Trecho do artigo de Luis Felipe Miguel: “E é o PSDB, condenado à posição de parceiro minoritário, quem possui as conexões com os operadores centrais da Lava Jato, seja em Curitiba, no Supremo, no Ministério Público ou na imprensa. O PSDB não precisa ter medo dos desdobramentos da operação, pois seus chefes estão blindados – que o diga Aécio Neves, que, contrariando a previsão de Jucá, parece que não vai ficar nem para sobremesa. Era ao PSDB, em primeiro lugar, que interessava manter o usurpador na berlinda, o que valoriza seus próprios serviços como fiador do novo governo.”
Leia a íntegra abaixo:
O fim daquele medo bobo
A história política brasileira é marcada por canções. A trilha sonora do momento brasileiro é “Medo bobo”, de Maiara e Maraisa. Tal como o casal da música, o governo Temer ficou paralisado por um medo que, mais tarde, percebeu que não tinha razão de ser.
Por Luis Felipe Miguel, no blog da Boitempo
Na sua maior contribuição para o pensamento político nacional, o senador Romero Jucá explicou como funcionam as instituições: “É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”. Acrescentando: “Com o Supremo, com tudo”.
A conversa foi em março de 2016, quando Michel já estava a caminho da presidência. Logo em seguida, em maio, Dilma Rousseff foi afastada do cargo; tratava-se só de executar o tal acordo. Mas o embalo do impeachment continuava. As ruas tinham rugido em nome do combate à corrupção, do fim da impunidade. Seus heróis não eram os parlamentares que tinham afastado uma presidente ao arrepio da lei – embora alguns, mais desinibidos, até fizessem homenagens a Eduardo Cunha. Os heróis eram figuras imbuídas de espírito messiânico, que se apresentavam como dispostas a limpar o país a ferro e fogo, movidos por uma convicção que dispensava provas.
Como implementar o acordo, diante deste clima de opinião?
O próprio Jucá, por ironia do destino, foi o primeiro a ser comido. O vazamento da gravação do “grande acordo nacional” o apeou da cadeira de ministro do Planejamento, menos de duas semanas depois de Michel tê-lo colocado lá. Permaneceu como um dos cabeças do novo regime, pontificando até em reuniões de gabinete, mas ministro não era mais. E, como ele, muitos outros amigos queridos se foram, imolados diante do tribunal da opinião pública: Henrique Alves, Geddel Vieira Lima, José Yunes.
De que vale o bendito acordo se nem os nossos são salvos?
Os “movimentos” que surgiram na campanha pela derrubada da presidente Dilma Rousseff até cumpriram, obedientemente, o papel que se esperava deles. Mantiveram uma defesa pro forma da Operação Lava Jato, mas focavam em nova agenda. O MBL dedicou o segundo semestre de 2016 a estimular a violência contra estudantes que ocupavam escolas e universidades. Parecia estar pronto a transitar de organização astroturf (falso movimento de base cevado com dinheiro empresarial) para milícia da extrema-direita. Em 2017, passou a priorizar a defesa dos retrocessos promovidos pelo governo que emergiu do golpe, sobretudo nos campos trabalhista e previdenciário. Dedica-se à inglória tarefa de chamar as pessoas para irem às ruas contra seus próprios direitos.
Sumiram de cena a classe média nas manifestações e o bater de panelas, mas mesmo assim havia o receio de escancarar o acordo. Foi isso o que mudou com a invenção de um ministério para Moreira Franco e a nomeação de Alexandre de Moraes para o Supremo Tribunal Federal. O governo, que já cumpria com afinco seu compromisso de destruição dos direitos sociais e de entrega das riquezas nacionais, está pronto para realizar o outro ponto de sua agenda, que é restaurar as práticas tradicionais de saque da riqueza pública pela elite política e econômica, minimizando os riscos para os envolvidos.
A história política brasileira é marcada por canções. Foi “Para não dizer que não falei de flores”, no momento de fechamento do regime militar; “Apesar de você”, quando a derrota da esquerda estava configurada; “O bêbado e a equilibrista”, na luta pela anistia; “Vai passar”, anunciando a redemocratização; “Brasil, mostra a tua cara”, para as decepções da Nova República, e assim por diante. A trilha sonora do momento brasileiro é “Medo bobo”, imortalizada (?) por Maiara e Maraisa – o que, por si só, revela a decadência criativa da música popular, mas essa é outra conversa.*
Tal como o casal da música, o governo do Michel ficou paralisado por um medo que, mais tarde, percebeu que não tinha razão de ser. As pessoas que foram às ruas com camiseta da CBF eram guiadas pelo antipetismo, um tipo de discurso de ódio que não atinge apenas o PT, seus líderes ou suas políticas, mas tudo o que é visto como sendo a esquerda e seus valores. O antipetismo é um grande achado, pois cria um inimigo palpável, ou melhor, cria o Inimigo, a encarnação do mal. E desculpa todos os que se opõem ao Inimigo. O caso de Eduardo Cunha já revelava isso: seus pecados eram alegremente perdoados, uma vez que tornara instrumento da derrubada de Dilma. Com a vitória do impeachment, o gozo de ter tirado o PT do poder anestesiou qualquer reação a escândalos que são, em tudo e por tudo, idênticos àqueles que eram apresentados como justificativa para o golpe. Por isso o silêncio das panelas. Por isso e porque, no final das contas, a questão nunca foi a corrupção, ou principalmente a corrupção. O alimento do antipetismo – e é por isso que ele se estende a toda a esquerda – é o temor de que sejam abaladas as velhas hierarquias de classe, de gênero e de raça.
Já os derrotados de 2016 permanecem na lona. Michel percebeu isso logo de cara, aprovando com velocidade invulgar medidas que implicam em enorme retrocesso, enfrentando resistência pífia – a PEC de congelamento do gastos sociais, a entrega do pré-sal para as petroleiras estrangeiras e a reforma do ensino médio são os casos principais, com a destruição da legislação trabalhista e da previdência social já a caminho. Em um punhado de meses, um governo ilegítimo está fazendo o Brasil recuar décadas e, em síntese, anunciando que o Estado não tem mais nenhum tipo de compromisso, nem da boca pra fora, com a promoção da igualdade social. A classe trabalhadora, as mulheres e a juventude são os alvos. Se não se levantaram por isso, não seria para ver um gato angorá na gaiola.
O jogo de verdade foi jogado em outro espaço, sem atenção para as ruas, que voltam a ser o que sempre foram para a elite governante brasileira, um detalhe que se deve reduzir à insignificância. Michel é o chefe acidental de uma coalizão heterogênea, não tanto pelo programa, mas pelas ambições políticas. E é o PSDB, condenado à posição de parceiro minoritário, quem possui as conexões com os operadores centrais da Lava Jato, seja em Curitiba, no Supremo, no Ministério Público ou na imprensa. O PSDB não precisa ter medo dos desdobramentos da operação, pois seus chefes estão blindados – que o diga Aécio Neves, que, contrariando a previsão de Jucá, parece que não vai ficar nem para sobremesa. Era ao PSDB, em primeiro lugar, que interessava manter o usurpador na berlinda, o que valoriza seus próprios serviços como fiador do novo governo.
De alguma maneira, Michel conseguiu, na virada de 2016 para 2017, mostrar que estão todos no mesmo barco. É por isso que a nomeação de Alexandre de Moraes para o STF é tão emblemática. Não apenas porque o ministro é a cara do governo, com sua desonestidade intelectual, desprezo pelos direitos, inclinação pelas soluções de força e mistura de ignorância com empáfia. Mas sobretudo porque Moraes é esse híbrido: é o tucano de Temer. Por isso, chega à mais alta corte do País com a missão de se tornar o operador do “grande acordo nacional” que a derrubada de uma presidente legítima deveria propiciar.
* Fui apresentado a “Medo bobo” por meu sobrinho Jorge, que também elaborou o paralelo com a atualidade nacional. Agradeço a ele por ter permitido que eu surrupiasse sua ideia.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.