Alguns espectros rondam as mulheres: crise, exploração e controle do corpo
Por Verônica Toste* e Marcia Rangel Candido**, na revista Escuta.
Neste 8 de março, sugerimos que você faça um exercício simples: experimente buscar “dia da mulher” no Google imagens. A tela do computador se pintará de rosa, se encherá de frases motivacionais, e, entre rosas, flores, sapatos e batons aparecerão mensagens que remetem aos lugares pré-fabricados e desejados para o feminino. Nessas mensagens, as mulheres são referidas pelos termos “mãe”, “esposa”, “amiga”, “filha” e as menções aos seus respectivos papéis na divisão sexual do trabalho se destacam como os temas mais incidentes: “nossa homenagem a quem gera a vida”, “a quem transforma nosso dia-a-dia”, “mulher é mãe, é amiga, é esposa, é filha, é querida”, “és a glória do homem, fonte terna de amizade”, “a força de ser mãe, o carinho de ser esposa, a paixão de ser amante”. Apesar da intenção de enaltecer e homenagear as mulheres, as imagens, tanto pelo que enunciam como pelo que omitem, aludem na verdade às relações de alteridade e subordinação de gênero longamente tematizadas pela teoria feminista.
De fato, o argumento central de Simone de Beauvoir em “O segundo sexo” aparece aí exemplificado de forma cristalina: no dia internacional das mulheres, as homenageadas não são descritas por aquilo que são capazes de realizar como sujeitos livres, mas pelas funções que desempenham nas relações com os homens, sobretudo como cuidadoras e guardiãs do afeto e da família. Tal como argumentou Beauvoir, erige-se assim o homem ao lugar de tipo humano absoluto e se define a mulher como um “outro”, sem essência, independência, liberdade ou autonomia. Em outras palavras, a mulher figura como alguém que retira seu valor social daquilo que é capaz de oferecer do seu corpo, trabalho e subjetividade aos seus “maridos”, “pais”, “filhos” e “amigos” – em suma, pelo que é capaz de fazer pelos homens.
A busca pelo “08 de março” no Google não resulta muito diferente e as mesmas imagens de uma feminilidade dócil, subserviente e maternal se repetem. Ainda que o conjunto de imagens gerado pelo site de uma multinacional resulte de mecanismos que fogem ao escopo deste texto, ele serve como ilustração de um caso de amnésia histórica: no maior veículo de pesquisas da internet, o imaginário visual em torno do 8 de março omite a organização coletiva e o legado intelectual das próprias mulheres que construíram a data. As responsáveis, socialistas que militaram no seio de um processo revolucionário e fundaram o dia da mulher trabalhadora, são ignoradas[1]. Essa tendência, infelizmente, não se manifesta apenas na versão comercial e senso comum do 8 de março, pois dentro de parte do movimento feminista atual, as dimensões materiais do trabalho e da classe também parecem ter caído na obscuridade.
Por isso, é necessário frisar que o estabelecimento de uma data oficial, conhecida hoje como um inócuo “dia da mulher”, resulta de processos coletivos gestados nos congressos de mulheres socialistas nos quais a radicalidade da crítica de gênero e classe foram determinantes. Sugerida inicialmente pela socialista alemã Clara Zetkin, a data ganhou forma com uma greve conduzida pelas proletárias russas no dia 23 de fevereiro de 1917 (8 de março no calendário gregoriano). Os horrores da guerra, as péssimas condições de trabalho, a exploração infantil, a fome, as desigualdades de direitos, e tantas outras coisas, levaram as mulheres a protagonizar uma manifestação política que marcou o início dos acontecimentos que deram propulsão à Revolução de Outubro e a chegada dos bolcheviques ao poder[2]. Aleksandra Kollontai, importante revolucionária russa, narrou os acontecimentos da seguinte maneira:
“Em 1917, no dia 8 de março, no Dia das Mulheres Trabalhadoras, elas saíram corajosamente às ruas de Petrogrado. As mulheres – algumas eram trabalhadoras, algumas eram esposas de soldados – reivindicavam ‘Pão para nossos filhos’ e ‘Retorno de nossos maridos das trincheiras’. Nesse momento decisivo, o protesto das mulheres trabalhadoras era tão ameaçador que mesmo as forças tzaristas não ousaram tomar medidas usuais contra as rebeldes e observaram atônitas o mar turbulento da ira do povo. O Dia das Mulheres Trabalhadoras de 1917 tornou-se memorável na história”.
Mas, afinal, passado um século desse evento histórico, inscrito em uma outra geopolítica mundial, por que revisitar o elo entre o dia internacional da mulher e a Revolução Russa? Além de ter originado a data que é referência global de luta das mulheres, chamamos atenção para dois aspectos particularmente relevantes para a contemporaneidade: (1) como a noção de crise apareceu como justificativa para uma série de retrocessos que incidiram sobre as mulheres no período pós-revolucionário; e (2) de que maneira as questões de classe e sua interação com gênero foram interpretadas pelas socialistas como norte dos conflitos políticos.
Cabe assinalar que, a despeito de muitas diferenças notáveis, há diversos paralelos históricos passíveis de serem traçados entre as vidas das mulheres russas no século XX e das brasileiras neste século XXI. Embora a ruptura estrutural que deu origem ao governo dos bolcheviques tenha sido protagonizada pela esquerda mediante uma revolução e no Brasil de 2016 a quebra institucional tenha se dado através de um golpe parlamentar-midiático capitaneado pela direita, em ambos os casos cabe a mesma observação: em tempos de crise, as mulheres são as “vítimas” perfeitas. Enquanto no governo bolchevique a tragédia acometeu as mulheres no decurso do sonho de emancipação socialista, no governo ilegítimo de Temer aquilo que se abateu sobre as mulheres provém da usurpação de direitos, do avanço conservador e do realinhamento neoliberal em curso na América Latina.
Vale acentuar ainda que os retrocessos com respeito às mulheres em momentos de crises, guerras, revoluções, golpes de Estado etc. resultam não apenas de reveses econômicos e da maior vulnerabilidade social feminina, mas também de ações organizadas para a construção e consolidação do próprio poder político. A historiadora feminista Joan Scott chama atenção para as conexões entre os regimes autoritários e o controle sobre as mulheres, bem como para a maneira com que os dirigentes emergentes costumam se utilizar da linguagem de gênero para legitimar a sua dominação (Scott, 1995)
Isso é feito pela associação da nova ordem que se visa normalizar ao masculino e dos inimigos dessa ordem ao feminino. Os primeiros, assim, colhem os benefícios simbólicos de manipular definições normativas de gênero amplamente compartilhadas, que associam o masculino a qualidades como liderança, racionalidade, força e capacidade técnica, ao passo que vinculam seus adversários aos estereótipos femininos da passividade, subordinação, emotividade e fraqueza. Essa codificação de gênero, por sua vez, é traduzida em ações que restringem a participação política feminina, leis que versam sobre os corpos das mulheres e que as reconduzem a lugares de subordinação social e econômica. Como sintetiza Scott, “a alta política é, ela mesma, um conceito de gênero porque estabelece a sua importância decisiva e seu poder público, as razões de ser e a realidade da existência de sua autoridade superior, precisamente graças à exclusão das mulheres do seu funcionamento” (Scott, 1995).
Diante disso tudo, é importante refletir sobre o porquê da desconexão entre classe, gênero e política nas atuais representações do 08 de março no senso comum, em algumas das expressões do feminismo na atualidade, e nas apropriações comerciais da luta feminista. Cabe assim, recuperar as interconexões entre gênero e classe para lembrar nesse dia internacional da mulher dos espectros que rondam a vida das mulheres: crise, exploração e controle do corpo. É a eles que nos voltamos agora.
Crise
A despeito de a Revolução Russa ter marcado a história das mulheres como um experimento pioneiro de conquista dos direitos mais caros ao movimento feminista – direito ao aborto legal e seguro, socialização do trabalho doméstico e direito ao divórcio -, a deflagração da crise, que se intensificou com os prejuízos da guerra, o isolamento internacional e os embargos econômicos, lançou as bases do retrocesso sobre os corpos femininos: um a um os direitos conquistados foram sendo derrubados, até se atingir a regressão geral perpetrada por Stálin e sua revalorização da família “tradicional” às expensas das mulheres soviéticas. Wendy Goldman (2014) nos lembra ainda que os índices de prostituição aumentaram substancialmente a partir da intensificação da crise do Estado socialista e da revogação dos direitos das mulheres, uma combinação fatal que as lançou em situação de penúria extrema.
É importante ainda pontificar que a noção de crise não é meramente descritiva e expressa também determinadas contradições e tensões políticas: no Brasil de 2016, os grandes meios de comunicação mobilizaram amplamente um imaginário de crise em uma campanha negativa dirigida contra o governo do Partido dos Trabalhadores e da primeira presidenta do país, Dilma Rousseff[3]. Denunciar esse golpe e o papel exercido pela mídia na sua normalização não implica, contudo, negar que já sobre o governo Rousseff alguns aspectos de crise pairavam sobre as mulheres. Um exemplo vem dos movimentos indígenas e ambientalistas: Bel Juruna, liderança do povo Juruna da Volta Grande do Xingu, Sônia Guajajara, Coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Antonia Mello, Coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, denunciam a falta de diálogo, por parte do Estado, durante a construção da usina de Belo Monte, projeto amplamente defendido pela ex-presidenta. Sob o governo ilegítimo de Michel Temer, outras inúmeras concessões econômicas e territoriais às corporações transnacionais pairam como grandes ameaças aos recursos naturais do país[4].
A antropóloga Rita Segato descreve como o avanço estatal-empresarial sobre as comunidades indígenas do Brasil promove a transição entre o que chama de “patriarcado de baixa intensidade” para um “patriarcado moderno”, resultante do contato dos aldeados com as noções de masculinidade dos homens socializados no espaço urbano. Os relatos de violência sofridos pelas mulheres se alteram de modo significativo de acordo com as mudanças no entorno das comunidades (Segato, 2016). O aumento dos casos de prostituição é uma das consequências mais visíveis da alteração das dinâmicas das aldeias para as mulheres: como as mudanças do meio ambiente inviabilizam as rotinas de produção para a subsistência, tais como as atividades de pesca, e não se produz políticas de atendimento às demandas dos povos tradicionais, muitas mulheres indígenas são lançadas em situação de precariedade e luta pela sobrevivência.
Ainda assim, se o espectro da crise rondava as mulheres e as políticas voltadas para a igualdade de gênero foram muito tímidas nos anos Dilma, pouco se evoluindo na questão do aborto e da socialização do trabalho doméstico, por exemplo, hoje a crise se acentuou e se trava um duro combate para preservar direitos que já pareciam conquistados. Ao que parece, a mera presença de uma mulher no Planalto produziu uma forte tensão nos hábitos de organização da política e o que se viu durante o processo de impeachment, isto é, um forte uso instrumental do discurso de gênero para derrubar um governo, se aprofundou com a consumação do golpe: hoje vemos a constituição de um verdadeiro backlash contra direitos históricos das mulheres no Brasil.
De fato, os avanços obtidos anteriormente – graças à atuação das mulheres feministas na política institucional brasileira desde a década de 1980 – estão sob ameaça pelas mãos do congresso mais conservador desde a ditadura militar, sob a batuta do governo de Michel Temer e de seu gabinete masculino. Esse e outros exemplos colocam em evidência que em situações de crise as mulheres ficam vulneráveis ao uso da simbolização de gênero para organizar a esfera política, aos ataques conservadores contra seus direitos, assim como à forma particularmente aguda como a deterioração mais geral das condições de vida as atinge, sobretudo aquelas que pertencem às classes sociais mais baixas.
Exploração
A questão da exploração do trabalho das mulheres, por sua vez, foi tema central para as intelectuais socialistas desde o século XIX, como sugere a frase famosa de uma das pioneiras do pensamento feminista, Flora Tristán: “a mulher é a proletária do proletário”. No começo do século XX, Aleksandra Kollontai e Clara Zetkin asseveravam que a libertação das mulheres só viria a partir da conquista da igualdade na participação em todas as esferas de trabalho. Elas procuravam então chamar atenção para aquilo que até hoje representa um grande desafio para a luta das mulheres: o fato de que, no regime capitalista, todo o trabalho não assalariado, realizado no lar e relacionado à reprodução da vida, foi colocado sob um manto de invisibilidade.
Angela Davis, no final do século XX, apontava o trabalho nos espaços domésticos como uma condição que atingia particularmente as mulheres negras, visto que elas foram incorporadas como empregadas responsáveis pelo cuidado das/os filhas/os das mulheres brancas, para que essas pudessem começar a desenvolver outras carreiras profissionais. A crítica de Davis à divisão sexual do trabalho está assentada no fato de que o desenvolvimento do capitalismo ocorreu com base na responsabilização das mulheres pelo trabalho doméstico, e a sua definição como trabalho improdutivo e sem valor. Segundo a autora, a solução para esta atividade, vista de forma negativa como não criativa e repetitiva, seria a socialização do cuidado e dos afazeres domésticos somada à industrialização das atividades do lar. Para Davis nem mulheres, nem homens, deveriam ser responsabilizados por essas funções (Davis, 1981).
Silvia Federici, por outro lado, embora também compreenda que a atribuição do trabalho reprodutivo e de cuidado às mulheres esteja na base do desenvolvimento do capitalismo, não vê nessas atribuições pura negatividade. Em seus trabalhos mais recentes, ela enxerga nelas a potência para reorganizar as relações sociais. Assim como Davis, Federici defende a socialização do cuidado, mas a partir de um olhar que se transformou ao longo dos anos: se antes a postura diante do trabalho doméstico e reprodutivo era do “rechaço”, agora é da “valorização”. Essa nova visão sobre o trabalho reprodutivo busca chamar atenção para um ponto central: mais do que uma característica que estrutura o capitalismo, as atividades de cuidado são também espaços que, desfrutados coletivamente, conformam resistências e solidariedades necessárias à vida (Federici, 2013: 18).
Essa pequena síntese de perspectivas feministas sobre a tripla jornada de parte significativa das mulheres – profissão, casamento e maternidade – permite uma reflexão: enquanto a teoria política e social formulou importantes diagnósticos sobre as incumbências que sobrecarregam o gênero feminino, a atuação dos representantes do Estado brasileiro passa hoje ao largo desses debates e dos requisitos necessários para uma sociedade mais igualitária. As representações mais visíveis do 08 de março, por sua vez, em vez de convidar à crítica desse estado de coisas, tornaram-se uma espécie de celebração e positivação da sobrecarga de trabalho e da exploração das mulheres.
Tal invisibilidade do trabalho feminino, por sua vez, se manifesta no plano institucional. A proposta de Michel Temer de Reforma na Previdência (PEC 287/2016) é um exemplo de mudança, justificada pela retórica de crise nas arrecadações, que atinge diretamente as mulheres e as classes menos favorecidas da população: além de mudanças nas condições gerais para usufruir da aposentadoria, são eliminadas as diferenças de tempo de contribuição e de idade mínima entre mulheres e homens, assim como entre trabalhadores rurais e urbanos. Na prática, essa proposta ignora os mecanismos de desigualdade que atravessam a vida das mulheres, especialmente as mulheres pobres, as negras, e as trabalhadoras rurais[5]. Somado a isso, tramita também, em caráter de urgência, outra proposta de Temer que ameaça particularmente as mulheres: a reforma trabalhista, que, dentre outras coisas, pode aumentar a carga horária de trabalho das/os brasileiras/os[6]. O texto versa ainda sobre a possibilidade de redução no tempo de intervalo de refeições para trabalhadoras/es, ampliação das chances de parcelamento das férias e extensão da terceirização e do trabalho temporário.
No Brasil, o viés na atribuição de responsabilidade com o trabalho doméstico pode ser observado desde a infância: no grupo entre 10 e 14 anos, 41,4% dos meninos afirmam cuidar de afazeres em casa, enquanto a proporção entre as meninas é de 69,9%. Com o passar dos anos as disparidades entre mulheres e homens na execução de tarefas domésticas aumenta exponencialmente: na faixa-etária de maior produtividade, as mulheres chegam a dedicar mais que o dobro de horas do que os homens (Síntese dos Indicadores Sociais, 2015). Portanto, a aprovação de novas legislações como as mencionadas só fazem projetar mais exploração sobre o cotidiano e a vida das mulheres.
Controle do Corpo
A questão do corpo, sexualidade, reprodução e maternidade é outro aspecto-chave para a reflexão sobre a condição de parte expressiva das mulheres. Aleksandra Kollontai, por exemplo, colocou o tema da igualdade sexual – o amor livre, a legalização do aborto e a socialização do trabalho doméstico e cuidado com as crianças – em primeiro plano, aproximando-se assim, ainda no início do século XX, de muito do que conformariam as pautas do feminismo radical dos anos 1970. Dentre outras questões, Kollontai chamou atenção para injustiças até então invisíveis no debate público: apesar de o cuidado com as/os filhas/os ser amplamente imputado às mulheres, o mesmo não podia ser dito a respeito da autonomia de decisão acerca da maternidade.
Ainda que a pauta dos direitos reprodutivos tenha desde então se tornado uma das grandes prioridades do movimento feminista e avanços consideráveis tenham sido obtidos em diversas partes do mundo, em muitos países não se conquistou ainda o marco legal mínimo necessário à sua efetivação. Em outros, ainda que o aborto tenha sido descriminalizado, procura-se frequentemente cercear os direitos das mulheres à interrupção da gravidez mediante medidas de restrição ao acesso ao aborto seguro, legal e gratuito. Ao cortar financiamento governamental a centros de planejamento familiar, por exemplo, diversos governos de países em que o aborto já foi descriminalizado acabam abolindo-o na prática, especialmente para as mulheres mais pobres e vulneráveis, que não podem arcar com as taxas cobradas por clínicas particulares.
Os países latino-americanos possuem legislações muito variadas sobre o aborto: em El Savador, por exemplo, a lei é extremamente rígida não só no que se refere à proibição, mas também à penalização. O caso conhecido como “las 17” – 17 mulheres que foram condenadas, entre 1999 e 2011, a até 40 anos de prisão por terem sofrido abortos espontâneos – mobiliza movimentos feministas e instituições internacionais de todo o mundo. No Chile, outro país cuja legislação é restritiva – herança do governo ditatorial de Augusto Pinochet -, nem sequer o aborto em caso de risco de vida para a mãe, má formação do feto e estupro é descriminalizado. Atualmente, tramita no Senado um projeto, já aprovado na Câmara dos Deputados e apoiado pela presidenta Michelle Bachelet, que postula a descriminalização do aborto nesses três casos. A lei brasileira, por sua vez, segue também esses três parâmetros para não penalizar as mulheres, para o descontentamento da bancada religiosa, que busca meios de restringir o acesso mesmo nos casos previstos por lei.
Apesar de se saber que a existência de leis restritivas não reduzem o número de abortos e apenas expõem as mulheres mais pobres a condições adversas de execução da prática[7], a luta feminista no Brasil, no que se refere aos direitos reprodutivos, tem se voltado para manter conquistas mínimas. O PL 5069/2013, do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, propõe dificultar o acesso de vítimas de estupro ao aborto no Sistema Único de Saúde (SUS). Tal projeto foi um dos incitadores da chamada “Primavera Feminista”, conjunto de manifestações de mulheres que tomaram as ruas em 2014 para defender direitos e se levantar contra o machismo do cotidiano. Aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara, o PL 5069/2013 segue para apreciação do Plenário. Além disso, outros quatro projetos estão em tramitação e pretendem tornar o aborto um crime hediondo (PL 4703/1998 – Deputado Francisco Silva (PPB), PL 4917/2001 – Deputado Givaldo Carimbão (PSB), PL 7443/2006 – Deputado Eduardo Cunha (PMDB), PL 3207/2008 – Deputado Miguel Martini (PHS), PEC 58/11 – Deputado Jorge Silva (PDT))[8].
Algumas notas conclusivas
O golpe de 2016 levou à presidência o representante de um partido amplamente comprometido com projetos que interferem no cotidiano das mulheres: o retrocesso e a recondução da mulher a um lugar tradicional de subordinação aparecem tanto nas comunicações simbólicas do governo, que promovem imaginário de feminilidade passiva e dócil na figura da primeira dama, até a exclusão das mulheres dos espaços políticos, como ficou flagrante na composição inicial dos seus ministérios. O governo procura avançar um projeto econômico, político e social que exacerba a exploração das mulheres (e dos trabalhadores de uma maneira geral), e que busca ampliar a zona de controle sobre os corpos femininos.
A “Primavera Feminista” no Brasil mostrou, contudo, que as mulheres não são passivas com relação às violações do Estado: mais do que serem contrárias à aprovação de projetos de lei anti-feministas nos meios institucionais, as mulheres têm se articulado em novas formas de organização coletiva que ocupam as ruas e os espaços de convivência, como as universidades e associações. Nesses espaços, busca-se intensificar a visibilidade sobre as suas demandas, alterar relações sociais hierárquicas e conquistar reconhecimento. Contudo, resta ainda recuperar a importância que a dimensão dos conflitos de classe impõe sobre as possibilidades de transformação e ruptura com uma ordem social orientada para a exploração. Neste 08 de março, o chamado ao internacionalismo feminista nos une, sobretudo, sob a forma de uma greve geral de mulheres. A partir da crítica àqueles 1% que dominam os recursos políticos e econômicos no mundo[9], a greve, convocada por feministas históricas como Angela Davis e Nancy Fraser, é uma forma potente de revigorar e dar visibilidade à interação entre classe e gênero como chave de interpretação da condição feminina.
* Verônica Toste é Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ), bolsista de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS-UFRJ) e pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED-IFCS-UFRJ). Colabora com a Revista Escuta.
** Marcia Rangel Candido é Doutoranda em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e pesquisadora associada do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP). Colabora com a Revista Escuta.
*** Crédito da Imagem: Esta imagem foi gentilmente cedida pela artista Hyuro. Ver: www.hyuro.es
Notas:
[1] Para uma síntese da história do 08 de março, sua relação com a mobilização internacional das trabalhadoras socialistas e a Revolução Russa, ver o vídeo da TV Boitempo: As origens comunistas do 08 de março, da socióloga Maria Lygia Quartim. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bL5ZiCA5qTk
[2] Para uma síntese da participação das mulheres no processo de eclosão da Revolução Russa ver a edição especial da Revista Cult deste ano: Dossiê – As Mulheres na Vanguarda: prenúncio da Revolução Russa.
[3] O Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro é responsável pelo Manchetômetro, website que produz o acompanhamento da cobertura midiática das eleições, dos partidos políticos e dos atores em disputa. Na página é possível encontrar dados para as abordagens dos principais jornais do país. Consultar em: http://www.manchetometro.com.br
[4] Em evento promovido pela Justiça Global em parceria com a Casa Pública no Rio de Janeiro, essas lideranças expuseram não só as violências provenientes da contrução de Belo Monte, como as ameaças que estão em curso pelo projeto da mineradora Belo Sun, pelo agronegócio e pela atuação de multinacionais.
[5] Flávia Biroli descreveu de maneira sistemática a forma como a PEC 287 atinge esses grupos, consultar em: http://catarinas.info/reforma-da-previdencia-e-tragica-para-as-mulheres/
[6] Como a reforma trabalhista pode aumentar a sua carga horária. Rede Brasil, 2017. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2017/01/como-a-reforma-trabalhista-pode-aumentar-a-sua-carga-horaria/
[7] Taxa de aborto diminui em países ricos e permanence estável em países em desenvolvimento. Ebc, 2016. Disponível em: www.ebc.com.br/infantil/para-pais/2016/05/taxa-de-aborto-diminui-em-paises-ricos-e-permance-estavel-em-paises-em De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), mais de uma em cada 5 mulheres já fez um aborto. O levantamento ressalta, no entanto, que os resultados devem ser ainda maiores, haja vista que o recorte inicial de entrevistadas é restrito ao Brasil urbano (Diniz e Medeiros, 2010).
[8] Também produzido pelo LEMEP-IESP-UERJ, o Congresso em Notas divulgou, no início deste ano, um levantamento sobre os retrocessos que pairam no legislativo. Edição especial: 40 ameaças legislativas aos direitos humanos. Congresso em Notas, jan. 2017. Disponível em: http://congressoemnotas.tumblr.com
[9] Ver a chamada de greve internacional: Por uma greve internacional militante no 08 de março. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/07/por-uma-greve-internacional-militante-no-8-de-marco/
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967
DAVIS, Angela. “Obsolenscence of Housework: a Working-Class Perspective”. In: Women, Race and Class. New York: Vintage Books, 1981.
DINIZ, Debora. MEDEIROS, Marcelo. “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”. Ciência & Saúde Coletiva, vol.15, jan. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf
Edição especial: 40 ameaças legislativas aos direitos humanos. Congresso em Notas, 19 de janeiro de 2017. Disponível em: www.congressoemnotas.tumblr.com/
FEDERICI, Silvia. Revolución en punto cero: trabajo doméstico, reproducción y luchas feministas. Madrid: Traficantes de Sueños, 2013.
GOLDMAN, Wendy. Mulher, estado e revolução. São Paulo: Boitempo; Iskra, 2014.
KOLLONTAI, Aleksandra. “O Dia da Mulher”. 1913. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1913/mes/dia_mulher.htm
SEGATO, Rita. “La norma y el sexo. frente estatal, patriarcado, desposesión, colonialidad”. In: Bidaseca, Karina (Coord.) Genealogías críticas de la colonialidad en América Latina, África, Oriente (CLACSO-Colección Sur-Sur/IDAES-UNSAM), 2016. http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20160210113648/genealogias.pdf
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
Síntese dos Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. IBGE, 2015. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95011.pdf