A economia deve prevalecer sobre a democracia?
A palavra corrupção no Brasil de hoje tem uma força imensurável.
Parece mover, sozinha, fundos e mundos como se fosse a única forma existente do agir antiético. Tanto, que nem preciso descrever os acontecimentos dos últimos 15 anos que tiveram como principal motor a corrupção.
Porém, há outras maneiras de agir antieticamente escondidas debaixo do tapete da corrupção.
A mais gritante é, sem dúvida, aquela que a esquerda conclama como seu objetivo principal eliminar: a reprodução das imensas desigualdades existentes no nosso rico Brasil (entre os 10 maiores PIB do mundo, mesmo com a crise). Mas, abafadas por esta obsessão dos nossos sábios jornalistas, elas mal chegam ao noticiário.
Deixando de lado as razões político-econômicas que levaram ao golpe de estado, certamente a cegueira ética, causada pela luz ofuscante da corrupção, fez com que ignorássemos qualquer outro critério para julgar os governos. E infelizmente, neste período ainda crítico da vida nacional – de queda de braços para garantir as diretas – a ditadura da ética da corrupção continua fazendo estragos.
Estão mais do que evidentes – com ou sem o Temer – as razões para a manutenção de um estado de exceção.
São duas: a jurídica, onde a corrupção é tão grave que justificaria até a suspenção do estado de direito. Por isso, muitos batem palmas, inclusive no exterior, acreditando que o Brasil estaria mais maduro por combater tão abertamente o problema da corrupção.
Infelizmente, até os últimos acontecimentos envolvendo Temer e Aécio, a escancarada parcialidade praticada pelo judiciário não sustenta esta teoria.
E a econômica, que estava indevidamente presente inclusive nos argumentos para remover a Presidenta: o estado de exceção seria uma oportunidade única para aplicar mudanças econômicas impossíveis durante a democracia.
Por isso, muitos (inclusive aqueles que se dizem querer ‘varrer a corrupção’) fecharam os olhos às irregularidades do golpe, ao assalto feito por Temer e seus comparsas, à evidência de um acordo entre o executivo e o legislativo, fundamentado em bases corruptas e fisiológicas.
E é exatamente o aspecto econômico do golpe que se mostrará duradouro – caso aceitemos eleições indiretas – mesmo que a renovação da democracia aconteça em 2018.
Que ninguém se iluda, cai Temer, fica o objetivo econômico.
Fica a urgência de transformar o Brasil – que tem um regime, ainda que imperfeito, de assistência social – em um estado mínimo: passando as reformas trabalhista e previdenciária e consolidando as reduções de direitos que já tiveram lugar durante este interregno não democrático.
A democracia brasileira foi “suspensa” pelo tempo necessário para “sanear a economia”. E para não ficar muito feio face à opinião pública estrangeira e não comprometer demasiadamente a capacidade eleitoral dos parlamentares, eles têm pressa.
Não há necessidade real de passar nenhuma destas medidas com urgência. Como diz a professora adjunta do Instituto de Economia da UFRJ e ex-secretária de orçamento do governo Dilma, Esther Dwek, já foram feitas várias reformas na previdência que farão diferença no futuro, e o que está afetando mais no momento é a baixa arrecadação de tributos, um problema conjuntural e não estrutural. Além do que, uma reforma real e duradoura precisaria ser feita através de amplo consenso técnico e político, com participação social.
Então por que a pressa?
Esther Dweck reitera: a necessidade demográfica da reforma é algo que afetará no longo prazo e não terá efeitos muito grandes nos próximos 10 anos. E se assim for, por que não esperar o reestabelecimento da democracia? Por que tanta urgência, quando na verdade o que se precisa é de cautela e estudos? O que está realmente por trás de tudo isso?
É ético ou democrático que um governo de duvidosa legitimidade, e comprovadamente impopular, faça reformas que terão impactos negativos para a maioria da população e tão graves implicações futuras?
A eleição indireta nada mais é do que a continuação do projeto que se impôs. E já sabemos o que isso significa: comissões atropeladas, tentativas de aprovar emendas no calado da noite, como foi a aprovação da chamada PEC da terceirização. Uma proposta feita durante o governo FHC, por senadores que já não estão mais na ativa. Tinha sido arquivada por Lula, mas foi desengavetada quase vinte anos depois e aprovada em poucos dias. Vergonhoso.
Tudo isso feito em nome da “economia” e do “mercado”. O mesmo mercado que sustentou Temer e que agora o fará cair.
Porque não foram – pelo menos não até agora – nossos gritos, nem nossos argumentos, nem nossa ética, nem nosso desejo democrático que fizeram Temer balançar. E muito menos os tais dos vídeos da JBS que apareceram de repente. Foi a retirada do apoio de parte da base econômica que fez com que a Globo decidisse que Temer já não seria a marionete principal no palco da presidência.
Mais uma vez fica a pergunta: por que a economia deve ter precedência sobre a democracia?
Economia, a ciência sagrada, cujos argumentos poucos têm coragem de debater. Poucos são os que têm a firmeza de opinar num debate sobre os prós e contras da manutenção de taxas de juros altas para conter a inflação, poucos os que podem argumentar a favor ou contra a utilização de medidas anticíclicas durante uma recessão. Poucos o que ousam afirmar que não é através de cortes que se ‘cura’ a economia de um país.
Poucos os que simplesmente são capazes de entender termos como mercado de capitais, títulos da dívida pública, taxa de câmbio, política monetária, ou versar sobre como atrair investidores estrangeiros ou manter em nível adequado o superávit fiscal. Quantos têm o conhecimento matemático necessário para discutir e projetar o futuro econômico do país?
Faz-se necessário, portanto, que dependamos dos especialistas, aquele grupo da elite pensante que é capaz de decifrar esta difícil e complexa “ciência”. Aqueles que utilizam cálculo nos cálculos para nos dizer o que é o quê e o que será.
Em termos de economia, poucos são capazes ou têm coragem de desdizer os mestres.
Mas é necessário ter cautela, porque frequentemente eles se acham no direito de ignorar nossas opiniões, nossas decisões democráticas, já que elas não são baseadas em conhecimento obtidos em anos de estudos, mestrados e MBAs em universidades americanas. Nós, mero público, somos ignorantes das regras econômicas.
Com o golpe, o mercado perdeu a paciência com o povo brasileiro. Cansou de democracia. Não aguentava mais ver o povo, economicamente analfabeto e malcomportado, votando sobre questões que são da alçada dos especialistas.
Como podem os ignorantes entenderem as consequências das reformas? O povo não é capaz de compreender o sacrifício necessário, o remédio amargo, que levará o Brasil ao paraíso neoliberal. Especialmente, mal-acostumado que está, depois da gastança geral dos anos Petistas.
Enquanto o mundo se debate, perplexo, sobre eventos como a eleição de Trump, o Brexit e a ameaça ultra-direitista – por ora suprimida na França, na Holanda e quem sabe na Alemanha, mas já semi-implantada na Hungria e na Polônia; enquanto os especialistas olham sem compreender o crescimento da esquerda em Portugal, na Espanha e na Grécia; enquanto o mundo se pergunta o que fazer com tantos excluídos, e como fazê-los aceitar mais e mais globalização, as elites econômicas brasileiras e seus apoiadores do mercado internacional não têm a menor dúvida sobre a solução.
Em outras palavras, as elites mundiais estão aterrorizadas e paralisadas em face às consequências da economia neoliberal praticada nos últimos 30 anos. Mas a elite econômica brasileira não titubeia: é necessário voltar aos anos 90 e liberalizar, privatizar, flexibilizar, terceirizar e automatizar.
Temer, que até agora se gabava – se orgulhava – de sua impopularidade, pode ser derrotado, mas não o projeto para o qual ele foi escalado.
Não há saída para tudo isso que não sejam as eleições diretas. Não é eticamente correto deixar a ‘democracia de lado’, para ‘corrigir’ o rumo econômico, mesmo que este movimento não fosse realizado com ainda mais corrupção.
Vale lembrar também que a economia é uma ciência social – e não exata – e que suas teorias não são infalíveis.
André Lara Resende, disse o seguinte em relação aos seus colegas que se mostraram perplexos quando ele próprio, arquiteto do real, expôs ideias que iam contra a ortodoxia monetária:
“ao criticar a ortodoxia… você está desqualificando a formação que dá a estas pessoas o direito de tocarem a política monetária sem accountability democrática… Todo dogmatismo é questionável, mas especialmente em questões de ciências humanas – como é a economia – ela é duplamente questionável, porque as circunstâncias mudam, as instituições mudam… por isso, ela não deve ser tratada com dogmatismo. Ela pode funcionar em certos momentos… e não em outro… A política monetária é dada a formalização, a uma matematização… A matemática é extremamente adequada a cheques de lógica, mas ela pode servir muito como impostura e ser impermeável à crítica de outsiders… e o poder de impostura da formalização matemática é muito grande e impede a discussão aberta…”1
A crítica que Lara Resende faz à política monetária pode ser estendida às ciências econômicas como um todo.
E qual seria a importância disso para nós?
Lara Resende deixa claro aqui duas coisas, primeiro o que ele chama de `impermeabilidade da economia em relação às críticas de outsiders`, isto é, só podem criticar os que estão por dentro porque ninguém mais teria conhecimento para tanto. E é justamente a falta de entendimento dos leigos que dá aos especialistas o direito de não necessitar de accountability.
Lara Resende não está falando da situação brasileira, mas descrevendo circunstâncias normais. Porém, se a falta de accountability da elite econômica já é grande mesmo dentro de uma democracia funcionante, o que dizer da falta de accountability num período de “suspensão democrática”, onde os parlamentares tomam suas ordens do “mercado” e não dos seus eleitores?
Já está na hora de pormos as coisas nos seus devidos lugares:
A economia deve servir à política e não vice-versa e a política deve se basear na democracia.
Se o povo decide, através de eleições e programas de governo, que quer um sistema de seguridade social justo, o papel da economia é encontrar uma fórmula para que isso seja possível. Os especialistas, devem se ater a investigar e propor como devemos chegar a este resultado e não vaticinar – principalmente às escondidas e sem o aval do povo – que o sistema social é caro e que é melhor ter um Estado Mínimo.
É hora de voltar a valorizar a política – e não, nem todos os políticos são iguais, com o sem corrupção.
Diretas Já.
1 André Lara Resende: “Brazil-UK Forum...” (10hrs e 12 mins)