Eu reproduzo abaixo artigo do amigo Rodrigo Vianna, publicado em seu blog, mas antes queria acrescentar alguns comentários.
Eu concordo com a análise de Rodrigo Vianna a um nível filosófico mais profundo: a estabilidade política só poderá ser alcançada se trouxer junto uma série de avanços sociais. Sem melhorar a vida do trabalhador, sem lhe dar um mínimo de liberdade para eleger seus representantes políticos, nunca haverá paz. E sem um mínimo de paz não haverá jamais crescimento econômico sustentável.
Quando saímos do campo da filosofia política abstrata, todavia, e fazemos uma análise da realidade concreta, a tese de Vianna me parece excessivamente otimista. E olha que eu sempre me considerei o mais otimista dos analistas!
A sua análise se ancora numa manifestação isolada de Nelson Jobim, que sempre foi amigo de Lula, e sempre o defendeu, para dela extrair a conclusão que “parte mais lúcida da elite política e empresarial já percebeu o óbvio: impedir Lula de ser candidato, no tapetão, como pretendem os celerados de Curitiba, teria um duplo caráter desestabilizador”.
Há dois problemas nessa análise:
1) O golpe, desde o início, serviu para amordaçar, intimidar e mesmo criminalizar precisamente uma boa parte dessa “elite política e empresarial”.
As forças por trás do golpe são maiores do que essa elite.
Elas são formadas, em primeiro lugar, por um consórcio de estamentos do Estado que, subitamente, tomaram consciência de sua força. A elite do funcionalismo percebeu que, unida, ela se torna uma força absolutamente avassaladora, invencível. As maiores empresas do país se tornam liliputianas diante dela, porque ela, e só ela, tem o monopólio da violência. Quem poderia enfrentar Judiciário, MP e PF unidos? Somente a Globo, que é associada ao capital internacional, teria condição de desequilibrar a luta, mas foi justamente a Globo que incentivou esses movimentos subversivos, autoritários e inconstitucionais. A Globo é o padrinho, o Godfather, de todo esse movimento.
Em segundo lugar, as forças do golpe também estão no exterior, em governos e corporações infinitamente mais poderosas do que nossa “elite política e empresarial”, que aliás é fraca, desorganizada e ideologicamente confusa. Quem sempre liderou a nossa “elite empresarial” foi a imprensa do eixo Rio-São Paulo. A nossa elite sempre viu a grande mídia como a sua principal arma e seu único ponto de apoio organizado. Mas a Globo, por rancor político e razões financeiras outras, traiu a própria burguesia brasileira, em nome de sua associação com o Estado autoritário, de um lado, e com os interesses imperialistas, de outro. E a Globo quer a cabeça de Lula, custe o que custar. Vide a nova campanha em favor da Lava Jato lançada pela Globo nos últimos dias.
2) Não sei se uma boa definição para Lula, neste momento, seria essa, de ser um fiel da estabilidade. Lula, hoje, representa, ao contrário, o fiel da luta de classes. E isso contra a vontade dele, que sempre foi um conciliador. Mas essa é uma luta milenar, interminável, infinita, entre ricos e pobres, ou entre os que se alinham com os ricos, em nome da desigualdade (que tem capacidade para produzir grande quantidade de energia econômica e política, por causa da concentração de capital), e os que se alinham com os pobres, pela justiça social (que produz energia também, e muito mais, porém de maneira mais gradual e lenta). O Lula 2018 me parece muito diferente do Lulinha paz e amor de 2002 e não por vontade de Lula, repito, mas pelas circunstâncias. Parodiando o Novo Testamento, o Lula 2018 é aquele que não veio trazer a paz, e sim a espada.
Por mais que me doa pensar assim, a “estabilidade” já não interessa ao povo brasileiro. Não enquanto não mudarmos uma série de coisas. Como poderemos ter estabilidade com um judiciário, um ministério público e uma polícia federal agindo em conjunto (o que é ilegal, eles deveriam servir de freio uns aos outros), contra o povo brasileiro?
O que traria “estabilidade” ao país, e mais uma vez isso eu o digo com muita angústia, é uma feroz ditadura judicial, repressão absoluta dos críticos, controle da informação, criminalização da política, das manifestações populares e do debate político. É fechar todos os blogs, sobretudo os de esquerda, e proibir críticas a qualquer autoridade na internet. De certa forma, é o que já estão tentando fazer, procurando sempre dar uma forma “democrática” à ditadura…
Parodiando Rimbaud, eu temo a estabilidade, porque é a estação do conforto!
Lula é, sim, o fiel da balança da nossa democracia, mas de uma democracia barulhenta, instável, prenhe de lutas, em crise permanente, como tem sido todas as democracias ocidentais, ao menos enquanto a maioria da população não conquista direitos básicos.
Precisamos agora é de uma democracia sem “estabilidade”, desconfortável, dolorida, que obrigue, à força, os estamentos e as elites econômicas a aceitarem transformações profundas.
O principal problema da análise de Rodrigo, contudo, é que ela normaliza o estado de exceção.
Os últimos tempos testemunharam uma quantidade tão monstruosa de barbaridades midiáticas e jurídicas que há uma tendência, que é uma característica do nosso próprio desespero, de considerar qualquer insignificante cortesia por parte dos opressores como um gesto de maravilhosa grandeza.
A opinião pública, torturada por anos de manipulação, violências e crise permanente, age como o torturado ao qual, após muitas horas no pau de arara, sofrendo todo o tipo de sevícias, é permitido sentar-se numa cadeira e fumar um cigarro.
Ora, o torturador, a mídia, sabe que é preciso dar um descanso, de vez em quando, ao torturado. Sabe que precisa simular um mínimo de humanidade.
Então a Globo exibe uma matéria de 1 minuto e meio sobre o caso do Eduardo Guimarães, sem dar nenhuma opinião, sem “bater” no blogueiro, e a gente acha que tudo mudou?
Que a Globo, subitamente, humanizou-se e tornou-se “democrática”?
Nada disso! Por acaso a Globo fez um editorial duro com críticas aos arbítrios de Sergio Moro contra os blogueiros?
Não fez.
Por acaso a Globo está disposta a aceitar iniciativas para descentralizar a produção de informação, trazer mais pluralidade política aos meios de comunicação e ampliar o controle democrático sobre as concessões públicas de TV?
Não está.
Então que se dane o cigarrinho e a permissão de se sentar na cadeira.
O torturador não é bonzinho.
A Lava Jato ainda tem muitas cartas na manga. Ela prendeu muita gente, com objetivo puramente político, para intimidar, torturar, desestabilizar, extrair as confissões desejadas.
Como assim as coisas melhoraram se o TSE se tornou nova fonte de instabilidade e está prestes a ser aparelhado pelo governo Temer?
O “partido da Lava Jato”, por assim dizer, assumiu o controle do TSE, porque o processo de cassação, passou a ser pautado por delações articuladas inteiramente por ele.
O fato do julgamento do TSE ser adiado indefinidamente mostra que o objetivo é justamente transformá-lo em espetáculo, em fonte de vazamentos, em instrumento de intimidação. Às vésperas de um evento importante, de uma votação, de uma manifestação, o TSE poderá vazar à Globo o pedaço de uma outra delação, e, com isso, a Lava Jato continuará pautando e controlando a agenda política nacional.
Esse é o jogo.
O que talvez esteja acontecendo, e aí eu posso concordar com Vianna, é que o tempo está passando, e as contradições da Lava Jato e do golpe estão ficando mais evidentes.
E a gente está conseguindo, aos poucos, raciocinar, e vocalizar esses raciocínios.
Um dos segredos do golpe tem sido bombardear a opinião pública com tanta histeria, factoides, mentiras, vazamentos bombásticos, perfazendo uma tempestade semiótica tão terrível, que impede a opinião pública de fazer análises minimamente lúcidas sobre a conjuntura. Daí advém a sensação horrível de medo, asfixia, opressão, confusão, que anestesia a população, inclusive suas frações intelectuais, e a impede de reagir.
Entretanto, lembrando a canção dos Stones, “time is on my side”.
O tempo está do nosso lado, porque à maioria da população não interessa, obviamente, nenhuma política “impopular”, nem golpe, nem repressão, nem concentração da mídia.
E o que não interessa à população, numa democracia, também não deveria interessar aos empresários que dependem dessa população para vender bilhetes de avião, abrir shoppings, inaugurar salas de cinema e criar novas apólices de seguro.
A crise talvez esteja abrindo os olhos de um ou outro empresário sobre essa realidade. Uma economia de mercado precisará sempre de algum tipo de socialismo, que proteja não apenas a população consumidora da voracidade irracional do capitalismo selvagem, mas igualmente os próprios empresários de sua ambição autodestrutiva.
Além disso, o simples fato de poder polemizar com esse instigante artigo de Rodrigo Vianna já é um sinal de vitalidade da nossa parte.
Então a gente tem esse enorme capital a nosso lado, o tempo, e que vai se acumulando dia a dia. Quanto mais o tempo passa, mais conseguiremos esclarecer a opinião pública sobre as artimanhas da mídia, principal fiadora do golpe e do governo que nasceu do golpe.
Abaixo, o artigo do Rodrigo.
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Lula é a estabilidade possível contra o caos dos camisas negras
por Rodrigo Vianna, no Escrevinhador
4 de abril de 2017
Por trás da fumaça que vem do Tribunal Superior Eleitoral (o TSE, como se sabe, decidiu adiar o julgamento da chapa Dilma-Temer, oferecendo sobrevida ao moribundo consórcio Temer/PMDB/PSDB) e de Curitiba (a Lava-Jato se consolida como um Tribunal de Exceção, conduzido por um juiz desequilibrado que manda prender blogueiro), alguns movimentos quase imperceptíveis no mundo da política indicam que o cenário mudou.
O fato político mais importante dos últimos 10 dias não foi, tampouco, a capa da “Veja”, que indica Aécio Neves no mesmo caminho trilhado por Carlos Lacerda em 64: implorou pelo golpe, achando que herdaria o poder, e terminou cassado pelo processo que ajudou a fomentar. Aécio é um cadáver, e será devorado, mas deixemos os mortos vivos em paz… O fato mais importante foi outro: a declaração enfática de Nelson Jobim (ex-ministro do STF, mas que é sobretudo um peemedebista com trânsito no PT e no PSDB) defendendo que “proibir Lula de ser candidato é fazer o que fizeram os militares”.
A frase de Jobim indica que a parte mais lúcida da elite política e empresarial já percebeu o óbvio: impedir Lula de ser candidato, no tapetão, como pretendem os celerados de Curitiba, teria um duplo caráter desestabilizador.
Significaria, primeiro, cassar a voz e a representação de algo entre 30% e 40% dos brasileiros – índice que Lula alcança nas pesquisas de opinião para a eleição (?) de 2018; sem voz pela via institucional, parte desse setor poderia partir para a confrontação “por fora” do sistema político; Lula candidato significa estabilidade, significa os movimentos sociais e a esquerda “por dentro” da política.
Mas a prisão (ou cassação) de Lula seria trágica também para a direita “liberal”, digamos assim; sem Lula na disputa, o próprio PSDB e seus satélites na mídia, na internet e na Justiça perderiam a razão de ser.
Não é à toa que nas últimas semanas certo blogueiro, que durante anos ajudou a fomentar o ódio contra Lula e o PT, assumiu posição mais moderada – criticando os “exageros” de Moro e dos camisas negras de Curitiba. Da mesma forma, o (por assim dizer) ministro do STF Gilmar Mendes passou a criticar os abusos da Lava-Jato.
Pensemos um pouco: se Lula, que tem 30% a 40% dos votos, for impedido de concorrer por um juiz de primeira instância (a sentença teria que ser confirmada no TRF-4, que já deu mostras de endossar o tribunal de exceção da Lava-Jato), esse ato significaria o desmonte não do lulo-petismo, mas do próprio sistema político.
Se a Justiça, numa canetada e sem provas consistentes, pode impedir um candidato com 30% a 40% dos votos, pra que serviriam o PSDB, o Reinaldo Azevedo, o Gilmar Mendes e os demais satélites tucanos?
“Não existe Salieri sem Mozart”, dizia um velho amigo já em 2013. O invejoso compositor Salieri era o grande rival do gênio Mozart no século XVIII; a razão de ser de Salieri era oferecer um contraponto ao tempestuoso e polêmico Mozart. Se o “juizeco de primeira instância” (como diz Renan Calheiros) puder barrar Lula, significa que ele tem poder para tudo. E aí o PSDB será arrastado junto. Perderá a função de representar setores médios que, desde 2013, se deslocaram do centro para a direita.
As pesquisas indicam que os tucanos já claudicam nas pesquisas, abaixo de 15%. Estão mais chamuscados que Lula, na medida em que se tornaram sócios do pior governo da história brasileira, desde Washington Luiz. Hoje, o país já se divide claramente entre a política (ou seja, a ideia de que o Estado organizado pode, e deve, ser o condutor da Nação) e um discurso anti-política que resvala para o autoritarismo (Bolsonaro, Dória e Luciano Huck são oportunistas e aventureiros que tentam surfar nessa onda).
A centro-direita menos obtusa já compreendeu o perigo que significa barrar Lula. Seria um suicídio da política. Seria caminho para a aventura despótica.
Renan Calheiros, odiado e desprezado por tantos, também já percebeu que Lula é o fator de estabilidade não só da centro-esquerda. Mas da própria ideia de que é possível concorrer sob regras gerais e respeitar a vitória do adversário.
No velório de Dona Marisa, sob o grito bestial da direita extremada que comemorava a morte da ex-primeira dama, FHC e Gilmar emitiram sinais a Lula de que o jogo, sem o líder petista, pode ficar perigoso demais.
O mundo dos sonhos da direita liberal inclui Lula na urna em 2018: sob ataque, contestado, bombardeado… Mas candidato. Um Lula “para perder” e legitimar o sistema político: essa a aposta do setor menos tresloucado da direita, que percebe os perigos embutidos na Lava-Jato.
Um Lula com 40% dos votos no segundo turno, derrotado por um candidato “liberal” – da mesma forma que em 94 e 98. Esse o roteiro de reinaldos, gilmares e fhcs. Mas falta combinar com bolsonaros, joyces, mbls e suas falanges…
São duas variantes da direita. A segunda variante incensa Moro e não aceita nada menos do que Lula preso, humilhado, barrado, não importa o mal que isso possa significar para a democracia. Se essa variante sair vitoriosa, a primeira variante (tucana, mais “liberal”) perde a razão de existir. E esse quadro está prestes a se consolidar, lançando o PSDB como um todo no mesmo lamaçal em que já chafurda o morto-vivo Aécio Neves.
Se a variante extremista sair vitoriosa, o que pode vir é uma república comandada por camisas negras. Eles sonham em trucidar Lula para, logo depois, usurpar todo o poder, eliminando também tucanos et caterva (quem não se lembra da frase de Danton, ao ser conduzido à guilhotina pelo terror da Revolução Francesa: “o que me conforta, Robespierre, é que depois de mim virá você”; e a previsão se cumpriu).
Não nos iludamos: a aliança da Lava-Jato com o PSDB foi tática. Existe um “partido da justiça e da polícia”, e esse partido pode evoluir para a eleição de um juiz, ou de um extremista que saiba manipular os signos da anti-politica.
Lula é o único que, por dentro da política, tem ainda força e legitimidade para enfrentar a matilha extremista.
Esse o sinal emitido por Jobim que, com esse movimento, também tenta se viabilizar como alternativa “pacificadora”, numa eventual eleição indireta, se Temer não sobreviver ao TSE. Jobim pode ser a “transição” para se chegar a 2018. Acontece que o PSDB queimou quase todas as pontes, fomentou ódio demais, e agora não consegue guardar o fascismo na garrafa.
A direita “liberal” achou que usaria os extremistas para destruir o PT e finalmente ocupar o poder após quatro derrotas. Mas, hoje, começa a perceber que precisa de Lula para conter o extremismo.
Lula é fator de estabilidade para a Democracia. Jobim e Gilmar talvez sonhem com um Lula “pra perder”. Mas falta combinar, primeiro, com os camisas negras que querem prender e trucidar o petista; e, depois, com os eleitores que podem levá-lo de volta ao poder, se a Democracia resistir até 2018.
É por essa estreita passagem que vamos caminhar nos próximos meses…
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