Por Tadeu Porto*, colunista do Cafezinho
Vim cadenciando, toquei a bola, recebi de volta, e quando fui dar um pique para alcançar a pelota novamente, torci meu pé pela milésima vez, tropeçando e perdendo a jogada que meu time construiu com muito custo.
“Porra (no futebol não há muito espaço para educação), torceu o pé de novo?” disse um companheiro de futevol. “Também, com esses pés tortos, me admira que consegue andar”, completou rindo o camarada, causando uma explosão de gargalhadas entre os peladeiros.
Eu ri também, na hora. Chorei depois… Minha mãe, não acostumada a me ver triste depois da minha atividade física preferida (nervoso já me viu várias vezes, fico puto quando perco) veio tentar descobrir o que aconteceu. Depois de escutar a história, encontrou ali a oportunidade perfeita para me levar a um médico ortopedista, afinal, ela mesma estava cansada de ver seu filho adolescente, desengonçado e gordinho, com calcanhares inchados, como baby, o porquinho atrapalhado.
“Com essa pisada, me admira que ele ainda tenha tornozelo”, cravou o doutor certo momento da consulta, me fazendo relembrar, com uma careta no rosto, do final de um filme que fazia muito sucesso na época, Jogos Mortais I.
Logo após, na conversa pós consultório minha querida mãezinha, notando o semblante triste que acompanhava, de cabeça baixa, as laterais das plantas dos meus pés pousadas sobre o piso do busu que nos sacudia para casa, tentou me animar: “É que seu joelho é varo, meu filho, por isso seus pés ficam tortos. Mas não é nada demais, você é muito lindo e não dava para ser todo perfeito” (mãe é mãe, não é?).
Foi aí então que vi Forrest Gump pela primeira vez. Pensei que meus pés tortos não seriam tão ruins assim, afinal, me fez ter identificação com um dos personagens mais fascinantes que meu limitado conhecimento de cinema em proporcionou conhecer. Por causa daquela pisada esquisita, não só queria correr como Forrest, mas também queria ter seu entusiasmo, simplicidade, humildade e alegria de viver.
O tempo foi passando e passando. Ganhei alguns apelidos, tropecei mais umas outras mil vezes, mas hoje até tenho um certo carinho pelas minhas torres de pisa. Vivo tranquilo com minha pisada dez para as duas e meu andar de Pato e, volto e meia, sequer lembro que não consigo juntar meus pés alinhados paralelamente sem sentir dores e cãimbra nas coxas.
Mas honestamente, não sei se conseguiria viver de boa com uma característica minha na qual eu fosse lembrado, sistematicamente, o quão “errada” ela está.
Não sei se aguentaria,por exemplo, escutar que “não há nada demais em ter pés tortos, até tenho amigos que são assim, é só uma questão deles ficarem na deles, enquanto meus pés perfeitos desfilam por aí”. Ou então ser isolado do futebol pois é uma coisa para quem tem pisada reta, e patos não tem espaço.
Deve ser difícil imaginar que no trânsito as pessoas condenariam minha habilidade de direção por causa dos meus pés tortos, ou que por causa deles eu teria que escolher a profissão de cabeleireiro, estilista, dançarino ou vendedor pois combina mais com meu perfil
Além do mais, se realmente é difícil ser um alguém questionado pelas pessoas, tento imaginar a péssima sensação que deve causar ver um estádio de futebol inteiro usar um caracterítica sua para tentar ofender alguém, como se fosse pecado ser você mesmo.
Sei que muitas pessoas tiveram ótimas experiências individuais com atitudes homofóbicas. Na roda de violão, fulano escolheu aquele amigo “com jeitinho” e cantou Robocop Gay para ele, fazendo geral cair na risada. Aquela piadinha com gaúcho já quebrou milhares de gelo para alguém e aquelas peças “meu tio é tia” ou “um espírito baixou em mim” promoviam um estereótipo impossível de odiar. Risadas são boas, mas não podem usar sofrimento alheio como escada. Assim, tratar a homossexualidade como algo errado, para ofender alguém gratuitamente, não pode valer o sorriso de ninguém.
Por isso, aplaudi de pé a atitude da Conmebol de punir aquele grito homofóbico (e babaca) “bicha!” quando algum goleiro adversário vai bater um tiro de meta. Ser gay não é defeito ou problema, portanto na lógica do bem comum não faz o menor sentido tentar ofender alguém dessa maneira. Pelo contrário, vai chegar um tempo que ser chamado de “viadinho” vai ser um baita elogio, pois será sinônimo da força da resistência que essas pessoas tiveram para sobreviver a essa onda de ódio que consome nossa sociedade.
E para aqueles que ficaram curiosos sobre o estado dos meus pés tortos, hoje eles estão muito bem aqui comigo, descansando tortamente enquanto escrevo, sentado, esse texto. Eles passaram bem pelas ofensas e hoje já não ligam muito, afinal, sustentam um corpo hétero, cis, masculino e de classe média desde o berço. Não é nada difícil resistir a isso.
Tadeu Porto* é diretor do Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense. Sigam-o no Facebook! :)
P.s. Tentem gritar no tiro de meta “Fora Temer”. É bem mais útil ao país.