Parodiando frase parecida, diríamos que o Direito é importante demais para ficar em mãos de juristas.
Ademais, após o turbilhão constitucional em que mergulhamos, desde a Ação Penal 470, que explodiu todas as jurisprudências e protagonizou inúmeras violações à lógica, às leis, às doutrinas, nunca me pareceu tão falso – e mesmo covarde – o lugar comum de que “decisão judicial não se discute”.
Se não acreditar em mim, ouça Wanderley Guilherme dos Santos, nosso maior cientista político.
Na parte final de seu último livro, A Democracia Impedida, lançado há poucas semanas, o professor não economiza argumentos contra a jurisdição de exceção inaugurada pelo julgamento da Ação Penal 470, vulgo mensalão.
Estou convencido de que, no futuro, em alguma brecha no inabalável colégio de mônadas, a AP 470 será estudada como o que efetivamente foi: um julgamento de exceção. As violações operadas na lógica, na interpretação das leis, na aplicação das doutrinas, só se esclarecem se [for considerado] (…) o clima passional da época. A veemência dos argumentos, dos discursos e dos votos buscava ocupar, ofuscando-o, o vazio de provas condenatórias. As três teses esdrúxulas, espinha dorsal da AP 470, servirão de tutoria jurídica ao golpe parlamentar de 2016.
Se os próprios ministros do STF costumam dizer, em raro acesso de modéstia, que ao STF cabe errar por último, então eles próprios concordarão que a crítica às suas decisões são absolutamente necessárias.
Afinal, se os ministros “erram por último”, eles o fazem, se o considerarmos generosamente, não deliberadamente. Então é preciso que alguém os esclareça sobre seus erros, não apenas para que estes possam ser retificados, como para que não se repitam no futuro.
Entretanto, se a cultura democrática nos impele à crítica de todos os poderes, inclusive o judiciário, eu já não tenho tanta certeza se esta liberdade deveria valer, da mesma forma, para procuradores da República.
Refiro-me, claro, ao chefe da Lava Jato, Dalton Dallagnol, que, após decisão do STF, correu para o Facebook para escrever uma artigo contra a decisão da Suprema Corte de libertar José Dirceu, comparando-o a traficantes de drogas.
O artigo de Dallagnol ganhou imediatamente destaque nos grandes jornais do país, o que era previsível, desde que esses mesmos jornais se tornaram, há muito tempo, porta-vozes de todo o tipo de subversão institucional contra o Estado de Direito e contra a Constituição, ambos aparentemente considerados como um estorvo à messiânica luta contra a corrupção.
Tenho a impressão de que não é correto, a um procurador, brandir nas redes sociais sua insatisfação contra uma decisão da mais alta corte sobre um processo no qual o próprio procurador está envolvido. Não seria isso desrespeito?
Usem a imaginação! Imaginem se a moda pega? E se procuradores brasileiros resolvessem atacar os tribunais que julgam as causas em que eles estão envolvidos, a cada vez que uma decisão judicial não lhes agrade?
Seria interessante! A ditadura jurídica que assumiu o controle político do país não previu isso: uma rebelião oriunda de dentro!
Espere-se, no entanto, que a mesma liberdade seja concedida também a operadores jurídicos que se posicionarem contra a Lava Jato. Por exemplo, um ministro do STF não poderia postar no Facebook um longo texto repleto de pesadas críticas às ações de um determinado procurador?
Pensando bem, é melhor não. É melhor que críticas e elogios às decisões judiciais fiquem restritas aos cidadãos comuns, como blogueiros e comentaristas de blogs. E que procuradores e juízes se atenham aos autos.
A fúria de Dallagnol, que o blog apelidou, carinhosamente, de Zé do Powerpoint, contra a decisão do STF de libertar Dirceu das masmorras da Globo em Curitiba, enseja uma discussão sobre os arbítrios jurídicos da Lava Jato.
Os argumentos do procurador são a mesma xaropada cínica usada pela Globo desde a Ação Penal 470, sobre prender “ricos e poderosos”. É uma espécie curiosa de bolchevismo plutocrático. A jurisdição de exceção sempre foi uma voraz consumidora de clichês populistas. Dallagnol, representante desse bizarro jacobinismo seletivo, faz coro aos porta-vozes da família Marinho: prendam os ricos, prendam os poderosos, desde que, naturalmente (mas isso eles não falam), não sejam nós mesmos!
Alguns senadores brasileiros, por exemplo, já viajaram à Venezuela, acompanhados de obedientes repórteres da Globo (e depois não se sabe porque a profissão é considerada, segundo pesquisa divulgada hoje, a pior do mundo), para visitarem um “preso político” daquele país, devidamente condenado pela Justiça.
A mesma imprensa, no entanto, não faz outra coisa a não ser campanha, explícita ou por omissão, em favor de mais prisões políticas no Brasil. Há poucos dias, três membros do MTST foram presos em São Paulo, por razões puramente políticas, e enviados a um presídio, sem que nossa valente “imprensa livre” tenha se manifestado.
Voltemos ao caso Dirceu. Mais uma vez, não sou eu quem digo, e sim o judicioso e prudente Wanderley Guilherme dos Santos, no capítulo intitulado A expropriação constitucional do voto, o último do livro já mencionado acima:
De novo, não atesto a inocência de José Dirceu, porque não tenho conhecimento para tanto. Mas, ainda que culpado, ele não esteve sujeito a processo civilizado, imparcial.
Ao final do volume, escrito no segundo semestre de 2016, Wanderley encontra espaço para comentar sobre o papel da imprensa e da Lava Jato na construção do golpe parlamentar de 2016.
A imprensa, finalmente, é ator (…) crucial na trincheira da agitação e propaganda. Cabe a ela a difusão do noticiário alimentador da insatisfação larvar de diversos grupos, dispondo-os para a perversão psicológica de que a substituição da presidência da república se impõe pelo caráter agônico da crise. Competentes geradores de ansiedade e angústia, os meios de comunicação impressa tornam-se determinantemente letais como serial killers de caráter e reputação ao controlarem rádios e, fundamentalmente, canais de televisão. (…) O sequestro do poder constituinte do povo se processa por golpe parlamentar, em colusão tácita com o Judiciário e o empresariado, tendo a unanimidade relevante da imprensa como filtro do noticiário que chega às grande massas. A imprensa colabora decisivamente para a consolidação do poder usurpado substituindo a conexão de sentido entre eventos, a racionalidade comum à maioria das pessoas na percepção dos acontecimentos, pela imposição de causalidades precárias entre ações de governo e artigos do Código Penal. Na atual conjuntura, contam os golpistas, de forma transitória, com a violenta operação dos procuradores e juízes da Lava Jato, patologicamente obsessiva em atribuir malignidade por intenção a fatos insignificantes.
Ao final do livro, Wanderley alerta que o impeachment de Dilma Rousseff inaugura uma tecnologia golpista que poderá ser exportada para o resto do mundo:
O Brasil não restará solitário no conjunto de golpes parlamentares com benção constitucional. Está apenas anunciando as vicissitudes democráticas do século XXI.