Escritor refinado, intelectual preparadíssimo, acadêmico de currículo brilhante, o professor de literatura Dau Bastos entrou em contato comigo hoje para falar de um livro que a editora da UERJ, a Eduerj, está preparando, com textos em defesa da universidade pública. Bastos me enviou, em primeira mão, o texto que escreveu especialmente para este livro.
Segue o texto de Bastos. E vida longa à UERJ e à universidade pública.
Fora Temer!
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Pelo combate contínuo
Por Dau Bastos*
Em março de 2013, cheguei à Universidade de Stanford para um pós-doutorado de um ano, durante o qual planejava estudar a recepção da ficção brasileira contemporânea nos campi estadunidenses. Meu supervisor, Hans Ulrich Gumbrecht, conhecido como Sepp, sugeriu que, além de realizar minha pesquisa, eu frequentasse eventos e cursos de nossa área.
O acúmulo de atividades pesou, mas me proporcionou uma valiosa imersão na dita segunda melhor instituição de ensino do planeta. O contato com os corpos docente e discente me permitiu comprovar o que o doutorado sanduíche na também prestigiosa Sorbonne já tinha me mostrado: por mais que a universidade pública brasileira padeça de falta de recursos, seus estudantes e professores não devem nada aos colegas do hemisfério norte.
Nos colóquios, seminários e congressos de que participei, vi palestrantes ótimos, bons e até medíocres. Nas aulas, conheci docentes de diferentes níveis, como acontece também entre nós. Quanto aos alunos de graduação e pós-graduação, desfrutam de condições invejáveis, porém não me pareceram mais capazes que os nossos. Ao ouvi-los falar sobre literatura de diferentes épocas e proveniências, eu chegava a pensar que, com aquelas facilidades, muitos estudantes brasileiros, calejados que são pela adversidade, talvez conseguissem ir ainda mais longe.
Ao final de minha estada, fiz uma longa entrevista com o Sepp, que traçou um paralelo entre a situação de nossas universidades durante sua primeira vinda a trabalho aos trópicos, em 1977, e na atualidade. Lembrou que naquela época, ainda de ditadura, dizia-se que instituição de ponta era a PUC, que, justamente por ser privada, tinha condições, por exemplo, de convidar estrangeiros para fazer conferências e ministrar cursos de curta duração. A partir de certo momento, acrescentou, a situação começou a se inverter e, hoje, despontam claramente as públicas, que, ao se destacarem nos diferentes estados da Federação, colocam o Brasil à frente de nações como Portugal, Espanha e Itália.
Segue uma passagem reveladora de seu pensamento:
Eu compararia o sistema universitário brasileiro – cujas universidades boas são sobretudo públicas e as particulares com a qualidade da PUC são exceção – com o da Alemanha: universidades de ponta como a USP, a UFRJ e a PUC-Rio não devem nada às melhores alemãs. E olhe que a Alemanha tem uma grande tradição acadêmica. […] Em vez da realidade com que me deparei na década de setenta, hoje o Brasil tem um sistema universitário sólido, bem estabelecido, que funciona, com pessoas fortes em todos os estados.
Em meu retorno do pós-doc, publiquei a entrevista no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea (www.forumdeliteratura.com), que mantemos na UFRJ, e desde então costumo reproduzir alguns trechos em aulas, congressos e redes sociais. Faço isso por saber da importância de a análise brotar da cabeça de um alemão naturalizado americano respeitado nas mais importantes instituições do Ocidente, nas quais vive fazendo palestras e dando cursos.
Contrapor sua avaliação à infeliz proposta de privatização feita pelo Barroso, por exemplo, me pareceu uma boa maneira de desvelar, por contraste, a indigência da visão acadêmica do ministro do STF – que, por ignorância, leviandade e sabe-se lá que outros motivos, estimula a perpetração de um crime tão horrendo e escandaloso quanto a destruição de sítios arqueológicos pelo Estado Islâmico. Além de a universidade pública brasileira ser um patrimônio inestimável, seu desmanche reduziria drasticamente as chances de o país produzir ciência e universalizar o ensino superior. Atacá-la é investir, a um só tempo, contra o passado, o presente e o futuro.
Trunfos
A necessidade de usar todos os argumentos possíveis contra a ameaça que pesa sobre a universidade pública cresceu concomitantemente ao agravamento de uma situação que, no entanto, vem de longe. Por mais que me oponha ao golpe, não consigo esquecer o trauma vivido ainda em 2012 e repetido em 2015, quando os respectivos ministros da Educação simplesmente se negaram a dialogar com o histórico Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). A insensibilidade e intransigência de Mercadante e Janine se harmonizavam à crescente aposta no neoliberalismo por parte de um governo que, esquizofrenicamente, precisávamos combater no campus e defender nas ruas.
Mas não menciono essas duas greves emblemáticas movido pelo desencanto com parte da esquerda, e sim porque, como sabemos, as convulsões podem tanto cobrar preços altos quanto propiciar a publicização da utopia. Diante da passagem da precarização para o risco de morte, que resta à universidade pública senão se valorizar ao máximo a seus próprios olhos e da sociedade? Que a travessia pelo flagelo tenha como alvo colocá-la em posição melhor do que se encontrava antes do impeachment – que, é preciso repetir, já não era boa.
Claro, os sucessos dos inimigos públicos que usurparam o poder no ano passado são tão expressivos que, se não tivermos cuidado, desencorajam. Da mesma forma, o cansaço decorrente de a luta parecer sem fim pode levar ao esmorecimento. Mas talvez uma boa maneira de banir o desânimo seja listar alguns de nossos trunfos, a começar pela coesão entre alunos, docentes e técnicos administrativos.
Os três segmentos que compõem a comunidade acadêmica naturalmente têm pautas distintas, porém associam às suas próprias reivindicações a bandeira da otimização das condições gerais de funcionamento. No dia em que isso realmente acontecer, sim, todos poderão desempenhar a contento suas funções e a universidade realizará plenamente sua missão.
Nas discussões travadas pelos professores durante as duas greves acima referidas, por exemplo, a necessidade de organizar a carreira e melhorar os salários era bem menos tematizada que a cobrança de mais verba para a educação. Não recordo o segmento que primeiro parou, mas o movimento se mostrou verdadeiramente efervescente no instante em que estudantes, professores e técnicos administrativos formaram um só contingente de braços cruzados. A partilha de uma pauta considerável de reivindicações torna a comunidade acadêmica um monólito dos mais resistentes.
Acrescente-se o fato de a universidade tirar bastante de sua razão de ser do exercício crítico e da liberdade de expressão. Nas públicas, a percepção aguda dos obstáculos se desdobra no sentimento de que devem ser enfrentados por toda a comunidade. A aglutinação do conjunto de forças se mostra ainda mais fácil neste momento, em que os costumeiros assaltos do mercado são intermediados por políticos vistos amplamente como ilegítimos e larápios. À revolta diante do descaso com que a educação sempre foi tratada no país se soma a indignação de se perceber que o bando que tenta mais aguerridamente erradicar o sonho de universidade pública, gratuita e de qualidade é composto inteiramente por golpistas.
Métodos
A denúncia do crime em curso se faz cada vez mais presente na internet, que, levando-se em conta que toda a comunidade acadêmica é informatizada, certamente continuará um dos fronts mais valiosos. Como quase todo mundo tem familiaridade com os procedimentos de edição nas redes sociais, a divulgação de atos costuma se desdobrar na abertura de fóruns de discussão e transmissão de dados sobre os diferenciais da universidade pública, a começar pela capacidade de combinar ensino, pesquisa e extensão. Dado o espírito público do movimento, também ganha relevância a defesa de cotas, bolsas, alojamentos, bandejões, meios de transporte e demais condições de estudo. Como é sabido, a crescente disseminação de conteúdos dessa natureza ajuda a manter a chama da luta e desfaz parte da desinformação veiculada pela grande mídia – venenosamente privatista.
Agora, devo admitir que a certeza de que conseguiremos cada vez mais resultados com o uso da internet e outras frentes de articulação se faz acompanhar de uma dúvida atroz quanto ao recurso à interrupção das aulas. Para que a confissão não passe por corpo mole ou derrotismo, preciso dizer que participei ativamente das duas greves das federais e, nas assembleias realizadas nas diferentes unidades da UFRJ, aprendi imensamente. Também vibrei a cada votação cujo placar garantia a continuidade da paralisação e me emocionei de perceber que o amor à universidade aflora de maneira ainda mais intensa nessas ocasiões. Caso se deflagre uma nova greve, não somente respeitarei a decisão da maioria como me engajarei com a mesma disposição das vezes passadas. Meu receio diz respeito ao inevitável esvaziamento do campus.
Claro, os últimos tempos foram pródigos em ideias para substituir as aulas por atividades de ocupação. Entretanto, a própria realidade se encarrega de esvaziar rapidamente esse tipo de ação. Vi isso acontecer nas reuniões e assembleias.
Particularmente, enfrentei o problema na oficina de microcontos que mantive durante a greve de 2015: o entusiasmo inicial dos estudantes rendeu textos bacanas, que veiculamos pelo Facebook, com vinheta, foto e outros toques editoriais; a despeito do interesse, porém, os escritos começaram a escassear devido a problemas muito concretos, como falta de dinheiro para pagar a passagem de ônibus até um encontro que, por mais bem-intencionado que seja o participante, passa rapidamente a ser sentido como diletante.
Esforço igualmente titânico – e nem sempre exitoso – precisamos fazer para vencer a resistência de colegas e estudantes que se sentem prejudicados pela greve ou simplesmente não a consideram um instrumento eficaz de luta. De fato, o próprio governo Dilma quase não deu importância às duas greves e, já na primeira, se limitou a negociar com um sindicato nacional pelego, de modo a usar o beneplácito interesseiro dos grandes meios de comunicação para desmoralizar nosso movimento e restringir o atendimento das reivindicações ao oferecimento de migalhas. Ninguém precisa ser paranoico nem profeta para imaginar a turma de Temer aproveitando o ermo em que o campus se torna em determinadas fases da greve para, em conluio com a mídia marrom, reforçar a demonização e acelerar o desmonte da universidade pública.
Sei que minha dúvida quanto à recorrência à greve nas atuais circunstâncias desagrada companheiros de longa data, mas, em nome da honestidade intelectual, preciso não somente manifestá-la como dizer da esperança de conseguirmos conciliar a manutenção do calendário acadêmico com uma agenda de militância sem tréguas. Se a situação é tão calamitosa que cogitamos de parar, por que não pensamos uma maneira de garantir a continuidade do movimento sem arredar do campus? A alegação de que as tarefas cotidianas não nos deixam tempo para mais nada cai por terra ao lembrarmos que o que está em jogo é a própria existência de tais tarefas – graças às quais progredimos e sobrevivemos.
Minha proposta não é nada nova e, entre os incômodos que ela causa até mesmo em mim, encontra-se o fato de ecoar discursos, que ouvi em assembleias, de gente associada ao peleguismo. Contudo, acredito que seus efeitos dependem fundamentalmente da seriedade de quem a pensa e concretiza. Se somos capazes, por exemplo, de elaborar planos de trabalho de quatro anos que transformam simples ideias em teses, que nos falta para programar uma atuação multifacetada, intra e extramuros, pactuada pelos três segmentos que constituem a comunidade acadêmica, com objetivos a serem atingidos a curto, médio e longo prazos?
Sua realização esbarrará em diferentes percalços, que, de toda forma, não serão maiores que aqueles enfrentados durante as greves. A seu favor, encontram-se a dilatação da base de apoio ao movimento no interior da universidade e junto à opinião pública, a defesa do campus mediante sua ocupação integral e a substituição do enfrentamento episódico pelo avanço contínuo do movimento. Afinal, não sabemos até quando os usurpadores continuarão no poder e, de resto, mesmo que voltemos à democracia, mediante a eleição direta de um novo presidente, nada garante que a universidade seja priorizada. Com todo o respeito pelo sagrado direito da greve, quem sabe não seja hora de discutirmos exaustivamente um programa de luta ininterrupta, pautada por metas que nos coloquem à frente e não a reboque dos governos?