(Foto: Marcelo Sayão/ EPA)
Exclusivo para o Cafezinho:
O CAOS NO ESPÍRITO SANTO CONFORME QUEM O VIVENCIA
Por Valéria Dallegrave, exclusivo para o Cafezinho
Danuzia Brício, que trabalha como professora para a Prefeitura de Vitória, entrou em contato com O Cafezinho para pedir ajuda em denunciar o drama vivido pelos capixabas, já que a imprensa nacional não tem noticiado com o destaque necessário o que está acontecendo no Espírito Santo e os inúmeros vídeos de particulares, jogados na rede sem contextualizações, trazem apenas mais confusão…
Ela mora no centro de Vitória e, assim que se deu conta da situação de perigo, mudou para o apartamento da mãe, no Jardim da Penha, a fim de ficar junto da família. Lá estão seis pessoas sem ousar sair da casa nos últimos dias. Na quarta, houve apenas a necessária ida ao mercado para comprar comida, uma missão perigosa. Muitos, na cidade, estão estocando comida e bebida em casa.
“O negócio é sair sem celular, joias ou qualquer coisa que ostente. Fomos eu, minha irmã e minha sobrinha. Uma vigiava os lados do carro e a outra a traseira, depois fomos direto para casa. Aqui todos andam desconfiados. Tem muito vigilante armado pela cidade. Qualquer barulho assusta.”
Sobre os vigilantes particulares, ela diz que ouviu comentários de que são eles que mantêm a “ordem” na cidade neste período, mas acrescenta: “Estão matando elementos suspeitos, e eles mesmos é que determinam quem é ou não suspeito…”
Ela menciona a tradição histórica do local com grupos de extermínio. Na cidade como um todo, observa que há bairros em que ocorrem saques e invasões, e outros onde há perigo de morte. – O IML de Vitória fechou suas portas ainda na segunda feira, por excesso de corpos.
Sobre o papel da mídia local, notou, no começo, a tendência de retratar policiais e suas mulheres como vilões, mas depois alguns veículos passaram a citar o problema da gestão neoliberal de Hartung e o arrocho salarial que ele promove. Houve também a vitimização do Governador, por ele ter sido operado de um câncer.
Edmara Lopes, dona de casa, mora no centro de Vitória e conta que, apesar da manifestação ter começado na sexta passada, o caos se instalou na madrugada de domingo. “Só quarta pela manhã eu desci, foi quando me senti um pouco mais segura para sair de casa. Eu vi a tristeza na cara dos poucos comerciantes que abriram, à meia porta, seus comércios, para fechar ao meio dia ou duas horas. Por conhecer muitos comerciantes na região, ela ouviu diversos relatos, alguns dizendo que vão ter que fechar portas por não saber nem como vão fazer para comer, quanto mais para pagar o prejuízo…
“O medo tomou conta da capital, as pessoas só andam em grupo. A gente fica triste porque ninguém toma posicionamento para ajudar. Se houvesse um pouco mais de boa vontade dos governantes, o caos não teria sido tão grande. A população é quem sofre com isso.” Edmara também fala sobre a sensação de estar presa em casa: “Ficar presa dentro de casa é uma loucura total, se não tiver um controle, a gente pira.” E finaliza: “O povo capixaba está sofrendo, está pedindo socorro!”
Foram contabilizados 121 mortos até as 10h desta sexta-feira (10), segundo o Sindicato dos Policiais Civis do Espírito Santo (Sindipol), e estima-se um prejuízo de até R$ 300 milhões. Não houve nenhum acordo na reunião realizada entre a comissão de negociação de secretários do Governo do Estado e as mulheres dos policiais, que reclamaram, inclusive, terem sofrido ameaçadas de prisão e não receberem, da parte do Governo, nenhuma proposta de reajuste para os policiais.
José Garajau, pesquisador da UFRJ, natural de Vitória, retrata a situação com um olhar apurado. Para ele, com o não emprego das forças militares, a periferia desceu até os bairros de classe média alta para fazer saques e roubos a lojas em um nível surreal de audácia (o que pode ser visto em muitos vídeos). Quanto ao grande número de homicídios, José os atribui às facções criminosas terem escancarado os enfrentamentos, com conquistas de boca de fumo feitas em tempo recorde. A seu ver, a cidade de Vitória é muito pequena, e foi fácil escutar das pessoas o que acontecia, com as guerras do morro e, nos bairros, o roubo de celulares e carros.
O passar dos dias modificou um pouco a situação, mas a chegada dos primeiros soldados do exército não foi verdadeiramente um alívio: “No fim de semana, de domingo para segunda, foi bastante pesado. Depois, a secretaria de segurança pública começou a dizer que a situação já estava sendo resolvida, que os policiais iam voltar ou a Força Nacional ia chegar, e liberaram alguns soldados do exército, de batalhão de infantaria, que não têm esse treinamento de lidar com seguridade de patrimônio público, eles são treinados para matar. Os soldados ficaram na rua, perdidos, sem saber o que fazer…”
Ao contrário da maioria, que ficou trancada em casa, Jose saiu às ruas para tentar entender o que estava acontecendo: “Eu moro em um bairro de classe média, Jardim da Penha, um dos mais atingidos por estes furtos, mas não deixei de sair nas ruas. Saí sem bens, sem celular nem carteira, observando o medo na cara dos outros.” Segundo ele, as pessoas de classe média corriam o risco de ser roubadas, mas não mortas. Os assassinatos ocorriam na periferia, por acerto de contas do tráfico, por ação de gangues. Já sobre os assaltos em geral, reflete que os mesmos “são consequência da clara disparidade social em nossa sociedade, que se tenta debelar por meio de mecanismo coercitivo, e na verdade isso não funciona, a sociedade é desigual mesmo…”.
Ele conta ainda que viu vários saques. As lojas de móveis, eletrodomésticos, de supérfluos em geral, passaram a fechar as portas (as que não foram saqueadas). Os shopping centers ficaram abertos com segurança muito reforçada. Supermercados e padarias trabalhavam com regime de seguridade privada fortíssima, com quatro a oito seguranças na porta, e mais alguns dentro, permitindo a entrada de cinco em cinco pessoas. Era preciso pegar senha para o supermercado, e ficar em filas quilométricas nas ruas. Como, no passar da semana, foi-se percebendo que a situação ainda estava descontrolada, novas ondas de saque foram surgindo aqui e ali. À noite, há pouquíssima gente nas ruas, “parece até dia de final de copa do mundo, ou luto oficial”.
E Jose complementa: “Nos últimos dias, antes da chegada do exército, houve uma onda de justiceiros nos bairros de classe média alta. As pessoas que podem comprar armas saíram linchando assaltantes, dando tiros para cima, ameaçando… ‘Cidadãos de bem’, querendo fazer justiça com as próprias mãos, se sentindo oprimidos por uma marginalidade, sem perceber que aqueles que os oprimem já vivem nesta condição diariamente. A falta de policiamento nas favelas, na periferia, é endêmica, então o que me parece em geral é apenas que hoje os cidadãos de classe média alta estão vivendo um pouquinho daquilo que as pessoas nas favelas e bairros mais pobres vivem desde sempre”.
Jose considera que o momento traz à tona a importante discussão da reestruturação da polícia, que precisa ser treinada, equipada e remunerada de modo a conseguir fazer frente aos desafios de um país emergente do terceiro mundo, com tantas injustiças sociais e violências latentes. Isso passa pela desmilitarização. Ele destaca que a desmilitarização não é de forma alguma o fim da polícia (discurso que alguns fazem questão de repetir para confundir quem ainda não conhece bem a questão). “A desmilitarização não é o fim da proteção patrimonial do cidadão por parte de uma instituição que é braço do Estado, é apenas mudar a maneira como esta instituição participa e se forma no e através do Estado”.
O povo do Espírito Santo ainda aguarda uma resposta consistente do Governo do Estado. E a situação, com tantas mortes e outras perdas, deixa um grande alerta para o Brasil: É hora de mudanças consistentes, que passam pelo aprofundamento dos questionamentos e pelo resgate dos parâmetros éticos, antes que o restante do país precise provar do mesmo remédio amargo…