Por Rogerio Dultra dos Santos, colunista d’O cafezinho
Dizia-se de 2013 que “o gigante” havia acordado. O que se vê hoje, na verdade, é uma legião de homens minúsculos e medíocres, como na fábula de Jonathan Swift, que pretendem derrubar e amordaçar a maior liderança política das últimas décadas. Mais um momento em que o golpe metamorfoseia-se em farsa, o interrogatório de Lula na “Operação Lava-Jato” será certamente objeto de estudo por muitos e muitos anos. O documento registra – sob a perspectiva “fílmica” dos inquisidores, diga-se –, o momento histórico em que o poder ficou nu em sua mediocridade ante a consistência do zoon politikon.
O fato, de outra perspectiva, simboliza o grotesco e violento processo de criminalização da política e da prática política. Estas deveriam ser consideradas o sentido e o horizonte de uma das liberdades democráticas mais caras – que é o povo poder escolher seus governantes. Mas não é assim em Liliput.
O resumo da ópera é que o afastamento dos limites legais e processuais para se fazer funcionar o sistema repressivo – incluído aqui o sistema de justiça criminal – se confirma como regra histórica no país. Não somente para os pobres e marginalizados, mas para quem quer que ameace o status quo, seja o econômico, seja o midiático, seja o judicial-aristocrático, seja o status social de se poder andar em aeroportos sem o povo das rodoviárias.
Curitiba – não a cidade, mas a representação simbólica-judicial do golpe, registre-se – se tornou pequena para Lula, como Liliput para Gulliver. E a salinha asséptica de interrogatórios, expressão do elemento burocrático e ritualístico da justiça criminal, não foi capaz de normalizar ou dessubjetificar Lula, nem transformá-lo num brinquedo dócil e útil a confirmar a narrativa farsesca.
Não era um interrogando qualquer que estava ali. Não era aquele, portanto, apenas mais um ato banal num processo regular, como quiseram fazer crer algumas declarações de seus próceres.
A provar a excepcionalidade do ato e a relevância política do réu, o aparato excessivo se fez presente. A violência em estado de latência, garantindo a ordem do processo contra inimigos imaginados, criados ou a construir, de acordo com as conveniências da estratégia do momento. Liliput armou-se para a guerra.
Não era um réu qualquer. Num dos diálogos mais reproduzidos até agora, Lula denuncia a parcialidade do julgador, a venalidade do processo e a artificialidade da acusação num momento não raro de lucidez.
Perguntado se sabia da corrupção na Petrobras, Lula responde: “Nem eu, nem o senhor, nem o Ministério Público, nem a Petrobrás, nem a imprensa, nem a Polícia Federal. Todos nos só soubemos quando houve o grampo da conversa do Yousseff com o Paulo Roberto”.
Sentindo o ataque, o inquiridor – oculto pela filmagem – retruca de volta que “indagou” sobre o tema porque não foi ele, mas Lula quem indicou aquelas pessoas para o Conselho da Petrobrás, concluindo: “Eu não tenho nada a ver com isso, eu não participei dessas indicações”, ao que Lula responde, em xeque-mate: “O senhor soltou o Youssef e mandou grampear. O senhor poderia saber mais do que eu…”
Estabelecido o campo não é o direito, mas a política e o conflito, e determinada a envergadura dos oponentes – porque, afinal, não se trata de fato do devido processo, mas de uma batalha política – as armas são reveladas. E Lula cresce exatamente por escancarar a trama política oculta a conduzir o processo inexoravelmente para um desfecho que nada tem que ver com o direito.
Desnudado o caráter da contenda, passam a não serem estranhas a este modelo de “processo” perguntas sobre fatos presentes em outros processos, questões sobre opiniões políticas do réu, sobre declarações feitas há anos, sobre o modo de governar, etc. Desvela-se um juízo político – como sói há de ser todo juízo penal, registre-se. Mais, apresenta-se em vídeos “vazados” on-line um julgamento sobre o político no cadafalso e não sobre os fatos da denúncia – aqueles mesmo, não comprovados para além da desacreditada delação “voluntária” de réus presos e apavorados com a perspectiva de condenações draconianas.
Num momento simbolico, a marcar a perseguição ao sujeito e não à verdade dos fatos (ou do processo, como queira), um advogado da acusação sugere – no que é respaldado pelo silêncio conivente da bancada de pretores – que o objetivo do processo não é apenas de examinar a existência de eventuais crimes presentes na peça acusatória, mas avaliar os elementos subjetivos do réu, as suas características pessoais e sua conduta social. Enfim, revelar a sua personalidade.
A fala lembrou, não por acaso, os argumentos presentes em textos dos juristas nazistas, como Mezger e Freisler, tranquilos em expressar o pouco ou nenhum interesse nos fatos, mas nos indivíduos escolhidos pelo aparato repressivo como perigosos, merecedores do extermínio: os judeus, os comunistas, os homossexuais, etc.
Estes pequenos elementos no desdobrar do golpe, presentes no “contexto” do interrogatório – que antecede a condenação certa e avidamente contada no calendário pela grande mídia –, este processo mesmo, ele não chega a ser nem mesmo kafkiano. No livro de Kafka, Joseph K. lutava em vão para descobrir porque o processavam. Sob si recaiam engrenagens cujos desígnios eram por ele inalcançáveis. Ao final, devorado pela máquina, sucumbe ignorante sobre o conteúdo da acusação que sofrera diante da potência cega da “justiça”.
Este desdobrar pontual – mas importante – do golpe não esconde seus objetivos. O processo, insisto, é político.
E o é também na medida em que é vendido como instrumento de proteção da sociedade contra a corrupção (não provada) de um réu cujo perigo consiste em existir, em perambular solto ameaçando uma ordem que se estabeleceu – esta sim – sorrateiramente, sem o crivo democrático do voto.
A permanência de Lula é uma ameaça viva ao stablishment golpista, e dizer isto é uma obviedade. Lula não pode circular livre e solto por Liliput.
Sem a arma do voto e do respaldo popular e, exatamente para agir contra a imperiosidade do voto e contra os direitos sociais, contra o povo, os tribunais estão sendo utilizados, de forma despudorada, como instrumentos de luta política.
O paradoxo é que esta luta pelo poder não está se desenvolvendo através do debate político, mas pela linguagem do direito.
Da mesma forma que o neoliberalismo de FHC se estabeleceu e se desenvolveu com o amparo do mass media lançando recurso à linguagem da economia e retirando da cena a linguagem da política, o golpe em andamento no país transmuta o embate de forças políticas em novela policial-judicial. Manifestações políticas são tidas como arruaças e badernas, movimentos sociais são classificados como subversivos e trabalhadores tratados como bandidos.
Como já dito nestes últimos dias, Lula recompôs, pelo menos no ato do interrogatório, o discurso da política como o verdadeiro campo de disputa, desnudando os frágeis alicerces pseudo-jurídicos da perseguição que recai sobre ele.
Lula chegou à cidade como réu. O aparato militar representava o impedimento simbólico ao de se fazer política. No Tribunal somente a lei deveria estar presente. Aconteceu o contrário. Do devido processo, apenas uma paródia. E a política, supostamente excluída, entrou pela janela, desnudando o véu que pairava sobre a forma de cantilena judicial.
Tudo indica que Lula deverá ser condenado a vagar pela cidade sem poder fazer política. É que os liliputianos têm medo do tamanho de Lula e do mal que pode recair sobre eles. Lula inclusive foi perguntado se realmente era sua intenção perseguir seus perseguidores caso chegasse ao poder. A bravata de palanque foi lida como ameaça. Talvez por mera retórica persecutória, a antecipar o revide à ameaça imaginária. Talvez Freud explique.
Mas nos contorcionismos da “Operação Lava-Jato” – esta aberração inconstitucional a lembrar os tribunais da Inquisição portuguesa e espanhola –, perguntar a Gulliver se este irá machucar os liliputianos é antecipar a pena que os minúsculos habitantes querem de fato aplicar ao gigante. É a tal da pena preventiva. Sem prova, sem devido processo e sem culpa, mas é a pena que pretende evitar o risco do gigante destruir o golpe em forma de um regime que se diz político, mas que não tem voto, nem quer se submeter à democracia.
Lula saiu de Liliput maior do que entrou. Mas Liliput, em seu moralismo farsesco, a encobrir interesses vis, insiste em não sair do Brasil. É a fatalidade que paira soberba por sobre nossas vidas e que ronda o nosso futuro.