Eu queria tanto escrever um texto em homenagem ao escritor Raduan Nassar, que do alto de seus 80 anos, demonstrou mais coragem que a maioria daqueles que ocupam cargos de autoridade e recebem altos salários pagos pelo povo brasileiro.
Mas não ando muito inspirado. Fiz algumas tentativas, mas os textos logo me pareceram pretensiosos.
Hoje, ao abrir a minha caixa de email, encontro esta tradução do pessoal da Vila Vudu, que eles dedicam exatamente a… Raduan Nassar!
Então eu a publico aqui. É um lindo e corajoso discurso de Harold Pinter ao receber o Prêmio Nobel, em 2005.
Pinter denuncia a fábrica de mentiras e pós-verdades que se tornou os Estados Unidos e sua mídia corporativa, hoje mais ficcionista do que qualquer escritor.
Enxergar a verdade e a justiça em meio à espessa e mal cheirosa névoa de confusão lançada diuturnamente pelas mídias, pelas redes sociais, pelo senso comum a nossa volta, nunca foi tão difícil e, por isso, também é uma arte.
Superar a “tapeçaria de mentiras” que tenta nos transformar em autômatos é o desafio do nosso tempo.
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Discurso ao receber o Prêmio Nobel de Literatura Harold Pinter (1930-2008), em 2005
Essa tradução é presente e homenagem do Coletivo de Tradutores da Vila Vudu ao nosso camarada Raduan Nassar, orgulho do Brasil.
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Em 1958 escrevi o seguinte:
‘Não há distinção firme entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente nem verdadeira nem falsa, pode ser ambas, verdadeira e falsa.’
Acredito que essas sentenças ainda façam sentido e ainda se apliquem à exploração da realidade mediante a arte. Assim, como escritor eu as defendo, mas como cidadão não posso. Como cidadão tenho de perguntar: o que é verdadeiro? O que é falso?
No drama a verdade é sempre fugidia. Nunca se a encontra, mas a procura por ela é compulsiva. A procura é claramente o que move a missão. Buscar é nossa tarefa. No mais das vezes se tropeça na verdade no escuro, colidindo com ela, ou se a mal vê, uma imagem, uma forma que parece corresponder à verdade, quase sempre sem nem ver o que fizemos. Mas a verdade real é que não há na arte dramática uma verdade a ser encontrada. Há muitas. Essas verdades desafiam-se umas as outras, recolhem-se umas diante de outras, refletem umas as outras, ignoram-se, provocam-se, são umas cegas a outras. Às vezes você sente que tem na mão a verdade de um momento, e então ela escorre entre os dedos e perdeu-se.
Muitas vezes perguntam-me como aparecem minhas peças. Não sei dizer. Tampouco consigo jamais resumir minhas peças, exceto para dizer que aconteceu de tal modo. Que o que dizem é tal e tal. Que fizeram tal e tal coisa.
A maioria das peças são engendradas por uma linha, uma palavra ou uma imagem. A dada palavra é quase sempre seguida imediatamente pela imagem. Darei dois exemplos de duas linhas que apareceram na minha cabeça saídas do nada, seguidas por uma imagem, que eu segui.
As peças são The Homecoming [Volta ao lar] e Old Times [Velhos Tempos]. A primeira linha de Homecoming é ‘O que você fez com a tesoura?’ A primeira linha de Old Times é ‘Escuro.’
Nos dois casos, eu não tinha qualquer outra informação.
No primeiro caso, alguém estava obviamente à procura da tesoura e perguntava por ela a alguém que ele suspeitava que provavelmente a tivesse roubado. Mas eu de algum modo sabia que a pessoa interrogada não dava a mínima a tesoura alguma, muito menos, aliás, a quem perguntava pela tesoura.
‘Escuro’, assumi que era descrição do cabelo de alguém, do cabelo de uma mulher, e era resposta a uma pergunta. Nos dois casos vi-me obrigado a insistir no assunto. Aconteceu visualmente, um esmaecimento muito lento, através da sombra, na luz.
Sempre começo a peça chamando os personagens de A, B e C.
Na peça que se tornou The Homecoming vi um homem entrar num quarto arrumado e perguntar sua pergunta a outro homem, mais jovem, sentado num sofá feio lendo um boletim de corridas de cavalos. De algum modo eu suspeitara que A era um pai e B, filho dele, mas não havia provas. Pouco depois se confirmou, quando B (que adiante viria a ser Lenny) disse a A (que adiante viria a ser Max), ‘Papai, incomoda-se se eu mudar de assunto? Quero perguntar-lhe algo. O jantar que comemos, que nome tem? Como você chama aquilo? Por que não compra um cachorro? Você cozinha para cachorro. Sinceramente. Na sua cabeça, você está cozinhando para vários cachorros.’ Assim sendo, dado que B chamou A de ‘Papai’, achei razoável assumir que fossem pai e filho. A era claramente o cozinheiro, e a comida que cozinhava não parecia muito prestigiada. Significaria que não havia mãe? Eu não sabia. Mas, como disse a mim mesmo à época, nossos começos nunca conhecem nossos fins.
‘Escuro.’ Uma janela grande. Céu de fim de tarde. Um homem, A (que adiante viria a ser Deeley), e uma mulher, B (que adiante viria a ser Kate), sentados, bebericando. ‘Gorda ou magra?’ o homem pergunta. De quem falam? E é quando vejo, de pé junto à janela, uma mulher, C (que adiante viria a ser Anna), sob diferente iluminação, de costas para o casal, cabelo escuro.
Momento estranho, o momento de criar personagens que até ali não tinham existência. O que segue é espasmódico, incerto, até alucinatório, embora às vezes possa ser uma avalanche que ninguém detém. Posição de autor é bem estranha. Num sentido, não é considerado bem-vindo pelos personagens. Os personagens resistem a ele, não são de fácil convivência, impossível defini-los. Com certeza, você não manda neles. Em certo sentido, você joga com eles um jogo sem fim, gato e rato, cabra-cega, esconde-esconde. Mas finalmente você descobre que tem nas mãos gente de carne e sangue, gente com vontade e sensibilidade individual, feita de partes componentes que você não consegue mudar, manipular ou distorcer.
Assim sendo, a linguagem na arte continua a ser transação ambiciosa, areia movediça, trampolim, piscina congelada que pode rachar sob seu peso, do autor, a qualquer momento.
Mas como já disse, a busca pela verdade nunca para. Não pode ser adiada, não pode ser deixada para outro dia. Tem de ser enfrentada bem ali, na marca.
O teatro político apresenta conjunto inteiramente diferente de problemas. Pregar, fazer sermão, tem de ser evitado a todo custo. Objetividade é essencial. Os personagens têm de poder respirar o próprio ar. O autor não pode confiná-los e forçá-los a satisfazer os gostos ou a disposição ou o preconceito do autor. O autor tem de estar preparado para abordá-los de variados ângulos, por todo o espectro, sem inibições de perspectivas, até, ocasionalmente, apanhá-los de surpresa, mas ainda assim deixar-lhes a liberdade para irem na direção em que queiram ir. Nem sempre dá certo. E a sátira política, claro, não se curva a nenhuma dessas prescrições, de fato faz precisamente o contrário, e para isso existe.
Em minha peça The Birthday Party [A festa de aniversário] acho que deixa ampla série de opções operarem numa densa floresta de possibilidade, antes de finalmente focar um ato de subjugação.
Mountain Language não aspira a operação tão ampla. É sempre brutal, curta e feia. Mas os soldados na peça ainda assim conseguem arrancar dela algum divertimento. Volta e meia esquecemos que torturadores se entediam facilmente. Precisam de algum riso para manter a moral alta. Exatamente o que se confirmou, claro, pelos eventos de Abu Ghraib em Bagdá. Mountain Language dura só 20 minutos, mas pode prosseguir por horas e horas, mais e mais, o mesmo padrão repetido e repetido e repetido, hora após hora.
Ashes to Ashes, por sua vez, me parece acontecer embaixo d’água. Uma mulher que se afoga, a mão que aparece entre as ondas, que some de vista, buscando outros, mas sem encontrar ninguém lá, nem acima d’água nem abaixo, só sombras, reflexos, flutuantes; a mulher uma figura perdida numa paisagem que se afoga, uma mulher incapaz de escapar da desgraça que parecera propriedade exclusiva de outros.
Mas se eles morrem, ela deve morrer.
A linguagem política, como os políticos a usam, não se arrisca nesse território, dado que a maioria dos políticos, considerada as provas às quais temos acesso, não se interessam por verdades, mas por poder e pela manutenção de qualquer poder. Para manter aquele poder dos políticos, é essencial que as pessoas permaneçam em ignorância, que vivam em ignorância da verdade, até mesmo da verdade da própria vida de cada um. Por isso, o que nos cerca é vasta tapeçaria de mentiras, em cima da qual comemos.
Como todos aqui sabem, a justificativa para invadir o Iraque foi que Saddam Hussein possuiria corpo altamente perigoso de armas de destruição em massa, algumas das quais disponíveis para serem disparadas em 45 minutos, causando aterradora devastação. Nos garantiram que era verdade. Era mentira. Nos disseram que o Iraque tinha algum relacionamento com a Al Quaeda e seria também responsável pela atrocidade de 11 de setembro de 2001 em New York. Nos garantiram que era verdade. Era mentira. Nos disseram que o Iraque era ameaça contra a segurança do mundo. Nos garantiram que era verdade. Era mentira.
Verdade é coisa completamente diferente. A verdade tem a ver com o modo como os EUA compreendem o papel deles no mundo e com como escolhe encarnar o papel.
Mas antes de voltar ao presente, gostaria de olhar o passado recente, e com isso quero dizer a política exterior dos EUA desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Creio que é nossa tarefa obrigatória submeter esse período, no mínimo, a algum tipo de exame, limitado que seja, porque o tempo aqui não nos permitirá fazer mais.
Todos sabem o que aconteceu na União Soviética e em toda a Europa Oriental durante o período pós-guerra: brutalidade sistemática, atrocidades disseminadas, a supressão cruel da liberdade de pensamento. Tudo fartamente documentado e verificado.
Mas o que digo aqui é que os crimes dos EUA no mesmo período só foram muito superficialmente anotados e de modo algum foram documentados, ainda menos divulgados, e menos, sim, reconhecidos como crimes que são. Entendo que é preciso tratar disso, e que a verdade tem considerável peso no atual estado do mundo. Apesar de contidas, em alguma medida, pela existência da União Soviética, as ações dos EUA em todo o mundo deixaram ver bem claramente que os norte-americanos concluíram que teriam carta branca para fazer o que quisessem.
Invadir diretamente estado soberano nunca foi, de fato, o método preferido dos EUA. Na maior parte dos casos, os EUA preferiram o que é conhecido como ‘conflito de baixa intensidade’. Conflito de baixa intensidade significa que morrem milhares de pessoas, mas em ritmo menos rápido do que morreriam se você deixasse cair uma bomba sobre eles num só despejo. Significa que você contamina o coração do país, que você insemina um tumor maligno e espera a gangrena inchar e aflorar. Quando a população tiver sido subjugada – ou espancada até a morte, o que dá no mesmo – e seus próprios amigos, os militares e as grandes empresas, estiverem confortavelmente sentados no poder, você vai à televisão e diz que a democracia venceu a guerra. Foi sempre assim, lugar comum, na política exterior dos EUA nos anos aos quais me refiro.
A tragédia da Nicarágua foi caso muito significativo. Decidi falar da Nicarágua aqui, porque é exemplo potente de como os EUA veem o seu papel no mundo, seja naquele momento seja hoje.
Participei de uma reunião na Embaixada dos EUA em Londres, no final dos anos 1980s.
O Congresso dos EUA estava para decidir se dava mais dinheiro aos Contras, para ajudar na campanha deles contra o estado da Nicarágua. Eu lá estava como membro de uma delegação que falaria em defesa da Nicarágua, mais o membro mais importante da delegação era o Padre John Metcalf. O grupo dos EUA era chefiado por Raymond Seitz (então vice-embaixador, mais tarde promovido a embaixador). O Padre Metcalf disse: “Senhor, sou encarregado de uma paróquia no norte da Nicarágua. Meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde, um centro cultural. Sempre vivemos em paz. Há alguns meses uma força dos Contras atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro cultural. Estupraram enfermeiras e professoras, massacraram os médicos, o massacre mais brutal. Agiram como selvagens. Por favor, peça que o governo dos EUA suspenda a ajuda que dá e que garante sobrevida a essa chocante atividade terrorista.”
Raymond Seitz gozava de excelente reputação como homem racional, responsável, de inteligência sofisticada. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Seitz ouviu, fez uma pausa e falou, com alguma seriedade. ‘Padre’ – disse ele –, preciso contar-lhe uma coisa. Na guerra, gente inocente sempre sofre.’ Fez-se um silêncio mortal na sala. Todos olhamos para Seitz. Ele não baixou os olhos.
Gente inocente, sim, sempre sofre.
Finalmente, alguém disse: ‘Mas nesse caso “gente inocente” são as vítimas de atrocidade horrível patrocinada pelo seu governo, uma dentre muitas. Se o Congresso dos EUA garantir mais dinheiro para os Contras estará patrocinando mais atrocidades do mesmo tipo. Não é verdade? Seu governo é ou não é culpado por apoiar a prática de assassinatos e destruição contra cidadãos de um estado soberano?’
Seitz continuou imperturbável. Disse: ‘Não concordo. Os fatos apresentados não comprovam as suas acusações’.
Quando saíamos da Embaixada, um assessor disse que apreciava minhas peças. Dei-lhe as costas, sem responder.
Devo lembrar que, naquele momento, o presidente Reagan declarou que ‘Os Contras são o equivalente moral de nossos Pais Fundadores’.
Os EUA apoiaram a ditadura brutal de Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. Em 1979, o povo nicaraguense sob a liderança dos Sandinistas derrubou Somoza, numa deslumbrante revolução popular.
Os Sandinistas nunca foram perfeitos. Tinham também boa dose de arrogância e sua filosofia política incluía não poucos elementos contraditórios. Mas eram inteligentes, racionais e civilizados. Dedicaram-se a estabelecer uma sociedade estável, decente, pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses foram resgatados do mundo dos mortos. Mais de 100 mil famílias receberam títulos de propriedade das terras que cultivavam. Construíram-se duas mil escolas. Campanha notável reduziu o analfabetismo a menos de 1/7 da população. Implantaram educação e serviços de saúde gratuitos. A mortalidade infantil foi reduzida a 1/3 do que era. A pólio foi erradicada.
Os EUA denunciaram esses sucessos, que para eles não passariam de subversão marxista/leninista. Na visão do governo dos EUA, consolidava-se na Nicarágua um perigoso exemplo. Se deixassem a Nicarágua decidir sobre as próprias normas básicas de justiça social e econômica, se fosse autorizada a garantir melhores padrões de educação e de atendimento à saúde do povo, se alcançasse sólida unidade social e autorrespeito como nação, países vizinhos se fariam as mesmas perguntas e logo estariam encontrando soluções semelhantes. Claro que, naquele momento havia feroz resistência contra o status quo em El Salvador.
Já falei da ‘tapeçaria de mentiras’ que nos cerca. O presidente Reagan sempre descreveu a Nicarágua como uma ‘masmorra totalitária’. A avaliação foi em geral acolhida pela mídia e com certeza pelo governo britânico como acurada e justa. Mas não há registro de esquadrões da morte sob o governo sandinista. Não houve denúncias de torturas. Não houve registro de brutalidade sistemática ou oficial militar. Nenhum padre foi jamais assassinado na Nicarágua. Houve, isso sim, três sacerdotes no governo, dois jesuítas e um missionário Maryknoll. As masmorras totalitárias estavam, isso sim, na porta ao lado, em El Salvador e na Guatemala. Em 1954 os EUA derrubaram o governo eleito na Guatemala, e estima-se que mais de 200 mil pessoas foram vítimas de sucessivas ditaduras militares.
Seis dos jesuítas mais ilustres do planeta foram assassinados na Universidade da América Central em San Salvador em 1989 por um batalhão do regimento Alcatl treinado em Fort Benning, Georgia, EUA. O Arcebispo Romero, homem de grande coragem, foi assassinado quando rezava missa. Estima-se em 75 mil o número de mortos. E foram mortos por quê? Foram mortos porque acreditaram que uma vida melhor era possível e devia ser alcançada. Essa crença bastou para serem definidos como comunistas. Morreram porque se atreveram a questionar o status quo, o infinito platô de pobreza, doença, degradação e opressão que lhes cabia por nascimento.
Até que os EUA conseguiram, afinal, derrubar o governo sandinista. Demorou alguns anos e houve considerável resistência, mas incansável perseguição política e 30 mil mortos finalmente minaram o espírito do povo da Nicarágua. Estavam exaustos e, novamente, afogados na miséria. Os cassinos voltaram a se instalar no país. Acabaram a educação pública e a assistência pública à saúde. O Big business voltou com redobrada fúria. A ‘democracia’ venceu mais uma vez.
Mas essa política de modo algum se limitava à América Central. Foi conduzida em todo o mundo. Sempre foi assim. Foi sempre isso, ininterruptamente. E é como se nunca tivesse acontecido.
Os EUA apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras militares de direita no mundo, desde o final da 2ª Guerra Mundial. Estou falando de Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, as Filipinas, Guatemala, El Salvador e, claro, Chile. O horror que os EUA infligiram ao Chile em 1973 nunca será purgado e não pode ser jamais perdoado.
Em todos esses países houve centenas de milhares de mortos. Aconteceram realmente essas mortes? E podem em todos os casos ser atribuídas à política exterior dos EUA? A resposta é sim, aconteceram e, sim, podem ser atribuídas todas elas à política exterior dos EUA. Mas você não sabe, não faz ideia, nunca ouviu falar sobre essas mortes.
Nada disso aconteceu. Nada acontece, mesmo, nunca. Nem enquanto estava acontecendo. Não importava. Não interessava. Os crimes dos EUA foram sistemáticos, constantes, viciosos, sem remorso, mas bem pouca gente realmente falou deles. Culpa dos EUA. Os EUA puseram em ação a manipulação mais clínica, cirúrgica, do poder, em todo o mundo, ao mesmo tempo em que se apresentava como força ativada para o bem universal. É brilhante, muito esperto, altamente bem-sucedido show de hipnose.
Pois lhes digo que os EUA são, sem dúvida, o maior show de ilusionismo que se vê pela estrada. Brutais, indiferentes, cruéis, dados ao escárnio, os norte-americanos são tudo isso, mas são também bem espertos. Como caixeiro viajante, os EUA estão aí pelo mundo, e a mercadoria que mais vendem é egoísmo, autoamor. São vencedores. Ouçam o que dizem todos os presidentes dos EUA, na TV: nenhum deixa de meter ‘o povo norte-americano’ nas suas falas, como em “Digo ao povo norte-americano que é hora de rezar e defender os direitos dos norte-americanos, e peço que o povo norte-americano confie em seu presidente na ação que ele está em vias de empreender, em nome do povo norte-americano’.
Como estratagema, é brilhante. É a linguagem empregada para impedir que o pensamento se aproxime. As palavras ‘o povo norte-americano’ são como uma almofada voluptuosa, de confortável segurança. Você não precisa pensar. Só relaxe sobre a almofada. A almofada pode estar sufocando sua inteligência e suas faculdades críticas, mas é muito confortável. Não se aplica, claro, aos dois milhões de homens e mulheres prisioneiros no vasto gulag de prisões que se estende por todos os EUA.
Os EUA já não se incomodam com garantir baixa intensidade nos conflitos. Já não veem vantagem alguma em serem reticentes ou desonestos. Joga as cartas sobre mesa, sem medo ou qualquer consideração com o próximo. Simplesmente não tomam conhecimento da ONU, da lei internacional ou de oposição crítica, tudo, para eles, sem potência ou sem relevância. E prendem ao lado pela coleira sua própria ovelhinha gemebunda, a patética, inerte Grã-Bretanha.
O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Algum dia tivemos sensibilidade moral? O que significam essas palavras? Terão a ver com termo raramente empregado hoje em dia – consciência? Uma consciência que enfrente não só nossos atos, mas também a responsabilidade partilhada que nos compete para enfrentar atos de outros? Tudo isso está morto? Vejam a Baía de Guantánamo. Centenas de prisioneiros, detidos lá há mais de três anos sem qualquer acusação, sem advogado ou devido processo legal, tecnicamente já condenados à detenção perpétua.
Aquela estrutura absolutamente ilegítima é mantida contra o que determina a Convenção de Genebra. Não é simplesmente tolerada: a dita ‘comunidade internacional’ já nem pensa no que se passa em Guantánamo. É crime cometido pelo país que se autoapresenta como ‘líder do mundo livre’. E alguém pensa sobre os habitantes da Baía de Guantánamo? O que dizem jornais e jornalistas sobre aquelas pessoas? Vez o outra elas ressurgem, sem espalhafato – uma notinha na página seis.
Todos foram descarregados numa terra de ninguém, da qual na verdade talvez jamais retornem. Nesse momento, muitos daqueles prisioneiros estão em greve de fome, alimentados à força, inclusive residentes na Grã-Bretanha.
Os procedimentos da alimentação forçada não são agradáveis, nenhum sedativo, nenhuma anestesia. Metem um tubo pelo seu nariz, que desce pela garganta. Você vomita sangue. É tortura. E o que disse a Secretaria de Relações Exteriores da Grã-Bretanha? Nada. O que disse o primeiro-ministro da Grã-Bretanha? Nada. Por que não? Porque os EUA decidiram: criticar nossa conduta na Baía de Guantánamo é ato não amistoso. Ou você está conosco, ou contra nós. Blair aproveitou para continuar calado.
A invasão do Iraque foi ato de bandidagem, ato de flagrante terrorismo de Estado, demonstração de absoluto desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi ação militar arbitrária, inspirada por uma série de mentiras e grosseira manipulação pela mídia-empresa, aplicadas contra a opinião pública; foi ato que visava a consolidar o poder militar e econômico dos EUA sobre o Oriente Médio, sob a máscara de uma ‘libertação’ –, recurso derradeiro, depois que todos os demais argumentos e demais justificativas absolutamente nada demostraram e não se autojustificaram. Uma formidável ostentação de força militar responsável pela morte e pela mutilação de milhares e milhares de pessoas inocentes.
Norte-americanos e britânicos, levamos tortura, bombas de fragmentação, urânio baixo-enriquecido, incontáveis assassinatos, ilimitada miséria, degradação e morte, distribuídos a mancheias sobre o povo iraquiano. A isso chamamos ‘levar liberdade e democracia ao Oriente Médio’.
Quantos homens, mulheres e crianças você precisa matar, para ser descrito como assassino de massas e criminoso de guerra? Cem mil? Na minha avaliação, é mais que suficiente. Assim sendo basta levar Bush e Blair à barra da Corte Criminal Internacional de Justiça. Bush foi esperto: nunca ratificou a Corte Criminal Internacional de Justiça. Assim sendo, se um soldado norte-americano – e, sim, se aplica também a políticos e autoridades norte-americanas em geral –, for talvez surpreendido em plena prática de qualquer crime… Bush já foi logo avisando que mandaria os Marines. Mas Tony Blair sim, ratificou a Corte Internacional. Pode portanto ser processado. Cabe-nos garantir que a Corte Internacional saiba onde mora o homem, caso se interesse por encontrá-lo: Rua Downing, n. 10, Londres.
Nesse contexto, a morte é irrelevante. Ambos, Bush e Blair nem tomam conhecimento da morte, afastada para longe deles. Pelo menos cem mil iraquianos foram mortos por bombas e mísseis norte-americanos antes do início da insurgência iraquiana. Esses mortos não têm vez. Nem mortos são, dado que a morte deles não existe. São nada. Não são sequer contados como mortos. ‘Não contamos cadáveres’ – diz o general Tommy Franks, dos EUA.
No início da invasão, apareceu uma foto na primeira página de jornais britânicos, de Tony Blair beijando a bochecha de um menininho iraquiano. ‘Uma criança agradecida’ – dizia a manchete. Poucos dias depois, apareceu matéria e foto, numa página interna, de outro menino de quatro anos, sem braços. A família havia morrido num ataque com míssil. Só ele sobreviveu. ‘Quando devolvem os meus braços?’ – perguntava ele. A história logo sumiu dos jornais. Ah! Tony Blair não estava à vista, não carregava no colo o menino sem braços, nem outra criança mutilada, nem algum cadáver ensanguentado. Sangue suja. Suja a camisa, suja a gravata, dá na vista quando se fala com toda a sinceridade, do fundo do coração, pela televisão.
Os 2 mil norte-americanos mortos são, sim, grave incômodo. Chegam e são enterrados à noite. Funerais discretos, praticamente clandestinos. Os mutilados apodrecem nas camas dos hospitais, alguns nas camas de casa, pelo resto dos seus dias. E assim todos apodrecem, os mortos e os mutilados. Só variam os túmulos.
Incluo aqui um excerto de um poema de Pablo Neruda, Explico algunas cosas:
“Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces,
y desde entonces sangre.
Bandidos con aviones y con moros,
bandidos con sortijas y duquesas,
bandidos con frailes negros bendiciendo
venían por el cielo a matar niños,
y por las calles la sangre de los niños
corría simplemente, como sangre de niños.
Chacales que el chacal rechazaría,
piedras que el cardo seco mordería escupiendo,
víboras que las víboras odiaran!
Frente a vosotros he visto la sangre
de España levantarse
para ahogaros en una sola ola
de orgullo y de cuchillos!
Generales
traidores:
mirad mi casa muerta,
mirad España rota:
pero de cada casa muerta sale metal ardiendo
en vez de flores,
pero de cada hueco de España
sale España,
pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos,
pero de cada crimen nacen balas
que os hallarán un día el sitio
del corazón.
Preguntaréis por qué su poesía
no nos habla del sueño, de las hojas,
de los grandes volcanes de su país natal?
Venid a ver la sangre por las calles,
venid a ver
la sangre por las calles,
venid a ver la sangre
por las calles!”
Insisto em deixar muito claro que, ao citar o poema de Neruda, de modo algum comparo a Espanha Republicana ao Iraque de Saddan Hussein. Cito Neruda porque em nenhum outro poeta contemporâneo encontrei descrição tão visceral do bombardeamento de civis.
Disse antes que agora os EUA são totalmente francos, e estão abrindo suas cartas na mesa. Realmente é isso. Sua política oficial declarada está agora definida como ‘dominação de pleno espectro’ [ing. ‘full spectrum dominance’]. Não é termo meu: é deles. ‘Dominação de pleno espectro significa controle sobre terra, mar e ar e sobre todos os recursos existentes.
Os EUA ocupam agora 702 instalações militares em todo o mundo, em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, é claro. Não se sabe como chegaram aonde estão, mas não há dúvidas de que estão lá.
Os EUA são proprietários de 8 mil ogivas nucleares ativas e operacionais. Duas mil estão em total prontidão, em condições de serem lançadas 15 minutos depois da decisão de atacar. Os EUA estão desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidos como bunker busters [para explodir fortalezas super protegidas]. Os britânicos, sempre cooperativos, planejam substituir o míssil nuclear que têm, o Trident. Para atingir quem?, eu me pergunto? Osama bin Laden? Vocês? Eu? Um qualquer, pela rua? [orig. Joe Dokes?] China? Paris? Sabe-se lá! O que se sabe é que essa insanidade infantiloide – a posse de armas nucleares e a ameaça de as usar – está no âmago da filosofia política norte-americana hoje dominante. Não se pode esquecer que os EUA vivem em permanente tensão militar, sempre em prontidão, sem sinal de que venha algum dia a relaxar.
Muitos milhares, se não milhões de pessoas nos próprios EUA estão comprovadamente doentes, envergonhadas e atemorizadas ante as ações do governo do país, mas, no ponto em que estão as coisas, não constituem força política coerente – ainda. Mas a ansiedade, a incerteza e o medo que se veem crescendo todos os dias nos EUA dificilmente diminuirão.
Sei que o presidente Bush conta com muito competentes redatores de discursos, mas gostaria de me apresentar voluntariamente para o serviço. Sugiro o seguinte discurso breve, que o presidente Bush pode pronunciar à nação, pela TV. Até já o vejo, grave, cabelos cuidadosamente penteados, sério, vencedor, sincero, às vezes enganador, às vezes servindo-se de um sorriso pequeno, estranhamente atraente, homem que os homens admiram.
‘Deus é Deus. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é mau. É um Deus mau. O Deus de Saddam era mau, não fosse pelo fato de Saddam ser ateu. Bárbaro ateu. Nós não somos bárbaros. Não degolamos gente. Acreditamos na liberdade. Deus também acredita. Não sou bárbaro. Fui democraticamente eleito líder de uma democracia amante da liberdade. Somos sociedade compassiva. Garantimos eletrocussão compassiva e compassiva injeção letal na veia. Somos uma grande nação. Não sou ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. E ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Estão vendo esse punho? Aqui está minha autoridade moral. E que ninguém esqueça.’
A vida de um escritor é atividade altamente vulnerável, quase a nu. Não que devamos lamentar. O escritor escolhe e fica ligado à própria escolha. Mas não mente quem diga que não está aberto a todos os ventos, alguns realmente congelantes. Você está na rua e sozinho, ali, num limbo. Não há abrigo, não há proteção – a menos que você minta –, caso em que você terá construído sua própria blindagem inexpugnável e, alguém poderá dizer, terá virado político.
Falei de morte várias vezes nessa noite. Agora então cito um poema que escrevi, intitulado ‘Morte’.
Where was the dead body found?/Onde o corpo morto foi encontrado?
Who found the dead body?/Quem encontrou o corpo morto?
Was the dead body dead when found?/O corpo morto estava morto, quando encontrado?
How was the dead body found?/Como foi encontrado o corpo morto?
Who was the dead body?/Quem era o corpo morto?
Who was the father or daughter or brother/Quem era o pai ou filha ou irmão
Or uncle or sister or mother or son/Ou tio ou irmã ou mãe ou filho
Of the dead and abandoned body?/Do corpo morto e abandonado?
Was the body dead when abandoned?/Estava morto o corpo quando abandonado?
Was the body abandoned?/O corpo foi abandonado?
By whom had it been abandoned?/Por quem foi ele abandonado?
Was the dead body naked or dressed for a journey?/O corpo morto estava nu ou vestido para viagem?
What made you declare the dead body dead?/O que o levou a declarar morto o corpo morto?
Did you declare the dead body dead?/ Você declarou morto o corpo morto?
How well did you know the dead body?/Você conhecia o corpo morto? Conhecia bem?
How did you know the dead body was dead?/Como você soube que o corpo morto estava morto?
Did you wash the dead body/Banhou você o corpo morto
Did you close both its eyes/Fechou-lhe você os dois olhos
Did you bury the body/Enterrou você o corpo
Did you leave it abandoned/Deixou-o você abandonado
Did you kiss the dead body/Beijou você o corpo morto [trad.de trabalho, sem ambição literária, só para ajudar a ler (NTs)]
Quando olhamos ao espelho, pensamos que a imagem que nos olha é acurada. Mas mova-se um milímetro, e a imagem muda. Estamos de fato olhando para uma sequência sem fim de reflexos. Mas às vezes o escritor tem de quebrar o espelho – porque é do outro lado daquele espelho, que a verdade nos olha na cara.
Creio que apesar das enormes dificuldades, a determinação intelectual inabalável, impávida, como cidadãos, até definirmos a verdade real de nossas vidas e de nossas sociedades, é obrigação crucial que recai sobre nós. Mandatória, de fato.
Se essa determinação não é incorporada em nossa visão política, não há esperança de restaurarmos o que está tão perto de perdido para nós – a dignidade humana.*****