Exclusivo! O papel do Ministério Público na crise política brasileira. Uma conversa com Fabio Kerche

(Foto: Fábio Kerche, em sua coluna em vídeo para o blog Nocaute)

Fabio Kerche é um cientista político, pesquisador da Fundação Rui Barbosa e, no momento, faz pós-doutorado na American University, em Washington. Ele é “research fellow” no Centro de Estudos Latino americanos (CLALS- Center for Latin American and Latinos Studies).

Lá de Washington, ele acompanha o que acontece no Brasil e, sendo uma personalidade progressista e um homem inteligente, lê, naturalmente, o Cafezinho.

Depois de assistir a uma conversa em vídeo entre eu e João Feres, o criador do Manchetômetro, ele entrou em contato para falar sobre um dos assuntos que eu e Feres abordamos: as diferenças e semelhanças entre a brasileira Lava Jato e a italiana Mãos Limpas.

Eu pedi e ele concordou em estabelecermos uma conversa por escrito, via email, voltada exclusivamente para a publicação no Cafezinho. Acadêmico, Kerche encheu suas respostas de citações entre aspas, seguidas de parênteses, com as fontes, mas eu preferi simplificar e cortei todas as aspas e parênteses. Que isso fique registrado.

Eu sugiro que os leitores se debrucem com muita atenção sobre essa entrevista, porque ela nos ajudará a quebrar um pouco o sentimento de prisão política que a mídia nos impõe, ao não trazer jamais nenhuma informação sobre como funciona os processos penais em outros países.

É muito interessante saber, por exemplo, que o ministério público federal nos EUA, na França, na Inglaterra, é inteiramente controlado pelo governo. No âmbito municipal e estadual dos EUA, os MP são controlados pelos eleitores, que elegem os procuradores.

Agora pense no “acordo” de cooperação internacional entre o Ministério Público do Brasil, que não é controlado por ninguém, e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, inteiramente controlado pelos interesses políticos e econômicos do governo americano.

O modelo brasileiro é raro no mundo e é um dos mais autoritários, sem nenhum tipo de controle democrático por parte do governo ou dos cidadãos. Temos um MP ensandecido, profundamente corrupto, embriagado pela impunidade absoluta de que goza, mergulhado no jogo sujo da política partidária e institucional, preocupado antes em preservar seu poder de chantagear os governos (e manter seus privilégios e salários – os maiores do mundo), e fazer shows pirotécnicos na mídia, do que em manter a estabilidade política e econômica do país, condição sine qua non para o desenvolvimento.

Os procuradores aqui são pistoleiros independentes, que podem destruir o país, como fizeram os responsáveis pela Lava Jato, sem ter de prestar contas a ninguém.

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Segue abaixo, a íntegra da nossa conversa.

Miguel do Rosário: Fábio, você disse que está preparando um estudo, para um congresso aí nos EUA, sobre as diferenças entre a Mãos Limpas e a Lava Jato. Nesse trabalho, pelo que eu entendi, você vai apresentar também as diferenças entre os ministérios públicos nas principais democracias do mundo. Comecemos falando sobre as Mãos Limpas. Como foi essa operação?

Fabio Kerche: Boa tarde, Miguel e leitores do Cafezinho. Bem, em fevereiro de 1992, em Milão, um administrador de um hospício público, membro pouco expressivo do Partido Socialista, foi pego recebendo uma propina de algo como US$ 5.000,00. Esse foi o estopim para a Mãos Limpas que tem números impressionantes: 5.000 pesssoas investigadas, entre elas 6 ex-primeiros-ministros e 200 parlamentares. Como consequência, o sistema partidário sofreu mudanças dramáticas e o antigo equilíbrio político construído no pós-guerra se desmanchou. Entre 1992 e 1994, os 5 mais importantes partidos políticos colapsaram.Mesmo as agremiações que não participavam das coalizões que governavam a Itália após a Segunda Grande Guerra, como o Partido Comunista e os grupos pós-fascistas, sofreram transformações radicais nos anos seguintes. Enquanto isso, novos atores politicos emergiram na cena para preencher o vácuo político que foi deixado pela desintegração do velho. É nesse contexto que Silvio Berlusconi, o homem mais rico da Itália, e proprietário de vários veículos de comunicação, cria um novo partido de centro-direita, Forza Italia, e se torna primeiro-ministro do país.

Miguel do Rosário: E a Lava Jato, como poderíamos resumi-la?

Fabio Kerche: Seu leitor conhece a história. Em março de 2014, o Ministério Público brasileiro deflagra uma operação que ganhou nos anos subsequentes proporções inéditas no combate à corrupção. Os números são expressivos para os padrões brasileiros e mudam diariamente. A última vez que eu chequei tínhamos 1.397 procedimentos instaurados, 654 buscas e apreensões, 174 prisões preventivas, 92 prisões temporárias, 6 prisões em flagrante, 70 acordos de colaboração premiada e 6 acordos de leniência com empresas. Foram presos políticos e grandes empresários. Empresas brasileiras com projetos no exterior sofreram expressivas perdas financeiras e de imagem após a deflagração da Operação. O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, embora não tenha sido formalmente baseado em corrupção, foi alimentado pelas denúncias e prisões. O Partido dos Trabalhadores viu seu apoio popular cair e teve uma expressiva perda do número de prefeituras administradas pela legenda nas eleições de 2016. A Operação Lava Jato já deixou marcas profundas na economia e na política brasileira.

Miguel do Rosário: Ótimo. E quais as comparações que poderíamos fazer entre a Lava Jato e a Mãos Limpas?

Fabio Kerche: O juiz Sérgio Moro não esconde seu entusiasmo pelo processo italiano. Em artigo, afirma que a Operação Mãos Limpas é um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário e constitui objeto de estudo obrigatório para se compreender a corrupção nas democracias contemporâneas e as possibilidades e limites da ação judiciária em relação a ela. O combate à corrupção pela via judicial da Itália, inegavelmente, é fonte de inspiração para o sistema judicial brasileiro. No meu artigo eu tento mostrar que a Mãos Limpas foi mais do que simplesmente fonte de inspiração da Lava Jato. Há muitas semelhanças institucionais que geram estratégias parecidas. Comparar modelos institucionais é sempre delicado e há diferenças importantes. Por exemplo: na Itália, os juízes de primeira instância podiam processar políticos com mandato. No Brasil, por conta do foro privilegiado, o núcleo de Curitiba se concentra em políticos sem mandato, como o Lula.

Miguel do Rosario: Maravilha, Fábio. Vamos à primeira parte do seu artigo. Como são os promotores nas principais democracias do mundo?

Fabio Kerche: Todos os Estados com democracias consolidadas possuem uma instituição responsável pela ação penal. Esse é o ponto em comum, mas as características dessas instituições são diversas. As promotorias variam no que diz respeito à sua localização (parte do Poder Executivo, Poder Judiciário ou independente); características do sistema legal e como se dá a seleção, recrutamento e treinamento dos promotores. Mas eu creio que a variáveis políticas mais importante são a accountability política, a discricionariedade e a autonomia em relação a outras instituições públicas. De maneira geral, podemos dizer que quanto mais accountable pelos eleitores, mais discricionário tende a ser uma instituição. Ou seja, ser responsivo aos cidadãos garante mais liberdade de escolha, justamente porque de tempos em tempos é necessário prestar contas dessas escolhas e ser passível de responsabilização por elas. Uma instituição do Estado ser pouco accountable, muito discricionária e bastante autônoma é estranho ao sistema democrático.

Pensando nessas variáveis, argumento que são 3 os modelos de promotorias nas democracias: o burocrático, o mais comum, o modelo eleitoral e o independente.

Miguel do Rosário: Você já me explicou que o modelo brasileiro é “independente”, um dos tipos menos democráticos e que concede mais autonomia ao MP. Eu acho que essa é uma das razões de estarmos vivendo a atual anarquia institucional. Mas fale-nos primeiro dos modelos burocrático e eleitoral.

Fábio Kerche: No modelo burocrático, as promotorias normalmente são órgãos do Poder Executivo. A política criminal é realizada com a colaboração dos promotores subordinados ao ministro da justiça. É o ministro que fiscaliza a atuação dos promotores, escolhe prioridades, acompanha a execução do orçamento etc. E é o governo, em última instância, que pode ser responsabilizado pela atuação da promotoria, como qualquer outra agência burocrática controlada pelo Poder Executivo. Pela característica de envolver prioridades e alocação de recursos, já que não é possível processar todos os crimes, envolvendo sempre algum grau de discricionariedade, o papel do promotor é uma função executiva, não judicial. Este é o modelo em países como os Estados Unidos em nível federal, Inglaterra, Espanha, França, Holanda, Japão e Alemanha.

A promotoria tem um papel muito importante para a democracia. Como geralmente o Poder Judiciário é inerte, somente agindo quando provocado por um terceiro, o papel de controlar o fluxo de ações penais propostas aos juízes é fundamental. São os promotores que fazem o primeiro filtro do que deve ou não ser levado à decisão do Poder Judiciário, permitindo ao ambiente político regular, até certo ponto, as demandas por ações colocadas ao sistema judicial.

Quando os políticos eleitos delegam aos promotores o direito de fazer certas escolhas, a contrapartida é que esses promotores devem responder ao governo. Quando os cidadãos delegam aos políticos o direito de fazer certas escolhas, inclusive na área criminal, a contrapartida é que esses cidadãos podem punir os políticos, ou premiá-los, por meio das eleições. A desvantagem, entretanto, é que a ligação com o governo diminui a autonomia do promotor para processar os políticos.

Miguel do Rosário: Obrigado pela aula, Fábio! Explique-nos agora como funciona o modelo eleitoral.

Fábio Kerche: O modelo eleitoral de promotoria seleciona seus promotores por meio de eleições diretas e regulares, em um processo semelhante a qualquer outro cargo público, sofrendo dos mesmos incentivos e restrições de outros políticos. Este é o modelo observado nos Estados Unidos, em nível estadual e dos condados. Não é por outra razão que são os promotores com maior grau de discricionariedade e com grande autonomia para negociar penas sem a participação do juiz. É justamente a accountability exercida diretamente pelos cidadãos por meio de eleições regulares, em um claro mecanismo de accountability vertical, que assegura o alto grau de discricionariedade. O modelo gera autonomia justamente porque os próprios promotores são políticos. Portanto, os promotores são autônomos em relação ao governo, mas não em relação aos eleitores. A desvantagem deste modelo (sempre existem vantagens e desvantagens!) é que em anos eleitorais, os promotores são muito mais agressivos, buscando agradar seus eleitores.

Miguel do Rosário: Enfim, chegamos ao modelo independente, como são os MP de Brasil e Itália! Fale-nos sobre ele!

Fábio Kerche: No Brasil e na Itália, os promotores são muito autônomos, tanto em relação aos políticos, quanto em relação aos eleitores. Assim, quando os promotores agem no sentido desejado pelos cidadãos, isso é uma coincidência, e não é fruto de incentivos como nos outros modelos. O outro lado também é verdadeiro: quando um promotor não atua na direção desejada pelos brasileiros ou pelos italianos, os cidadãos praticamente não tem o que fazer. Como contrapartida a essa autonomia e falta de accountability, o sistema foi desenhado, pelo menos em teoria, para que os promotores tivessem baixa discricionariedade. No entanto, na prática, isso não funcionou. Na prática, os promotores italianos e brasileiros tem altas doses de liberdade para decidir sobre o encaminhamento de uma denúncia. Se por um lado, os promotores são mais livres para poderem processar políticos em casos de corrupção, por outro, a possibilidade de responsabilização dos próprios promotores é bastante dificultada, para não dizer impossível. O modelo é incomum e se baseia mais no acaso do que em regras e incentivos institucionais.

Miguel do Rosário: Como o MP funciona na Itália?

Fabio Kerche: Na Itália o Poder Judiciário e o Ministério Público são unificados. Um mesmo integrante pode exercer ao longo de sua carreira o papel de juiz em um momento, e o de promotor, em outro. O público em geral não percebe mais a diferença entre os dois papéis. O medo dos tempos sombrios do fascismo levou ao modelo que garante altas doses de autonomia aos magistrados italianos frente aos políticos, mas também aos cidadãos. Na prática, isso se dá porque quem administra o Judiciário italiano é um Conselho formado, em sua maioria, por magistrados. Mas mesmo esse Conselho tem pouca interferência sobre os seus supostos subordinados. As promoções, por exemplo, são mais por antiguidade do que por mérito. Esse tipo de autonomia interna dificulta uma atuação dos promotores de forma previsível e uniforme. Outro agravante: reformas na década de 80 garantiram mais discricionariedade aos magistrados italianos, autorizando que eles coordenassem as investigações criminais. Dessa forma, todas as etapas do processo criminal (investigação, acusação e julgamento) foram parar nas mãos dos magistrados que são colegas e fazem parte da mesma instituição. Além disso, uma gama enorme de assuntos podem ser tratados pela via criminal. Na Itália, a acusação tem significativa vantagem em relação à defesa em um processo criminal.

Essa grande liberdade, permitiu a adoção de uma estratégia nas Mãos Limpas baseada em dois pontos: delações dos investigados e busca por apoio da opinião pública. O primeiro ponto era perseguido por meio de delações incentivadas. Na busca de obter vantagens para si, como não ir preso antes do julgamento, o investigado apontava outros nomes, o que garantia que a sequência das investigações ocorressem.

Outra parte da estratégia era obter o apoio da opinião pública utlizando a imprensa. De certa forma, os jornalistas eram ‘usados’ pelos magistrados para construir apoio para sua investigação. O que no início era uma competição entre políticos e magistrados pelo apoio popular, transferiu-se para o campo da luta partidária propriamente dita, com vários promotores disputando eleições e, inclusive, fundando um novo partido político.

Miguel do Rosário: E no Brasil, como se formou o MP? E como se formou a força-tarefa da Lava jato?

Fabio Kerche: A partir da Constituição de 1988, o modelo burocrático de Ministério Público no Brasil foi desfeito. A instituição, que era ligada ao Poder Executivo, passa a ser independente de todos os Poderes de Estado. Um membro do Ministério Público agir no sentido desejado pelos cidadãos é uma coincidência, mas não consequência de incentivos gerados por eleições ou por instrumentos cotidianos de controle por parte do governo ou de políticos. E assim como na Itália, a hierarquia é bastante frouxa. Um promotor pode ser promovido por antiguidade e somente perde o cargo em situações excepcionais.

Essa autonomia poderia ser menos estranha ao modelo democrático se fosse acompanhada de baixa discricionariedade. Ou seja, se eles apenas aplicassem a lei, levando todos os casos ao Judiciário. Mas isso mudou nos últimos anos. Além da independência, eles tornaram-se mais discricionários. Os promotores podem conduzir investigações penais e selar acordos de delação, por exemplo. Além disso, aproximando-se do modelo italiano, a antiga divisão de tarefas (o policial investiga, o promotor acusa e o juiz decide sobre o caso), e que servia como uma espécie de controle interno ao próprio sistema de Justiça, pelo menos em Curitiba, foi substituída por cooperação, como aponta um importante estudioso da área. Assim, todas as etapas ficaram concentradas em atores muito próximos, mesmo que isso tenha sido obtido por aparentes acordos tácitos entre os atores. Essa combinação pode ser explosiva: autonomia, discricionariedade e concentração. Temos um sistema de justiça em que as fronteiras institucionais dos atores envolvidos não são mais tão claras e a possiblidade do Ministério Público trabalhar em conjunto com a Polícia ou investigar por moto próprio se tornou presente. Na Operação Lava Jato, pelo menos em sua instância inicial, assistimos um modelo de diminuição dos custos de transação de uma ação penal para o combate à corrupção por conta de uma espécie de suspensão das fronteiras institucionais entre Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia. Se o Ministério Público na Operação Lava Jato e o Ministério Público italiano na Operação Mãos Limpas não são animais da mesma espécie, talvez por conta do foro privilegiado, são pelo menos do mesmo gênero, para usar conceitos da biologia.

Além dessa aproximação institucional, as estratégias são semelhantes. Assim como na Itália, o uso de acordos para os réus denunciarem supostos comparsas e buscar apoio na midia também é usado pela Lava Jato.

Miguel do Rosário: Muito obrigado pela entrevista, Fábio. E agora vamos às suas considerações finais.

Fabio Kerche: Os números superlativos de prisões da Operação Mãos Limpas não escondem que a corrupção não acabou na Itália. Um dos mais importantes pesquisadores da Operação italiana disse que a Operação Mãos Limpas pode ser considerada uma conquista incrível em curto prazo, mas um fracasso em longo prazo. O problema é que as reformas institucionais necessárias não foram realizadas, modificando pouco as bases que tornaram possível a ocorrência de ilegalidades. Além das consequências políticas, com o desmonte do sistema partidário italiano, a corrupção deixou de ser importante no debate eleitoral, até porque somente 0,2% dos eleitores em 2008 consideravam o tema como a pauta prioritária do governo. A questão é observar se essa italianização da Justiça no Brasil vai ficar restrita ao modelo institucional e a estratégia ou vai se estender também aos resultados frustrantes da Itália? O tempo dirá, embora eu não seja otimista.

[Arpeggio – coluna política diária de Miguel do Rosário – 16/02/2017]

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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