave para justificar a legislação que subtrai direitos e programas sociais e criminaliza a pobreza nos EUA seja eliminar a “dependência das famílias assistidas em relação aos programas sociais”, que “estimulavam a vagabundagem”.
Como medidas da legislação norte-americana implantada nos anos 1990, cortes radicais no orçamento social e congelamento de investimentos se justificaram pela necessidade de fazer os pobres saírem da “dependência” em relação ao Estado e “procurarem emprego”.
Estes argumentos eram defendidos em uníssono sem que políticas de qualificação profissional ou de criação de postos de trabalho fossem operadas e mesmo se sabendo que parte significativa dos beneficiários trabalhavam, sim, mas em sub-empregos mal remunerados.
Em outras palavras, o governo de Bill Clinton, lá em 1996, retirou a responsabilidade do Estado de “dar o peixe” e, no lugar, bloqueou as condições para os setores mais vulneráveis – idosos, mães solteiras e crianças, por exemplo – “aprenderem a pescar”.
Passados 20 anos da implementação dessa legislação de “austeridade” contra a população mais pobre dos EUA – que se tenta passar goela abaixo pelo golpe de Estado no Brasil –, vê-se claramente seus resultados. Em especial a explosão da miséria, do desemprego e do sistema carcerário, gerido majoritariamente pelo setor privado.
Independentemente da crise financeira de 2008, nota-se elementos sociais e econômicos consistentemente derivados do desmonte do Estado Providência nos Estados Unidos, operado nas últimas décadas.
A rede de proteção previdenciária dos EUA, ela mesma problemática em si, por diferenciar tratamento para setores médios regularmente empregados e setores pobres em situação de vulnerabilidade, servia para o controle populacional das classes subalternas.
Institutos como o nosso Bolsa Família operavam de forma a exigir um comportamento moral específico de seus beneficiários (como mães solteiras só receberem se comprovarem moradia com os pais), ou exigiam um volume tão extenso de burocracia que um percentual significativo dos que tinham direito aos benefícios simplesmente desistiam deles.
A dita reforma do sistema de previdência, com o congelamento de investimentos e redução de direitos trouxe três consequências sistêmicas nos EUA: a) o aumento do desemprego, do sub-emprego, da miséria e da marginalidade social; b) a ampliação dos serviços de assistência privada, ou seja, a “’mercantilização’ crescente da assistência social”, e c) a utilização de empresas vinculadas ao mercado de encarceramento privado para gerir e monitorar a população de beneficiários remanescentes.
Coincidentemente, a transição de um Estado pretensamente caritativo para um Estado Penal puro e simples se deu, nos EUA, alicerçado pelos meios de comunicação de massa e financiado por dinheiro público transferido para empresas especializadas em gestão da violência.
O punitivismo artificialmente construído foi empurrado goela abaixo não somente pelo discurso das autoridades públicas, mas por uma intensa campanha cultural calcada em séries, filmes e manipulação das pautas de notícias. Além disso, os “think tanks”, centros de produção de estatísticas encomendadas e “teorias” sociológicas enviesadas, garantiram a disseminação da solução penal para as classes baixas.
Assim, uma população bestificada pela avalanche de programas televisivos como os nossos “Aqui e agora”, “Brasil Urgente”, “Programa do Ratinho” passou a achar normal a violência seletiva de um sistema repressivo voltado preferencialmente para os pobres.
A “guerra ao crime” vem, portanto, atrelada não somente ao pacote de reformas neoliberais. Vem no bojo de um projeto de governança reacionário e antidemocrático, e se apresenta como a resposta, como a solução à marginalidade e à pobreza criados por suas próprias mãos.
Note-se que, no Brasil, o Estado de São Paulo representa esta tendência desde há muito. Em 1994 haviam 45 mil presos em São Paulo. Hoje são mais de 300 mil. Expansão que se explica não pelo aumento geométrico de crimes, mas por políticas especialmente repressivas e pela privatização da gestão do sistema carcerário, projeto já encampado pelo governo Temer, por exemplo.
Se aprovadas as reformas propostas pelo golpe, o país verá explodir não só o número de pessoas pobres, desempregadas e miseráveis, como assistirá a sua transformação em presidiários e marginais, que longe de receberem tratamento ou assistência social, serão “gerenciados” com porrada. Bem ao estilo do que ocorreu em São Paulo, sob os auspícios dos mesmos que estão alinhados com o golpe. O que estes desejam é transformar o Brasil numa imensa cracolândia. E o pior é que isto está longe de ser exagero.