Deveríamos prestar atenção no Projeto de Lei sobre a Terceirização

Photo: BBC – Manchete do The Times sobre a falta de camas nos hospitais britânicos

Percebendo que terão dificuldades em passar a reforma da previdência, os parlamentares resolveram agir rapidamente para aprovar algo que vai trazer tantos danos como mexer na previdência: o projeto de lei que amplia a terceirização a todas as atividades empresariais.

Pois bem, nós brasileiros, com o nosso complexo de vira-lata, faríamos bem de olhar o que acontece nos países aonde a terceirização há muito é praxe. Às vezes a falta de protagonismo pode ter suas vantagens e em vez de idealizar tudo que vem de fora, seria bom se pudéssemos analisar as experiências para não cometer os mesmos erros.

A terceirização começou a ser a principal solução para todos os problemas nos anos 80 e não tem se revelado boa coisa.

A primeira pergunta que se deve fazer é a seguinte: a tercerização é boa para quem? Obviamente ela é vantajosa para as grandes empresas e governos. Porque ela é, primeiramente, uma maneira de se desprender das responsabilidades trabalhistas e do ônus financeiro que isto acarreta.

Quando uma empresa assina um contrato com uma prestadora de serviços, é a prestadora que se encarrega dos trabalhadores, responsabilizando-se, assim, somente pelo serviço prestado. E como na maioria das vezes o motivo do contrato é a redução de custos, não é mais da conta da empresa principal as condições dos trabalhadores terceirizados, abrindo espaço para todos os tipos de abusos. Assim, mesmo as entidades que se dizem ‘éticas’ podem lavar as mãos já que o abuso é responsabilidade de terceiros.

A prestadora de serviços também tem maneiras de se esquivar de suas responsabilidades trabalhistas, contratando pessoal temporariamente ou até como ‘autônomos’, já que ela contrata para a empresa, por períodos determinado, através de contratos de serviço.

De que adianta, portanto, lutarmos pela manutenção de boas leis trabalhistas e previdenciárias se uma grande parte da força de trabalho nacional nunca vai poder gozar destes direitos, porque serão terceirizados ou autônomos?

Outra vantagem para as empresas, mas não para os trabalhadores é que a mão de obra terceirizada, muitas vezes, não tem acesso à sindicalização.

Para dar um exemplo de fora, no Reino Unido os sindicatos foram quase que decimados principalmente por dois motivos: Primeiramente, o desaparecimento das indústrias nacionais, processo impulsionado e acelerado durante o governo de Margaret Thatcher. E segundo, a terceirização. Toda a parte mais braçal dos serviços públicos, principalmente aquelas tarefas feitas por mulheres, como a limpeza e a cozinha, foi terceirizada.

Estas trabalhadoras não só perderam seu vínculo empregatício com entidades conhecidas por velar pelos direitos trabalhistas, mas passaram a serem contratadas por hora de serviço, quando não forçadas a virarem autônomas, perdendo assim direito a licença médica, maternidade, férias, etc. E, uma vez dispersadas e atomizadas, perdem também o acesso à sindicalização.

Atualmente, os sindicatos britânicos estão fazendo um grande esforço, sem muito sucesso até agora, para re-sindicalizar os trabalhadores em situação precária. Quando os trabalhadores se encontram em situação precária, eles não querem reividincar seus direitos por medo de perder o emprego.

Mas quem sabe a consequência mais grave da terceirização seja o impacto social. A terceirização, que na realidade é a precarização do trabalho, leva não só à insegurança, mas a desvalorização do trabalho e do trabalhador. Situação que gera a insatisfação geral das pessoas com as suas vidas e com a sociedade. E quando as pessoas não são politizadas esta insatisfação, em vez de se tornar em força que pode ser canalizada para o bem, leva a atitudes reacionárias.

Dito de maneira simples, aí está uma das causas subjacentes dos recentes acontecimentos na Europa e nos Estados Unidos, como o Brexit e a eleição de Trump. As populações destes países estão se fechando em si mesmas e rejeitando a globalização liberalista – invenção das elites destes próprios países – porque elas se sentem inseguras, com medo e acham que sem imigrantes, conseguirão empregos melhores e mais seguros.

Talvez o aspecto mais absurdo do golpe que experimentamos é o desejo de seus protagonistas de querer retornar a um passado que visivelmente não deu certo.

Enquanto a Europa e os Estados Unidos se debatem tentando ententer o que está acontecendo. Aqui estão correndo para aprovar leis cujas consequências são claras. O liberalismo adotado pelas potências mundiais resultou na maior acumulação de capital, no aumento das desigualdades e na redundância (física, mental e ética) de milhões, se não bilhões, de seres humanos.

E quando a terceirização é acoplada com o sufocamento do serviço público e a recessão como consequência do emprego precário (também reduzindo a arrecadação de impostos) o resultado é o fracasso do ‘mercado’, tão amado pelos economistas ortodoxos.

Vou dar, mais uma vez, um exemplo do que está acontecendo no Reino Unido.

Os serviços sociais, braço direito do famoso serviço nacional de saúde (NHS) pública britânico, foram quase que completamente terceirizados. Principalmente, os serviços de cuidados.

A proposta dos Conservadores é a mesma que a de Temer: para salvar a ‘economia’ é necessário cortar a ‘gastança’ com os serviços públicos, feita pelo governo anterior.

Mas como o NHS é sagrado para público britânico, os Conservadores prometeram manter o mesmo nível de financiamento na saúde. Os cortes, portanto, afetaram principalmente os serviços complementários, como os serviços sociais.

Assim, os municípios ficaram sem recursos para contratar os serviços terceirizados de firmas de cuidados.

O resultado tem sido, primeiro, uma grande falta de cuidadoras (mal pago, poucos querem fazer este trabalho, situação que se agravará ainda mais com o Brexit) e, segundo, um grande número de empresas de cuidados estão deixando o mercado ou falindo.

O peso social de tudo isso? A maior crise do sistema público de saúde que o país já viu.

Neste inverno, de 50 das 152 fundações que administram os hospitais públicos pediram ajuda para o governo central, dos quais 15 declararam estar no mais alto nível de emergência, impossibilitando-os de dar cuidados integrais a seus pacientes.

E qual foi a razão principal da crise? Não foi a falta de médicos ou medicamentos. Os hospitais simplesmente não podiam mandar pacientes para casa, porque não tinha quem cuidasse deles.

Ainda não foi calculado o prejuízo e quantas vidas foram prejudicadas durante este inverno. Mas o NHS, que sempre foi o orgulho do povo britânico, chegou a tal ponto que a Cruz Vermelha alertou para a possibilidade de ‘uma crise humanitária’

A perda de direitos trabalhistas e ações que visam melhorar a ‘eficiência’ das empresas, como também os ‘cortes’ no Estado para torna-lo ‘menor’ tem consequências negativas que não afetam somente a vida dos indivíduos.

Os chamados países desenvolvidos, depois de anos de desmantelamento de seus estados de bem-estar social, estão apenas começando a sentir os impactos do que é viver numa sociedade sem seguranças e direitos.

Nós, nos chamados países em desenvolvimento, deveríamos já estar cientes do que isso significa.

Mariana T Noviello:
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