Por Rogerio Dultra dos Santos, colunista de política d’O Cafezinho
Este artigo poderia se chamar de “A nova fase do golpe”. Isto porque o golpe dentro do golpe avança em direção às tropas mercenárias, aliadas, e até aos generais “de dentro” – mesmo que tudo indique que seja apenas para inglês ver.
A relativa “democracia” da lista de delatados do Ministro do STF Edson Fachin – chegando a nomes tidos como “ilibados” – atinge percentual significativo do Congresso Nacional. Afeta também governadores e vários ministros do regime Temer, o beneficiário da primeira fase do golpe.
Mas o que importa mesmo é como a “Lista de Schindler” às avessas da política tupiniquim vai ser interpretada pela mídia. E em qual direção essa interpretação aponta.
Vê-se que o feriadão será povoado pelo mote da criminalização da política, acentuando o moralismo de araque de conglomerados de comunicação, envolvidos até o talo nas mesmas práticas que denunciam em afã condenatório.
E não se engane: o alvo prioritário continua sendo o PT e, em especial, o desmonte da candidatura de Lula. FHC, Aécio, Serra et cateva são cartas fora do baralho e não serão incomodados para além de citações telegráficas e respeitosas. Temer somente o será na medida em que a sua fragilização permitir que se acelere o andamento do que ele precisa entregar. Mas certamente a sua situação foi sensivelmente fragilizada. Se não mesmo inviabilizada. O resto, são ataques teleguiados a eventuais presidenciáveis de primeira viagem, como Cassab, Eduardo Paes e Haddad.
Em espectro mais largo, este movimento de avaliação seletiva da delação de Marcelo Odebrecht e outros delatores aplaina o terreno para um contra-golpe sem Temer ou para a solução “mágica” do salvador da pátria de ocasião, que provavelmente está sendo preparado nos laboratórios da extrema direita. Mas como se chega lá?
Salvacionismo
Em primeiro lugar, a delação de Odebrecht somente de forma rápida é apresentada como um tsunami de lama a encobrir os alicerces de Brasília. A mira do judiciário não se focou de forma “democrática” para o lado do PSDB, por exemplo. Continua querendo Lula.
Em que pese Odebrecht estar preso há dois anos e sua interessadíssima delação – manifestação “livre” sob espada, como diria o teórico da soberania moderna Thomas Hobbes – ter sido milimetricamente negociada e preparada, essas inconstitucionalidades ou mesmo ilegalidades do processo não vêm mais ao caso. Não vêm ao caso também a falta de provas ou de investigação.
Assim, o que importa é o efeito simbólico que a repetição da delação “consistente” e “detalhada” de Odebrecht produz instantaneamente na “opinião pública”. O que importa é asfaltar o terreno para se avançar em direção a Lula. Como já disse em outro lugar, a narrativa da mídia, que molda a realidade de acordo com seus interesses editoriais, políticos e econômicos, essa “narrativa ficcional, transformada em notícia e condenação em rede nacional modificam, pela imposição social e política de sua “verdade”, o próprio processo jurídico. A interpretação pronta que criminaliza é repetida — rotinizada — e convertida em um fenômeno “natural”, isto é, que não necessita ser questionado em sua naturalidade. As notícias que circundam os escândalos políticos nacionais são organizadas segundo as características estruturais do drama — conflito narrativo, personagens em ação dramática (mocinhos, vilões, testemunhas, etc.) e lições de moral.”
A narrativa aponta para a quadrilha de ladrões que assaltou o Estado, e que vai se transformar na novela de que os políticos são todos ladrões, isto é o que importa. Este discurso é tanto mais necessário quando não se alcança vitória política pelas vias eleitorais normais. E ele vem desde a AP 470 e completa 12 anos.
Em segundo lugar, outra conseqüência desse movimento em direção ao salvador da pátria é que a ideia mesma da atividade política como elemento essencial da vida social está sendo posta no sal.
E, para adiantar o argumento, a lógica aqui é colocar no lugar dos corruptos um governo “técnico”, “neutro” e “competente”. Esta é a receita das ditaduras. Ou, no “mínimo”, de um governo fraco, gerenciado à distância por interesses alienígenas. De qualquer forma, este movimento atinge gravemente a saúde política de Temer.
Outro elemento em direção ao salvacionismo é a fragilização dos políticos. A “Lista de Fachin” colocou a classe política nas cordas e esta sofre de fato e de direito um brutal ataque, orquestrado em dueto pelo Judiciário e pela mídia.
Se por um lado a quase centena de políticos delatados pode esperar um tratamento diferenciado, todos eles se tornam reféns da parceria Judiciário-Mídia. Serão instados a andar na linha e não furar o esquema que prepara a fogueira para Lula.
É o caso, por exemplo, de Renan Calheiros, líder do PMDB no Senado. Renan acenou romper com Temer e se aproximar a Lula. Não vai durar solto – obviamente se for preservado o andamento das denúncias seletivas da PGR no STF.
A “Lista de Fachin” é, portanto, um freio de arrumação no golpe. Um movimento que realinha ou que pretende realinhar as tropas em polvorosa ou em movimentos variados de deserção.
Reação em cadeia (ou na cadeia)
Os delatados do Congresso Nacional provavelmente aproveitarão o fim de semana turbulento para digerir a pancada e tentar minimamente uma reação. Ou se manterão acocorados, aguardando instruções do golpe.
Uma eventual reação poderá ser organizada em articulação com o Palácio do Planalto. Se a reação não vier e for efetiva, o caminho de ambos, Congresso e Planalto, continuará a ser traçado sob a batuta cada vez mais desinibida da República de Curitiba.
Os efeitos políticos da “Lava-Jato” atingem o seu auge, não somente por esquentar as turbinas para garantir a inelegibilidade ou mesmo a prisão do Ex-Presidente Lula, conforme já anunciado aqui há quase dois anos.
O que estamos assistindo significa igualmente uma clara ruptura com o modelo do “conservar mudando” da política nacional. A transação entre interesses variados das elites se substitui pelo trator de uma agenda de desmonte que é pouco afeita a negociações. Não há espaço para dissidências ou agendas paralelas. Fragilizado, o país assiste impávido ao seu desmonte.
Vale dizer que a Nova República não acabou com a queda de Dilma Rousseff ou mesmo com a ascensão de Michel Temer, o preposto da Casa Grande que, a cada dia que passa, se aproxima mais e mais do cadafalso.
A República que a Ditadura Empresarial-Militar permitiu existir termina com o fim do pacto das elites, especialmente com a entrada em cena deste novo ator político que é o Judiciário – representados pelos próceres da “Lava-Jato”, pelo STF, pelo TSE, mas não somente.
Em lugar da democracia parcial, equilibrada precariamente no pacto constitucional de 1988, está em gestação um novo momento, que pode ser o da Pós-Política, ou como diz o professor e juiz Rubens Casara, o da Pós-Democracia. E pode ser este o momento do fascismo, da manifestação da dominação através da violência pura e simples, sem a necessidade da mediação de instituições. O país da “meganhagem” como teme e lamenta o Ex-Ministro da Justiça e procurador Eugênio Aragão.
O que é certo é que o negócio entre as elites econômicas e a classe política está sendo implodido nos moldes atuais por esse Deus Ex Machina que são as condenações instantâneas de reputação via televisão. O Judiciário, em posição de obediência feliz, acena a reboque com o verniz de neutralidade dos procedimentos jurídicos.
Ciro Gomes, que foi deixado de lado pelo golpe até agora, talvez o tenha sido para figurar como o elemento legitimador desse processo de eliminação da democracia e da política como formas de organizar o país. [Afinal, a blindagem de Ciro – ou de qualquer um – independe, em tempos de exceção, dele ter ou não feito qualquer coisa. Depende, isto sim, dele servir ou não, atrapalhar ou não o andamento do golpe.] Se crescer nas pesquisas presidenciais, vai para a massa de mira com a maior facilidade.
Outra presidenciável, capaz de aglutinar ao seu redor as figuras que dão sustentação ao golpe, Marina Silva, nada teve a dizer até agora e deve esperar quieta a roda da fortuna eleitoral bater mais uma vez à sua porta.
O PSDB, de forma ainda não dimensionada maculado pela “Lista de Fachin”, deixa de ser o representante oficial do golpe e outros elementos, mais aventureiros, hão de cumprir melhor, e de forma mais subserviente, o papel de governar o Brasil para os outros. Oxalá o feriadão da Páscoa possa trazer nova luz e nova vida à política, esta senhora somente não mais maltratada que a nossa finada democracia.