Lula e o massacre do Jornal Nacional, por João Feres

Lula e o massacre do Jornal Nacional

por João Feres Júnior, na Carta Capital
publicado 12/05/2017 12h22, última modificação 12/05/2017

O principal telejornal da Rede Globo repetiu na noite da quinta-feira 11 a estratégia da edição em 1989 do debate entre o petista e Fernando Collor

A prolongada crise política que engolfa o Brasil desde ao menos a eleição passada, em boa medida insuflada pela Operação Lava Jato, teve ontem um dos seus capítulos mais grotescos: a atualização feita pelo Jornal Nacional da edição do debate entre Lula e Collor, ocorrida em 14 de dezembro de 1989, às vésperas do segundo turno da eleição. Tal edição entrou para os anais do jornalismo brasileiro como exemplo máximo de manipulação midiática com fins políticos e projetou uma sombra que iria marcar o comportamento da mídia ao longo de todo período da Nova República até os dias de hoje.

Pois ontem a Rede Globo de televisão repetiu no seu principal programa jornalístico a mesma disposição para a manipulação da notícia com finalidade de produzir um efeito político: a culpabilização de Lula e a transformação de Sergio Moro em um herói nacional da luta contra a corrupção.

A edição foi em tudo excepcional. Durou um total de 53 minutos e 18 segundos, enquanto uma edição normal do JN dura em torno de 30 minutos. Do total, 42 minutos e 32 segundos foram gastos com material sobre Lula, ou seja, 80% do tempo total do jornal. Somente a narrativa do depoimento tomou 60% da edição, um total de 31 minutos e 41 segundos.

A descrição detalhada da edição do Jornal Nacional da noite de 11 de maio precisaria de um livro para ser feita, tamanha a riqueza de detalhes. Aqui vou apresentar um breve sumário. Começamos pelo tom grave da apresentadora Renata Vasconcellos anunciando no início do jornal que iriam cumprir “o compromisso assumido ontem de mostrar detalhadamente o interrogatório do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva”, coisa que não foi possível no dia anterior porque os vídeos foram liberados muito tardiamente para a edição do jornal. Logo em seguida ressaltam que Lula negou todas as acusações em relação à propriedade do tríplex. Aí há um certo tom sutil de deboche, principalmente na expressão facial e vocal de Bonner quando relata as negativas de Lula.

Em seguida à introdução, Bonner começa a narrativa do interrogatório e imediatamente ao fundo aparece a animação de um cano de óleo jorrando notas de cem reais. Tal animação seria mostrada em quase todas as matérias do seguimento sobre Lula, quando Vasconcellos ou Bonner apareciam na tela.

A estrutura narrativa segue o padrão Homer Simpson, lapidarmente definido pelo próprio Bonner ao comentar o estilo do JN. Os âncoras fazem uma narrativa do ocorrido e então imagens e falas são mostradas em vídeo, editadas de modo a repetir quase ipsis literis o que foi dito pelos âncoras. Bonner começa por apresentar Moro dizendo que o juiz não tinha “nada contra Lula” no começo do interrogatório, cujo objetivo era o esclarecimento do caso. Corta para o juiz falando tais coisas. A imagem passada é de compostura e seriedade quanto aos procedimentos legais.

Em seguida o JN mostra as negativas de Lula e depois sua recusa em responder perguntas sobre o sítio em Atibaia, mas já nessa notícia o jornal dá destaque para a repreensão feita por Moro a Cristiano Zanin, advogado de Lula, acusando-o de querer tumultuar a audiência, coisa que o juiz havia feito em outras ocasiões e que os jornais da Globo repetem à exaustão como fato.

Mas a desqualificação da defesa de Lula não é o único elemento importante. Falando enquanto a animação das cédulas nos encanamentos de óleo corria ao fundo, Vasconcellos volta no meio da matéria para dizer que Lula se contradisse ao confessar que recebeu Leo Pinheiro e Paulo Gordilho em sua casa para discutir a reforma da cozinha do sítio que ele insiste não ser dele e para informar aos telespectadores que a acusação diz que a obra foi paga pela OAS. Ou seja, ela editorializa abertamente aquilo que é apresentado como uma narrativa dos fatos.

Lula é então apresentado rapidamente atacando o MP, por induzir testemunhas a acusá-lo sem provas. Na matéria seguinte a âncora começa com uma fórmula adversativa: “apesar das negativas veementes de Lula de que tenha sido um dia dono do tríplex, Moro confrontou o ex- presidente com a afirmação do ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro”. Ou seja, a enunciação ao mesmo tempo que desqualifica os argumentos de Lula, apresenta o juiz como corajoso e decidido.

Emendam então o tema das indicações políticas dos diretores da Petrobrás. O tom de Bonner aí é levemente irônico ao narrar a resposta de Lula, sinalizando que ele está mentindo. Após longa enumeração de ilícitos cometidos por Renato Duque, ex-diretor da Petrobrás, e do fato de ele ter acusado Lula de ser o coordenador do esquema de propinas da Petrobrás, a âncora começa a narrar o questionamento de Moro acerca de encontro entre Lula e Duque. Esse seguimento, dominado pela narrativa dos âncoras, é montado de maneira a sugerir ligação inequívoca entre os dois personagens, a despeito das negativas do petista.

No segmento seguinte volta a editorialização, agora na voz de Bonner, que acusa Lula de inconsistência no seu relato sobre a relação entre João Vaccari e Duque. Após uma breve passagem, na qual Vasconcellos introduz trecho no qual Moro questiona Lula sobre a indicação de diretores da Petrobrás envolvidos em práticas ilícitas, entra Bonner narrando o questionamento de Moro acerca da influência de Lula dentro do PT no tocante aos financiamentos de campanha.

A editorialização volta a ser explícita, com o âncora usando uma fórmula adversativa para dizer que apesar de ser “principal líder e fundador do PT”, Lula negou ter influência sobre o partido. O tom dos âncoras sobe com a entrada de Vasconcellos dizendo que Moro apontou para uma contradição nas falas de Lula, contradição essa em seguida explicada por Bonner: uma vez ainda no seu primeiro mandato, Lula condenou o esquema do mensalão, mas depois disse que o julgamento foi 80% político. Corta para cenas do depoimento em que Moro insiste para que Lula se pronuncie sobre sua relação com personagens implicados no mensalão, coisa a qual ele se nega, aconselhado pelos advogados. Enquanto isso a animação das cédulas adorna o fundo da tela.

Repetindo a fórmula do âncora narrando o que o juiz em seguida repete nas imagens, Bonner começa outro segmento dizendo que Lula ameaçou processar delatores, policiais federais e até Moro. O vídeo é editado para fazer parecer que Lula é violento e autoritário.

Vasconcellos então fala sobre as considerações finais, dizendo que Lula defendeu seus mandatos, mas que Moro o advertiu dizendo que aquele não era lugar para propaganda política. Mais uma vez, o juiz é mostrado como compenetrado cumpridor das regras e Lula como irresponsável.

O longo trecho sobre o depoimento de Lula se encerra com comentários sobre as falas finais do petista. Vasconcellos narra que ele se diz massacrado por uma campanha de imprensa. Após tal conteúdo, a imagem corta para Moro dizendo que a imprensa “não tem qualquer papel no julgamento desse processo”. Em seguida, o que se vê são as colocações finais do juiz, a quem é dado farto tempo para atacar Lula, dizendo que ele, Moro, é vítima dos blogs que “patrocinam” Lula, e para se proteger dizendo que o processo transcorrerá normalmente.

Na última reportagem sobre o depoimento, o Jornal Nacional deixou de fora os números impressionantes do viés da cobertura midiática contra Lula, divulgados pelo petista ao fim de suas declarações. A astúcia dos jornalistas globais parecia não estar direcionada para captar contradições na fala de Moro, particularmente na defesa que fez da imprensa. Ora, pois o juiz defendeu em texto sobre a operação Mani Pulite a utilidade que vazamentos para a mídia de informações sigilosas têm em manter o interesse público sobre investigações de corrupção e “os líderes partidários na defensiva”. E ele mesmo adotou tal prática ao divulgar conteúdo de grampo ilegal de conversa da então presidente Dilma Rousseff com Lula. Cômodo esquecimento esse dos jornalistas da Globo.

Se não bastasse esse longo trecho sobre o depoimento de Lula, o jornal ainda traz três longas notícias sobre o conteúdo da delação premiada dos publicitários João Santana e Monica Santana. Em duas delas, Lula é acusado de ser chefe do esquema de corrupção da Petrobrás e de caixa 2 dos partidos. A terceira é inteiramente dedicada a acusações de que Dilma sabia tudo acerca do mesmo esquema. Novamente a animação das notas de reais saindo dos canos da Petrobrás é usada, talvez com o intuito de dar unidade temática à narrativa.

Um famoso filósofo alemão escreveu uma vez que os fatos na história acontecem a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Vivente do século XIX, não teve a chance de conhecer o jornalismo praticado pela imprensa brasileira, com destaque para o Grupo Globo. Nele a tragédia e a farsa se misturam de modo indissociável. Ademais, não se trata de uma repetição somente. Farsa e tragédia são duas faces da mesma prática jornalística cotidiana. Elas são o modus operandi da cobertura política da mídia brasileira. Antes de o JN preparar essa edição escandalosa do depoimento de Lula, o canal GloboNews reservou horas de sua programação do dia anterior para que seus comentaristas ficassem se revezando no ataque a Lula, unanimemente assumindo sua culpabilidade, a despeito de qualquer argumento que o petista tenha apresentado. O entrincheiramento político da grande mídia brasileira contra Lula e o PT é tamanho que os rituais de neutralidade e equilíbrio jornalístico adquirem tonalidades surreais. Podemos falar em uma hiperfarsa, uma farsa elevada a potência N, exponencial.

Dessa vez, contudo, o contendor de Lula não é um político, mas um juiz. É preciso notar que esse enquadramento do embate entre Lula e Moro estampou as capas de três revistas semanais. A edição do Jornal Nacional é, na verdade, o coroamento de algo que se desenhava como estratégia do oligopólio midiático: representar uma luta de vida ou morte entre o político contra o juiz. Os políticos incensados pela mídia nas últimas décadas falharam fragorosamente frente os candidatos do PT. Agora a estratégia é outra, jogar a política partidária como um todo na vala fétida da corrupção e promover o poder do judiciário, que é comodamente isolado da vontade popular. Nessa jogada para derrotar o PT, o partido da imprensa se autonomizou dos partidos políticos da direita, pondo em risco as instituições básicas da própria democracia brasileira.

Assim a farsa midiática produz diariamente a tragédia de nossa democracia. Com a edição de ontem do Jornal Nacional, voltamos ao ano de 1989. Haverá limite para esse nosso retrocesso coletivo a um passado tenebroso que uma vez imaginamos ter superado? Fica cada vez mais claro que a única solução para atual crise da democracia brasileira é a reforma radical de nosso sistema de mídia. Ele se mostrou incompatível com o experimento democrático da Nova República. Para voltarmos um dia a sonhar com a democracia teremos que nos livrar de seus mais ardorosos inimigos.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.