A luta contra o golpe demorará muitos anos, porque não será resolvida apenas com uma vitória eleitoral, em 2018, ou 2022, ou 2026.
Será preciso completar o processo iniciado com a Constituição de 1988 e democratizar os aparelhos repressivos do Estado, para onde refluíram todas as forças e energias reacionárias derrotadas pela volta à democracia.
Esse é o erro da mídia. A vitória de Lula em 2002 não foi apenas uma vitória do PT, e sim o momento culminante de um processo, tão antigo como a própria história brasileira, de afirmação de valores e virtudes nascidos da luta por liberdade e democracia. Esse processo estava nas letras improvisadas dos repentistas nordestinos, nas canções de João do Vale, nos raps agressivos dos Racionais MC, na literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos, no cinema de Glauber Rocha.
O processo que derrotará o golpe e nos levará a um estágio mais avançado, da mesma forma, pode demorar um pouco. Mas ele já está em curso.
Um dileto amigo jurista, Rogério Dultra, também colunista eventual do Cafezinho, participou de uma revista de direito lançada há pouco pela PUC-RS, contendo artigos de altíssimo nível, que denunciam o avanço do fascismo penal, o estado de exceção e a criminalização da política.
Abaixo, eu publico a introdução da revista, escrita por Rogério Dultra.
O link da revista está aqui.
Todos os artigos são bons, mas eu darei destaque às colaborações de dois colunistas do Cafezinho: o já citado Rogério que, além da introdução, tem um brilhante artigo sobre o papel da mídia no processo de criminalização da política; e o de João Ricardo Dornelles, que denuncia o populismo penal.
Abaixo, os links dos artigos mencionados acima:
“Estado de exceção”, populismo penal e a criminalizaçãoa daa política
Por João Ricardo W. Dornelles
Estado de exceção e criminalização da política pelo mass media
Por Rogerio Dultra dos Santos
Abaixo, trecho o texto de introdução de Dultra:
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A criminalização da Política
Por Rogério Dultra*
O processo penal brasileiro funciona de forma sistemática como um instrumento de criminalização das classes populares. Subordinadas ou mesmo apartadas do processo produtivo, estas colaboram para o andamento do sistema capitalista como objetos passivos da engrenagem econômica do aparato repressivo do Estado. Esta afirmação se corrobora pelo fato – largamente comprovado por dezenas de pesquisas empíricas e estatísticas – de que os parâmetros normativos, os limites da legislação processual e penal para o arbítrio, não funcionam na prática cotidiana do sistema penal, sendo incapazes de evitar as violações de direitos aos efetivamente selecionados pelo sistema.
As instituições repressivas não somente voltam a sua carga para a criminalização da pobreza, como garantem instrumentos para a defesa e o livramento dos grupos sociais poderosos. Este funcionamento seletivo do sistema repressivo brasileiro, que viola direitos e criminaliza extratos específicos da população independentemente das balizas normativas, se dá praticamente sem alterações substantivas desde a reforma de 1941, sob a influência de uma dogmática processual autoritária em muitos aspectos. É incontornável o fato de que as razões políticas e econômicas do processo orientam a sua gestão. O juiz é, em geral, um agente sobredeterminado por questões outras que não as estritamente jurídicas no momento em que decide sobre o caso penal. A barganha, a transação, a negociação, o blefe são os novos instrumentos que o processo penal brasileiro passou a oferecer para que se alcance os objetivos sociais de criminalização. Esta situação técnica, que se consolida no país há pelo menos 20 anos sob os auspícios de uma perspectiva social e econômica neoliberal, encontra simultaneamente, no contexto de inéditas décadas de estabilidade democrática, um novo objeto de intervenção: a criminalização da política.
A criminalização da política, este objeto que necessita urgentemente de investigações acadêmicas sistemáticas, aponta para uma nova estratégia política, que vai muito além da questão dos crimes políticos, dos crimes eleitorais e dos crimes de responsabilidade eventualmente praticados pelos governantes e autoridades públicas. Trata-se de envolver o sistema judicial como parte de um atalho para que grupos poderosos na sociedade possam contornar os “inconvenientes” do processo democrático, especialmente quando não lhes favorece, o que sói ocorrer em situações nas quais o voto popular endossa projetos políticos que contrariam as estratégias de poder voltadas à manutenção das históricas desigualdades e exclusões. Seria algo como recorrer aos tribunais como forma de Guerra, afirma Otto Kirchheimer. Tal estratagema, a seu turno, encontra-se, no caso brasileiro, com uma forte tradição de legalidade autoritária, segundo chave conceitual explorada pelo brasilianista Anthony W. Pereira. A criminalização da política é bastante comum na história política do ocidente, especialmente se se leva em consideração as formas usuais de disputa de poder, como a força, o dinheiro e, desde os anos 1930, a manipulação emocional das massas pela mídia. Fora do governo e sem a legitimidade do voto, utilizar-se do recurso aos Tribunais mostra-se um movimento que ao mesmo tempo, ameaça a democracia e ainda é eivado de mistérios e zonas cinzentas que demandam um convite aos estudos acadêmicos que possam avaliar de forma consistente este fenômeno.
Este Dossiê da Revista Sistema Penal & Violência foi organizado, portanto, a partir da colaboração de autores que se dedicaram a examinar o fenômeno complexo da criminalização da política. Todos os autores optaram por examinar o processo de criminalização especificmente na realidade brasileira, seja a partir da perspectiva do direito e do processo penal, seja pelo viés criminológico – onde se destaca a influência da criminologia crítica – seja pela abordagem constitucional e/ou histórica. Em todos os textos a criminalização é compreendida como um fenômeno que se realiza em sintonia com o recrudescimento do aparato repressivo do Estado, estimulado pelo gerencialismo. Nesse sentido, os textos ressaltam, a partir de abordagens variadas, o contexto de ascensão do neoliberalismo e a conseqüente perspectiva que difunde a forma “empresa” como modelo de organização da vida social e das instituições políticas. Esta perspectiva gerencialista tem, por óbvio, um caráter autocrático que não se integra com a pluralidade política característica de um ponto de vista democrático.
Outro ponto forte deste Dossiê é a atenção dada não somente à criminalização da pobreza e dos movimentos políticos e sociais populares no Brasil. Um ponto sempre tocado pelos artigos é o caráter paradigmático da “Operação Lava-Jato” no seu processo de criminalização da alternativa política representada pelo Partido dos Trabalhadores. Nota-se, na descrição do fenômeno, as suas raízes na Ação Penal 470 do Supremo Tribunal Federal, conhecida como “Mensalão”. O processo do “Mensalão” antecipou inúmeras violações processuais e constitucionais que foram consolidadas na atuação da Justiça Federal, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal sob o comando da 13ª Vara Especializada de Curitiba. Assim, é possível extrair da leitura global dos artigos que a “Operação Lava-Jato” transformou-se no paradigma operacional do sistema repressivo, ampliando os riscos do fascismo nas instituições policiais e judiciais do Estado brasileiro.
Assim, os artigos apresentados a seguir têm em comum o compromisso com o exame qualificado e percuciente de um fenômeno que coloca na berlinda a higidez do nosso sistema jurídico como um todo, revelando as limitações da defesa da democracia e do Estado de Direito através das instituições jurídicas. Nesse sentido, o Direito, sob a situação histórica da criminalização, configura-se como um instrumento de realização da violência política, social e econômica. E isto não somente contra parcelas tradicionalmente fragilizadas da população brasileira, mas especialmente contra as esquerdas. Nesse sentido, a destituição de Dilma Rousseff da Presidência da República e a ascensão do regime Michel Temer não passam despercebidos e são examinados como epifenômenos da generalização do estado de exceção e da criminalização política.
É assim que no artigo intitulado Estado de exceção, populismo penal e a criminalização da política, o professor João Ricardo Wanderley Dornelles examina a passagem nada sutil do pretendido império da lei para o factual império da exceção. Influenciado pela crítica filosófica de Walter Benjamin e orientado pela perspectiva criminológica de Zaffaroni, Dornelles ressalta o caráter de regularidade do estado de exceção. A prevalência da perspectiva política e econômica do neoliberalismo invade a esfera do direito e reorienta o funcionamento das instituições repressivas na direção do populismo penal. O exemplo da “Operação Lava-Jato” é examinado por Dornelles como expressão máxima de uma perspectiva moralista que objetiva “limpeza ideológica” e que se realiza desconhecendo olimpicamente limites jurídicos e constitucionais para alcançar seus objetivos.
Já no artigo Politização da criminalidade e vulnerabilidade social: entre os paradigmas da justiça criminal e da seletividade penal os autores Luciano de Oliveira Souza Tourinho, Ana Paula da Silva Sotero, Mariana Gomes Lima e João Leles Nonato examinam a criminalização da política através da configuração jurisprudencial e doutrinária do Direito Penal brasileiro. O caráter plural do conceito de responsabilidade – subjacente à ideia de criminalização da política – implica a relação entre ação política e responsabilidade pública. Nesse sentido o tratamento político dado pelas decisões judiciais na repressão aos movimentos sociais de protesto – como as manifestações de 2013 e as ações do MST, por exemplo –, é examinado como estratégia de criminalização e de desarticulação seletivas das forças sociais de esquerda. Estas últimas são responsabilizadas pela “perturbação da ordem”. O texto destaca o papel político exercido pelo Poder Judiciário na naturalização do perfil criminoso das classes vulneráveis, aprofundando a seletividade penal.
Por sua vez, A criminalização da pobreza na América Latina como estratégia de controle político: quando a exceção constitui-se como meta-regra repressiva, artigo de Lucas Lopes Oliveira, objetiva examinar em perspectiva histórica os padrões repressivos contra as classes subalternas no continente latino-americano. A violência institucional contra revoltas populares no período colonial permanece operativa em todo o continente sob a lógica do inimigo, desdobrada em funcionalidades disciplinares, biopolíticas e eugênicas. Na esteira dos estudos de Foucault e da criminologia latino-americana, o texto examina a configuração das instituições repressivas propriamente ditas e o seu processo de renovação sob uma roupagem pretensamente democrática, seja no “combate” à insubordinação política dos grupos guerrilheiros, seja na eleição do “combate” às drogas ou ao terrorismo como foco do controle social, sempre em oposição à lógica iluminista dos direitos humanos.
Abordando o tema Estado de exceção e criminalização da política pelo mass media Rogerio Dultra dos Santos pretende examinar teoricamente os fundamentos da relação entre o processo de criminalização e a simbiose entre instituições repressivas – especialmente o Poder Judiciário – e os meios de comunicação de massa. Nesse diapasão, a utilização do modelo constitucional antiliberal de inspiração nazi-fascista do estado de exceção é examinado em sua gênese – sob o comando intelectual do jurista Carl Schmitt –, e é identificado: a) como fundamento jurídico-retórico da ascensão do punitivismo retributivista e, b) como motor da substituição da decisão judicial pela condenação sem processo dos inimigos através dos meios de comunicação de massa. No texto, influenciado pelo aporte teórico da crítica à justiça política de Otto Kirchheimer, da criminologia de David Garland e da teoria da comunicação de John B. Thompson, percebe-se que a lógica binária legal/ilegal é substituída pelos interesses econômicos e políticos dos que ocupam as instituições repressivas, em convergência com os interesses de mercado dos conglomerados de comunicação.
Por fim, no texto A política é a guerra continuada por outros meios? Bruno Silveira Rigon utiliza-se do aforisma de Clausewitz, invertido por Michel Foucault, para ressaltar o caráter belicoso da atividade repressiva do Estado sobre seus inimigos. A ampliação do fanatismo e das posições extremas no espectro político estimula o esvaziamento do espaço público e a deslegitimação de saídas institucionais de natureza democrática. A resultante, examinada pelo autor, é a ascensão do fascismo institucional, exemplificado pela figura salvacionista do herói e pelo deslocamento das decisões de raiz político-democrática para os tribunais – consolidando o processo de burocratização autocrática e, portanto, antidemocrática da política. O texto segue nesta direção, examinando o exemplo da “Operação Lava-Jato” como instrumento de subordinação da democracia a desígnios personalistas e ditatoriais de uma soberania seqüestrada.
Perceber-se-á, portanto, na leitura dos textos apresentados neste Dossiê, a convergência das estratégias de criminalização da política institucional com as estratégias de criminalização da política em seu sentido mais agudo e social, ou seja, a criminalização dos movimentos sociais populares e dos direitos de manifestação e protesto. Estes são expedientes empregados de modo mais tradicional na América Latina e no resto do mundo, mas que assumem aspectos inusitados no cenário descrito acima. Nesse sentido, o processo histórico de democratização do continente latino-americano – e, especialmente, do Brasil – está ligado à capacidade de resistência à fascistização do sistema repressivo. Os textos aqui organizados representam um retrato contundente da realidade de fragilização das instituições democráticas contemporâneas. É um documento que traz ao debate acadêmico e científico os desafios a serem enfrentados para a radicalização da redemocratização e para a real implantação do Estado de Direito. O diagnóstico aqui produzido estabelece-se como um norte consistente para esses objetivos. Assim, desejo a todos uma excelente leitura!
Rogerio Dultra dos Santos
Doutor em Ciência Política pelo antigo IUPERJ
Professor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense
Email: rogeriodultra@yahoo.com.br