(Pintura: Luis Felipe Noe, argentino)
A entrevista que eu fiz com o cientista político Fabio Kerche, publicada em post anterior, nos ajuda a entender o caos político no qual o Brasil mergulhou.
Kerche nos dá exemplos de como funcionam os ministérios públicos em países democráticos: são basicamente dois tipos (na verdade, são três, mas vou simplificar aqui). EUA, França, Inglaterra, são do tipo “burocrático”, no qual o governo detêm controle absoluto sobre o Ministério Público Federal.
Itália e Brasil tem o tipo “independente”. Essa é a razão pela qual operações como as Mãos Limpas e a Lava Jato só podem ocorrer nesses países.
A Constituição de 1988 foi aprovada enquanto ainda fumegavam as cinzas do governo militar, assim como a Constituição Italiana ao final da década de 40 nasce dos destroços do fascismo. Havia uma saudável onda antiautoritária no ar, tanto na Itália como aqui, que, no entanto, acabou se convertendo em medo do governo – e o resultado foi desastroso.
Esse medo do governo gerou, no Brasil, a criação de um ministério público subversivo e antipolítico. Sua “independência” (uma independência profundamente negativa, porque nenhuma instituição democrática pode ser “independente” do soberano, que é o povo) se tornou um fator de instabilidade.
Entretanto, o que experimentamos no Brasil, é ainda pior: temos um Ministério Público Federal que trai os interesses políticos e econômicos nacionais. Quando isso acontece, quando uma instituição se torna tão independente a ponto de se sentir segura para trair a soberania nacional, como é o MPF brasileiro, e nos falta instrumentos para puni-la, então precisamos discutir, urgentemente, a mudança dessa arquitetura.
O Ministério Público brasileiro precisa ser controlado. Ontem ficamos sabendo, por uma nota de um janotinha cínico da Globo (e o fato de ser um janotinha cínico é a única maneira dele sobreviver por lá, é justo admitir), que o Procurador Geral da República organizou evento, em Brasília, com representantes de catorze ou quinze países, para falar da “corrupção” da Odebrecht.
É um louco varrido!
A Odebrecht deve mais de 100 bilhões de reais ao sistema financeiro. Antes do senhor Janot dar continuidade à sua missão de pulverizar a maior – e melhor – empresa que o Brasil já teve na área de engenharia e construção pesada, ele deveria ao menos se preocupar que a companhia tenha como honrar sua dívida com os nossos bancos, inclusive públicos, porque, em caso contrário, a insanidade da Lava Jato, depois de devastar o setor de construção civil, causará um estrago ainda maior no sistema financeiro.
O resultado a gente já sabe, de antemão, qual será: o governo terá de torrar as nossas reservas internacionais – Dilma entregou o governo com quase 400 bilhões de dólares em reserva; FHC encerrou seu governo com os cofres vazios – para “salvar” os bancos.
A lei de delação premiada foi um dos maiores erros de Dilma – um dos inúmeros causados por um analfabetismo jurídico e político de proporções ferroviárias. É uma lei dos Estados Unidos. Nos EUA, porém, o Ministério Público Federal é totalmente controlado pelo governo federal, que, consegue assim, evitar que a instituição se torne o trem desgovernado que se tornou no Brasil. Nunca se permitiria que a “delação premiada” de meia dúzia de corruptos provocasse a destruição das principais empresas americanas do setor de infra-estrutura.
Desconfio que tudo isso é mais um problema provocado por esse bacharelismo ibérico, tremendamente individualista, sem compromisso com as coisas práticas. O sujeito é um promotor, um desembargador, que escreveu um ou dois livros, em geral plagiados de outro autor, e daí o que importa é a sua missão pessoal, a sua fama de justiceiro, e não o interesse coletivo nacional.
Ao entregar a delação premiada em mãos de um Ministério Público Federal, já degenerado num bando de pistoleiros independentes, além de todos problemas político-psiquiátricos reais que acometem os membros da instituição, o governo Dilma deu-lhe uma fonte de conspiração ilimitada.
Por isso eu sou contra o lugar comum de afirmar que Dilma caiu por seus acertos, e não pelos seus erros, e sou a favor do PT fazer uma autocrítica. O povo não é burro. A derrota eleitoral do PT em 2016 deve ser analisada como um castigo merecido.
O povo é intuitivo. Ele pode não ter racionalizado desta maneira, mas, no fundo, pensou assim: a gente votou no PT em quatro eleições presidenciais consecutivas e o PT ajudou a dar ainda mais poder aos mauricinhos do MP, criando uma lei de delação premiada, aprovou uma lei antiterrorismo que obviamente vai estourar nos movimentos sociais, nomeou um tucano neoliberal para o ministério da fazenda, encheu as instâncias judiciais superiores de bundões, traíras e golpistas? E ainda fez jorrar verba pública para a Globo?
O nosso Ministério Público tornou-se inviável. Ele é reacionário, contra os movimentos sociais, contra os direitos humanos, e aí, para criar popularidade, e ele passa também a ser contra a política. Embriagado pelo sucesso na mídia, ele vai mais longe, e parte para cima das grandes empresas nacionais. E assim não sobra nada no país: nem movimento social, nem políticos, nem empresas. Tornamo-nos um regime de mandarins, mas em que só os servidores públicos situados no alto da pirâmide se dão bem. Os debaixo, ou seja, a grande maioria do funcionalismo agora não recebe nem salários, como acontece no Rio de Janeiro. Tem que trabalhar de graça, como escravos.
Aliás, eu tenho uma dúvida. Com essa crise fiscal toda que acomete o estado do Rio de Janeiro, em que os servidores não recebem reajuste, não recebem salário, e ainda são espancados pela polícia quando protestam, o estado ainda está bancando as regalias do judiciário e do Ministério Público?
Eu fico lembrando de toda aquela perda de tempo em torno da “reforma política”. Ora, nunca haverá reforma política no Brasil, como não haverá reforma de nada, se não derrubarmos os muros da nossa prisão midiática, que não deixa entrar oxigênio no debate público.
No dia que o Brasil fugir desta isolada e distante ilha-prisão em que a mídia converteu o país, ele poderá rediscutir o papel do ministério público, do judiciário, democratizar os meios de comunicação, e se tornar, enfim, uma democracia.