Exclusivo! Wanderley Guilherme: o tipo de golpe que deram em 2016 é o que queriam ter feito em 1964

O professor Wanderley Guilherme dos Santos andava, confessadamente, triste e quieto. Entre amigos, dizia que era o momento de lamber as feridas, talvez ainda mais doloridas naqueles que, como ele, viveram intensamente um outro golpe de Estado, o de 1964.

O que poucos sabiam é que o seu silêncio era apenas aparente. Wanderley escrevia um livro, publicado agora pela editora da Fundação Getúlio Vargas, sob o título de A Democracia Impedida.

Não posso falar sobre o livro, porque ainda vou lê-lo, e ele se tornou, imediatamente, a minha prioridade número 1.

Mas posso dizer uma ou duas coisas com base na fala do professor, no debate realizado durante o seu lançamento, nesta segunda-feira 24 de abril, na sede do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), Botafogo, Rio de Janeiro.

Com seu novo livro, Wanderley é catapultado, ele querendo ou não, para a linha de frente da guerra política brasileira.

A contribuição do professor para a nossa luta política, uma luta mais sangrenta, mais suja e mais complicada do que nunca, é uma análise sombria, quase pessimista, porém moralmente devastadora para o consórcio golpista que assumiu o poder no Brasil.

Obrigado, Wanderley!

Selecionei alguns trechos do seu discurso (cuja íntegra segue ao final do post):

(…) Hoje não se fazem mais golpes no mundo por via militar. Não é necessário. Os golpes parlamentares, nesse estilo, tendem a se repetir. Basta haver um consenso majoritário entre atores poderosos. Foi o que nós tivemos.

Nós tivemos legislativo, executivo, judiciário, imprensa, órgãos como OAB, etc, de acordo com o processo que estava sendo desenvolvido.

Esta coalizão obteve algo que vinha sendo tentado pelos conservadores desde antes do golpe de 1964. Tentaram antes em 1954, e não conseguiram, mas levaram Getúlio à morte. Não conseguiram em 1964. Os militares tiveram que intervir.

O que foi que não conseguiram em 1964 e conseguiram agora? Expulsar, de uma forma aparentemente legítima, as forças populares e seus representantes, dos circuitos de poder. Hoje as forças populares não fazem mais parte do circuito de poder. E mais: isto é uma cláusula pétrea desta coalizão que assumiu o poder. Tem divergências entre si, mas há uma cláusula que os unifica definitivamente, que é não permitir que as forças populares e as lideranças populares voltem a ter uma participação relevante no circuito de poder.

(…) Para investigar essa hipótese, reanalisei o processo da ação penal 470, e verifiquei que lá foram lançadas as bases lógicas, ou ideológicas, que permitiram não só aquelas condenações, como o processo, e o impedimento posterior, de Dilma Rousseff.

Aqui vai o link para comprar o livro.

Insistam com a editora, porque circularam boatos de que estaria havendo, por parte dela, pouca disposição de promovê-lo.

Por isso mesmo acho bom comprar diretamente no próprio site da editora, para pressioná-la, pelo método mais simpático, a ampliar a distribuição e o marketing da obra.

***

Abaixo, o vídeo com o discurso de Wanderley, e a sua transcrição, ambos publicados aqui com exclusividade. Eu fiz pequenos ajustes no texto, para adequar a linguagem oral à linguagem escrita.

 

Discurso de Wanderley Guilherme dos Santos, proferido na noite do dia 24/04/2017, no auditório do IESP, em Botafogo, Rio de Janeiro.

O que me levou a escrever esse livro foi uma certa impressão inicial, de que eu não estava conseguindo arrumar, na minha cabeça dois, fatos que eu não podia negar.

Um deles era de que o processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff havia seguido, de acordo com aquilo que fica registrado nas atas, os procedimentos formais, regulares, da Constituição.

Por outro lado, a percepção de que isso ocorrera não era suficiente para me fazer aceitar que tudo se havia se passado de acordo exatamente com o que tinha sido registrado.

Alguma coisa não correspondia a meu “feeling” político.

Durante algum tempo essa insatisfação, essa inquietude, ficou comigo, até que me pareceu que eu havia encontrado uma forma de entender, e de tornar compatível, do ponto-de-vista da lógica, do entendimento, o formal do processo que havia transcorrido, com a ilegalidade substantiva que havia sido cometida.

Fui, de certa maneira, pré-convencido, de que isto havia se passado, de que havia um jogo de negações mútuas, entre o formal e o substantivo. Com este pré-convencimento, comecei a reinterpretar este passado recente, desde o processo de julgamento da Ação Penal 470, codinome mensalão, do qual eu havia acompanhado, religiosamente, diariamente, todas as discussões, apresentações, fotos, perorações, etc. Foram seis meses de permanência diária na televisão. Acompanhei. Resolvi refletir, de novo sobre o que eu havia visto. Então urdi uma narrativa que me pareceu convincente, para mim pelo menos, de como daquele julgamento na AP 470 chegou-se ao processo de impedimento, mais ou menos com as mesmas características de tensão entre o formal e o substantivo.

A primeira coisa que ficou claro para mim era que, independentemente da culpabilidade ou não, das pessoas que foram julgadas, condenadas, o processo mediante o qual elas foram julgadas, foi um processo viciado.

Eu não tenho nenhum compromisso com a inocência de nenhum dos culpados, condenados, e presos. Não tenho nenhum compromisso. Não quer dizer que eu concorde. Eu simplesmente não tenho informação suficiente. Não tenho expertise. Não tenho tarimba, habilidade suficiente, para pegar todas aquelas pastas dos processos, e analisar de acordo com o regime estritamente jurídico do código… não tenho essa capacidade. E, portanto, não sei se há base jurídica para condená-los ou não; o que eu sei é que, ainda que tenha havido, o modo pelo qual eles foram condenados, foi fraudulento. Isso foi o ponto 1.

Ponto 2.

Isto foi o que também ocorreu, me parecia, no processo de impedimento de Dilma Rousseff.

Eu resolvi analisar se essa hipótese se justificava, se havia um processo fraudulento de usar preceitos constitucionais, legais, para se obter um desenlace que de outro modo não se teria obtido.

Para investigar essa hipótese, reanalisei o processo da ação penal 470, e verifiquei que lá foram lançadas as bases lógicas, ou ideológicas, que permitiram não só aquelas condenações, como o processo, e o impedimento posterior, de Dilma Rousseff.

A primeira violência política da AP 470 foi cometida pelo relator ministro Joaquim Barbosa, ao declarar que a Constituição era o que o Supremo diz que ela é. Isso consiste num sequestro do poder constituinte do povo!

O que o Supremo faz é interpretar, adjudicar, e verificar, se os fatos trazidos, estão conforme os preceitos existentes na Constituição. Evidente que parece impossível deixar de haver uma interpretação dos preceitos constitucionais, para saber se o caso se aproxima ou não. Claro. Mas também é verdade, e este é o problema, que, ao fazer isto, também é possível fazer com que uma coisa pareça outra. Eu não estou negando a viabilidade, a permissibilidade, e até a autoridade e mandato, dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em interpretarem preceitos constitucionais. O que, sim, estou negando, é reporem, ou substituírem, preceitos constitucionais óbvios, flagrantemente explícitos, por interpretações em função da autoridade do STF. Isso é o que ele não pode fazer, e, no entanto, fez, várias vezes.

E aí vem a segunda descoberta das bases que foram colocadas na AP 470: foi a sutil, escandalosa e violenta distinção entre a obrigação do procurador de provar a culpa do acusado, da obrigação do acusado provar que ele não tem culpa. Ele não é obrigado a provar que é inocente. Mas ele era obrigado a provar que não tinha culpa.

Falando assim, parece que não é verdade, mas foi assim. O ministro Ayres Brito, numa das sessões cruciais do julgamento, afirmou que ele não podia provar que o senhor José Dirceu estava presente e era sabedor de certos acertos, não sei de que ordem, mas que o senhor José Dirceu não conseguia provar que não estava e não sabia.

Ora, é impossível alguém provar que não sabe alguma coisa!

Você pode provar que alguém não sabe o que diz que sabe. Isso se prova.

Mas você não consegue provar que alguém sabe aquilo que ele diz que não sabe. E foi isso o que ministro Ayres Brito colocou como “frame”, como moldura, dentro da qual o senhor José Dirceu tinha que defender a sua inocência.

Ele não tinha que defender a sua inocência no sentido abstrato. Ele tinha que defender a sua inocência provando a todos que ele não sabia o que estava se passando em tal reunião, na qual ele não estava presente segundo todas as indicações e segundo todos os testemunhos.

Isso é uma fraude!

E isso foi aceito por todos os ministros do Supremo.

E isso foi aceito por toda a audiência do país. Pelos meios de comunicação. Pelos órgãos de representação.

Essa violência, essa fraude, não foi denunciada!

Como é possível culpar alguém que não consegue provar que não sabia o que nós dissemos que ele sabe?

Aí vem a participação da ministra Rosa Weber.

A ministra Rosa Weber elaborou o seguinte juízo. Isso está gravado. Faz parte do voto da ministra.

“Quanto mais elevada é a posição do criminoso na organização criminosa, menos pistas, ou provas, ou evidências teremos de sua culpabilidade”.

Portanto, a inexistência de qualquer prova – como de fato não existiu nenhuma prova – é evidência de que o senhor José Dirceu era o culpado.

Essa estrutura é a espinha dorsal da Ação Penal 470.

Isso foi aceito por todo o Supremo. Por toda a imprensa. Por toda a inteligência brasileira liberal. Todos os liberais aceitaram.

E foi essa mesma permissão de interpretar a Constituição, de modo ad hominem, de modo personalizado, e dizer o que ela evidentemente não diz, e todos concordarem pelo silêncio, levou-me a entender e a descrever como se passou o processo de impedimento de Dilma Rousseff.

Essa exposição que eu acabo de fazer, muito breve, eu imagino que ela esteja bem mais minuciosa no livro.

Mas meu compromisso com essa interpretação é total!

Eu não escrevi um livro de propaganda. Eu não fiz um livro partidário. Eu não fiz um livro de publicidade.

Eu fiz e escrevi um livro porque é esta a minha análise desse momento importante do país, cujas consequências, eu acho, se estenderão para fora do Brasil.

Hoje não se fazem mais golpes no mundo por via militar. Não é necessário. Os golpes parlamentares, nesse estilo, tendem a se repetir. Basta haver um consenso majoritário entre atores poderosos. Foi o que nós tivemos.

Nós tivemos legislativo, executivo, judiciário, imprensa, órgãos como OAB, etc, de acordo com o processo que estava sendo desenvolvido.

Esta coalizão obteve algo que vinha sendo tentado pelos conservadores desde antes do golpe de 1964. Tentaram antes em 1954, e não conseguiram, mas levaram Getúlio à morte. Não conseguiram em 1964. Os militares tiveram que intervir.

O que foi que não conseguiram em 1964 e conseguiram agora? Expulsar, de uma forma aparentemente legítima, as forças populares e seus representantes dos circuitos de poder. Hoje as forças populares não fazem mais parte do circuito de poder. E mais: isto é uma cláusula pétrea desta coalizão que assumiu o poder. Tem divergências entre si, mas há uma cláusula que os unifica definitivamente, que é não permitir que as forças populares e as lideranças populares voltem a ter uma participação relevante no circuito de poder.

Tentaram isso em 1953. Tentaram em 1954. Só conseguiram com os militares, mas aí não por uma via aparentemente constitucional, por via política formal. Isso conseguiram agora.

Meu compromisso é tanto com essa análise, que eu diria, para terminar, o seguinte.

O somatório de evidências, supostas evidências, delações premiadas, e tudo mais, sem prejuízo daquilo tudo que, efetivamente, ocorre… Não estou discutindo isso! estou discutindo outro ponto! Estou discutindo algo que tenha acontecido que justificasse o impedimento de Dilma Rousseff. Não foi nada disso. E tanto não foi que agora vou me lançar ao mar. Se, semana que vem, o senhor Marcelo Odebrecht, ou qualquer outro, viesse a público, ou fosse a juízo, e assinasse em juízo, de que tudo que ele havia dito, agora, na delação, era mentira, não importaria, porque isto que está acontecendo é a cobertura legal de uma fraude essencial. Se houvesse um desmentido, não importaria. Imediatamente, eles conseguiriam uma declaração do impedimento mental do senhor Marcelo Odebrecht. Ou seja, aqueles que tiverem disposição de ler o livro, leiam por favor com essa perspectiva.

Eu tenho um compromisso como intelectual, como professor, e como cidadão.

Não escrevi, insisto, um livro de propaganda. Eu escrevi um livro acadêmico, de análise, que, entendo, mostra a falência lógica, a fraude política, que desde a Ação Penal 470, a política brasileira vem sofrendo.

Muito obrigado pela atenção.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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