Ontem à noite, um fato inédito aconteceu no Brasil, cujas consequências a grande mídia provavelmente não se deu conta.
O Intercept, site gerido pelo jornalista Glenn Greenwald, que arriscou a vida em reportagens de denúncia contra a megaespionagem feita pelo governo americano, publicou o conteúdo das mensagens que um juiz federal, a pedido da presidência da república, proibiu que fossem veiculadas na imprensa brasileira.
É importante fazer uma ressalva aqui. A intimidade das pessoas deve ser preservada, mesmo da primeira dama, mas não foi isso que fez a Justiça do Distrito Federal. Ela mandou os jornais removerem reportagens que simplesmente abordavam o roubo do conteúdo do celular de Marcela Temer, a chantagem sofrida e a prisão do hacker! O conteúdo publicado pela imprensa era público, constante em autos do processo que podem ser acessados por qualquer um!
O Intercept, que foi criado pelo bilionário Pierre Omidyar, criador do Ebay, na onda de indignação de inúmeros magnatas do Vale do Silício e da indústria de informação com os atentados do governo americano contra a liberdade individual (ou seja, indignação contra a espionagem em massa de governos, cidadãos e empresas) divulgou ontem o conteúdo censurado pelo judiciário brasileiro.
As mensagens veiculadas pelos jornais Globo e Folha não tem nada demais. Eventuais fotos indecentes da “recatada e do lar”, supostamente alvo de chantagem, não foram nem deverão ser veiculadas pela imprensa chapa-branca.
A indignação da Folha e Globo contra a decisão da justiça e contra o próprio Michel Temer chega a ser divertida. É como se eles dissessem para Temer e o juiz:
“ora, porque fazer isso com a gente, que sustenta esse governo, que articulou o golpe e ajudou esse governo a existir? Não vamos publicar, obviamente, nada indecente da Marcela, nem desabonador contra Michel Temer! Queríamos só fingir um pouco de jornalismo! E agora vocês nos constrangem com uma censura? Burros! Agora é que o assunto vai explodir!”
Glenn Greenwald é um homem de esquerda, uma personalidade independente, livre. Um dia, num futuro distante, os jornalistas brasileiros vão entender que eles também podem ser livres, que podem ser de esquerda, petistas, tucanos, liberais, conservadores, preservar seu direito à livre expressão, e que nada disso os impedirá de ser imparciais, honestos e competentes. Esse teatrinho ridículo, essa falsidade profissional, que obriga o jornalista brasileiro a se comportar como uma espécie de máquina programada pela empresa, na qual ele não tem gosto, não tem partido, não tem ideologia, não tem cérebro, isso um dia vai acabar.
A presença de Greenwald no Brasil, por isso mesmo, é um eterno constrangimento para a nossa imprensa, porque ele dá um mau exemplo. Ele faz os jornalistas brasileiros corporativos se sentirem o que realmente são: um bando de trabalhadores forçados remando nas galés do golpe, fazendo o barco de guerra da mídia ir na direção desejada pelo que há de mais podre e corrupto na política nacional.
O fato da mídia brasileira se pretender “paladina da luta contra a corrupção” apenas acrescenta hipocrisia a seu interminável rol de vícios. Toda a corrupção que assola o país bebeu na cumplicidade dessa mesma imprensa, que apoia golpes de Estado desde a década de 50. No caso da Globo, ela não apenas apoiou o golpe de 1964, como foi uma das principais articuladoras e incentivadoras do endurecimento do regime em 1968.
E a Globo não tem amigos. Um caso emblemático é o do ex-ministro Antonio Palocci. Por ocasião da morte de Roberto Marinho, Palocci enviou uma nota afirmando que “o doutor Roberto Marinho foi fundamental na construção da democracia brasileira e no fortalecimento da estabilidade das instituições democráticas do Brasil”.
Risos diabólicos.
Hoje Palocci é uma espécie de prisioneiro político da Globo em Curitiba.
Na reportagem em que publica o conteúdo proibido pela justiça totalitária do Distrito Federal, o Intercept de Gleen Greenwald não resiste a dar uma merecida alfinetada na grande imprensa brasileira. Quer dizer, não é bem uma alfinetada, é mais um tapão na cara.
Não fazemos isso por conta de nosso afeto pela Folha de S. Paulo ou pelo Globo. Os dois jornais atacam a liberdade de imprensa de outros veículos regularmente. A associação por eles controlada entrou com um processo que busca negar a liberdade de imprensa a veículos como BBC Brasil, El Pais Brasil, BuzzFeed Brasil e The Intercept, pedindo aos tribunais que determinem que não podemos fazer reportagens sobre o Brasil. E, ironicamente, esses dois veículos apoiaram o impeachment de uma presidente eleita democraticamente, Dilma Rousseff, levando Temer ao poder.
Pelo contrário, fazemos isso por reconhecer que o ataque à liberdade de imprensa de qualquer meio de comunicação – mesmo do Globo e da Folha – representa uma ameaça à liberdade de imprensa de todos. Estamos publicando o material em defesa do direito dos meios de comunicação de trabalharem sem qualquer censura por parte do Estado, assim como para levar informações vitais que o público tem direito de saber sobre seus líderes.
Pow!
O Intercept é muito elegante. Em linguagem mais direta, mais franca e mais blogueira, traduziríamos o recado do Intercept assim:
Não fazemos isso por amor a Folha ou Globo. Ao contrário, sabemos que esses dois veículos praticam um jornalismo de merda. Um jornalismo plutocrático, golpista e profundamente hipócrita. E que agora, com o governo Michel Temer, revelou o que sempre foi no fundo: chapa branca e viciado em dinheiro público.
A associação controlada por eles, em seu afã para manter os brasileiros isolados nessa sufocante prisão política em que a grande mídia transformou o Brasil, agora tenta prejudicar o trabalho de sites internacionais de jornalismo, tentando impor, via judiciário, regras que deixem o seu trabalho mais oneroso. Ou seja, esses veículos, que recebem milhões e milhões de verba pública, e no governo Temer tem recebido quantidades recordes, e que, mesmo assim, não tem feito outra coisa a não ser demitir jornalistas, esses veículos que tratam jornalistas como escravos, pagando sempre menos e exigindo sempre mais, tem medo de que outros veículos não apenas rompam as narrativas políticas estabelecidas por eles, como ofereçam aos jornalistas brasileiros uma possibilidade de fugir à escravidão.
Pois bem, mesmo assim, a gente luta pela liberdade de imprensa deles, porque entende que é a liberdade de imprensa de nós todos.
Vale acrescentar que a grande mídia apenas se alvoroça contra a censura do judiciário quando ela é diretamente atingida. Quando blogueiros são atingidos, ela não fala nada. Isso quando não é ela mesmo que manipula o judiciário para atingir a liberdade de expressão. Um executivo importante da Globo mantém um site em que se gaba de processos contra blogueiros. Detalhe macabro: esses processos acabam sempre relatados em segunda instância por um desembargador cuja reputação foi muito bem descrita pela Agência Pública. Ou seja, um sujeito que não aguentaria dois dias de reportagens da Globo é o responsável por decisões em segunda instância de processos movidos pela Globo contra… blogueiros.
Poderíamos ainda falar de casos mais sinistros, de assassinatos de blogueiros, que também não mobilizam a grande imprensa.
No ano passado, a organização Repórteres Sem Fronteiras divulgou um relatório sobre o Brasil com uma denúncia duríssima contra a grande imprensa nacional, acusando-a de se alinhar ao impeachment, de ser partidária, de tolher a liberdade de expressão de seus funcionários e denunciou severamente a concentração dos meios de comunicação no país. A mesma matéria menciona o homicídio crescente de blogueiros, principalmente em cidades pequenas. A denúncia, obviamente, não saiu na Globo, e por isso eu chamo o Brasil de prisão política cujas portas são vigiadas pelos donos da mídia. Quase nenhuma informação sai do país sem passar pelo crivo da nossa mídia, e nenhuma informação chega de fora sem antes ser devidamente deturpada e adaptada por ela.
Parabéns, Intercept. E sejam bem vindos ao Brasil. Neste momento precisamos desesperadamente da presença da maior quantidade de mídias estrangeiras, que estejam de fora desse joguinho sujo e conspiratório em que mergulhou a imprensa corporativa nacional.
O Brasil não pertence a Globo. O Brasil é grande demais inclusive para pertencer apenas aos brasileiros. O Brasil pertence à raça humana e somos todos iguais, lutando por dignidade, liberdade e uma vida melhor.
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Há um outro assunto que eu gostaria de abordar, relacionado a esta censura do judiciário contra a mídia brasileira. Este é o início das turbulências entre as duas grandes forças que roubaram o poder no Brasil, em detrimento da soberania popular, representada pelo sufrágio universal: a burocracia, liderada pelas castas do serviço público, em especial o judiciário; e a mídia, liderada obviamente pela Globo. É um assunto que irei desenvolver em outro post.