Estou cansado, muito cansado, dessa agenda política baseada exclusivamente na histeria interessada dos meganhas e da mídia.
Cansado também dessa degradação ideológica em que o Brasil mergulhou, por culpa de uma imprensa irresponsável, cuja única razão de ser é justificar a terrível desigualdade econômica do país.
O discurso contra a corrupção é, na verdade, um diabólico diversionismo em relação ao principal problema nacional, que é a desigualdade de renda, que deve ser enfrentada com investimentos crescentes em educação, de um lado, e uma tributação mais eficiente sobre a renda e o capital.
Por isso a mídia plutocrática, em sintonia com as castas da burocracia, elegeram Sergio Moro como seu heroi. Aliás, toda a cúpula da Lava Jato pensa da mesma forma. Provavelmente, não tem consciência do papel que exerce, com seus discursos demagógicos que, no fundo, são puramente autoritários e falaciosos.
Em sua obra antológica sobre a desigualdade, Thomas Piketty fala da concentração da renda no mundo, analisando suas origens e evolução. Em países muito avançados socialmente, como os escandinavos, os 10% mais ricos recebem cerca de 25% da renda nacional (aí somando a renda de capital com renda de trabalho). Nos Estados Unidos, que é visto por Piketty como um país mais desigual, especialmente se comparado à Europa, os 10% mais ricos percebem mais de 50% da renda nacional, sendo que os 1%, sozinhos, ficam com mais de 20%.
Piketty então faz uma especulação: diz que se a renda dos 10% mais ricos chegasse a 90% da renda nacional, e a dos 1%, a mais de 50%, isso geraria, provavelmente, uma revolução, “a menos que um aparato peculiarmente repressivo exista para evitar que isso aconteça”.
Ele observa que o grau de concentração do capital, quando atinge um nível muito elevado, é fonte de “profundas tensões”, que dificilmente podem se reconciliar com o sufrágio universal.
Lembrei-me imediatamente do golpe no Brasil e das “profundas tensões”. Entretanto, logo a seguir, Piketty faz uma outra observação ainda mais pertinente: “de fato, se tal extrema desigualdade é ou não sustentável depende não apenas da efetividade do aparato de repressão, como também, e talvez principalmente, do aparato de justificação. Se as desigualdades são justificadas, (…) então é perfeitamente possível que a concentração de renda atinja recordes históricos.”
O que é a imprensa brasileira senão um “aparato de justificação” da desigualdade?
Piketty não pode usar dados do Brasil, porque as nossas castas burocráticas, talvez por um astuto interesse de classe, não quiseram, não puderam, ou não se interessaram em lhe repassar dados detalhados sobre a renda no Brasil. O governo brasileiro, que nunca percebeu a importância da batalha de ideias, também não se empenhou em convencer as castas a fazê-lo.
Mas os índices que existem sobre o Brasil mostram que somos um dos países mais desiguais do mundo, embora tenhamos melhorado um pouco durante a era petista.
Ora, é muito sintomático que as políticas públicas que permitiram ao país reduzir um pouco sua desigualdade, amenizando as tensões sociais, sejam agora demonizadas ou mesmo deliberadamente alvos de destruição em massa por parte de um governo profundamente reacionário e dos setores que o apoiam.
Não é preciso ser nenhum gênio da economia ou política para prever que as tensões sociais vão continuar se aprofundado. O status quo então terá de elevar os investimentos em repressão, de um lado, e de “justificação”, de outro. A Lava Jato é um instrumento que mistura um pouco de repressão, na medida em que aterroriza a classe política, mas sobretudo de justificação, visto que suas lideranças ventilam discursos demagógicos que põem a corrupção como principal mal do Brasil, e não a desigualdade.
A classe política não é boba. Ela entende muito bem os recados ideológicos da Lava Jato. Quando o procurador-geral da República viaja a Davos, posando de estadista, e diz que a Lava Jato é “pró-mercado”, eles compreendem perfeitamente o significado oculto da expressão. Ela quer dizer: a Lava Jato é de direita, neoliberal, privatista, quer destruir empresas nacionais para entregar nossas riquezas para potências estrangeiras.
A polarização gera uma onda de estupidez política sem igual. Por exemplo, a dicotomia entre empresa pública versus empresa privada. Mais uma vez, a imprensa é culpada, porque ela fez do Brasil sua Coreia do Norte particular. Foram tantos anos de campanhas de desinformação, de jornalismo histérico, que o brasileiro médio não sabe que o primeiro mundo é cheio de empresas públicas extremamente eficientes, que existem, nos EUA, na Europa, no Japão, programas sociais abrangentes desde sempre, que a tributação nos países ricos incide sobre quem ganha mais, que Roosevelt instituiu um imposto de herança de 75% nos Estados Unidos, na década de 30. Em seu desespero para manipular a opinião pública, fazendo-lhe odiar qualquer medida de esquerda, a imprensa brasileira se tornou pior do que a Fox americana, e os governos petistas, por ignorância e covardia, não entenderam a gravidade do que estava acontecendo.
A parte da culpa que cabe à esquerda, em especial aos partidos políticos, foi também não ter feitos debates públicos sobre a relação entre ideologia, economia e regime político, para que as pessoas entendessem que é possível conciliar um regime democrático, capitalista, com liberdade de imprensa e de empreendimento, com soluções autenticamente socialistas, como uma educação e uma saúde públicas de qualidade, com programas sociais, estatais modernas, eficientes. São assim as economias avançadas, ou por acaso a Nasa, os metrôs de Nova York, Paris, Londres, as petroleiras da Noruega, as universidades europeias e chinesas, não são estatais, não são eficientes, e não são estratégicas para o desenvolvimento, para a mobilidade urbana, para o bem estar de seus respectivos países? Se a imprensa não mostra, o presidente da república tinha de vir à TV cobrir esse lacuna, ou os partidos políticos. Não adianta ficar só no discurso, só no blablá, mostrando Lula na TV. Tem que oferecer informação.
Entretanto, tenho observado, em minhas leituras, que a acusação de “ignorância” que se faz a governos populares carrega também um tanto de preconceito elitista contra a própria democracia, que é justamente o regime em que pessoas mais simples, mais intuitivas, menos experientes, assumem o poder.
Um dos livros que estou lendo é sobre as Origens da Democracia na Grécia Antiga, escrito por acadêmicos norte-americanos. Eles usam muitas fontes antigas, escritores e filósofos da antiguidade, e sempre precisam alertar ao leitor sobre o preconceito aristocrático presente nesses textos. Revoluções democráticas são vistas com maus olhos pelos intelectuais da época, justamente porque não são lideradas por… intelectuais. Aliás, o caráter profundamente antidemocrático, autoritário e, por fim, totalitário, que as revoluções comunistas assumem, não teria sido porque foram lideradas por intelectuais?
Plutarco, por exemplo, escrevendo sobre Sólon, o legislador ateniense que criou as primeiras leis democráticas da Grécia Antiga, menciona um escritor antigo, Anarcássis, que assim se expressa sobre as vicissitudes vividas pelas lideranças políticas da Ática: “Na Grécia, discorrem os sábios, mas decidem os ignorantes”.
Esta é uma máxima tipicamente aristocrática: a decisão dos “ignorantes”, na verdade, eram decisões democráticas, tomadas pela massa comum dos cidadãos, a maioria deles pobres.
Estas passagens me forçam, por isso mesmo, a fazer uma ponderação nas minhas próprias críticas ao erros do PT e de Lula/Dilma. Eu mantenho minha crítica sobre seus erros, sobretudo na esfera da política, em particular da comunicação política direta com a população, que foi abandonada. Mas talvez eu mesmo esteja incorrendo em outro erro, abraçando uma visão paternalista ou condescendente em relação ao povo, como se fosse possível, a Lula ou Dilma, “educar” politicamente o povo. Democracias não nascem de cima para baixo. Elas nascem de um longo processo de aprendizado popular, no qual a cultura democrática, que é baseada sobretudo na autoconfiança do povo, amadurece, desenvolve-se e, por fim, contamina todas as instituições e classes sociais, em especial as de baixo.
Neste sentido, Lula nunca teve esse poder, ou mesmo essa pretensão aristocrática, professoral, de “educar politicamente” o povo. Provavelmente, isso nem passou pela cabeça do presidente, que, por isso mesmo, talvez tenha sido a nossa liderança mais genuinamente democrática. Lula aceitava e entendia a sociedade brasileira como ela era, sem pretender, como querem intelectuais, sejam liberais, conservadores ou progressistas, mudá-la de cima para baixo. Ele tentou, ao contrário, mudá-la de baixo para cima, dando condições econômicas para que os setores mais vulneráveis da população conquistassem o mínimo conforto necessário para desenvolver um pensamento político autônomo.
Mas obviamente não deu tempo. O próprio povo entendeu que o tempo era curto e concedeu a Lula vários mandatos sucessivos. Então veio o golpe. Que ocorreu porque os setores políticos antidemocráticos, e aí talvez devemos incluir até mesmo a esquerda, mas em especial os ultrarricos e se partido, a mídia, não tinham paciência de aguardar que a cultura democrática tivesse mais alguns anos de consolidação.
Se não houvesse golpe e não houvesse, em especial, essa operação de guerra chamada Lava Jato, que destruiu as empresas de construção pesada que tocavam as grandes obras de infra-estrutura do país, Dilma iria inaugurá-las, essas obras: refinarias, usinas, siderúrgicas, portos, estradas, ferrovias. Lula ganharia as eleições em 2018 e novamente em 2022.
Piketty adverte ainda que uma análise sócio-econômica deve entender a profunda separação entre os 10% que ganham mais e os 1% do topo da pirâmide. Mesmo esses 1% também devem ser divididos. Há uma elite ainda mais ínfime, o milésimo percento, os 0,001%. Quando falamos em classe média, damos vazão a uma abstração um tanto idiota, porque não há sentido em comparar quem ganha 5 a 10 mil reais por mês, e aquele que aufere alguns milhões.
O campo progressista falhou em fazer entender essa diferença. Outro erro foi não ter explorado a profunda desigualdade existente dentro do serviço público. Um posicionamento progressista e democrático nessa esfera teria valido, ao governo federal, o apoio de uma grande massa de servidores públicos, de todas as instâncias. O golpe teria sido evitado.
A diferença entre os salários das castas e o simples mortais do serviço público é positivamente criminosa. Mas não adianta agora chorar o leite derramado. O campo progressista deveria patrocinar, com urgência, estudos e pesquisas, mostrando essas diferenças, fazendo comparações com o resto do mundo. Isso é fazer política! Os deputados federais do campo popular, assim como algumas universidades, tem acesso a recursos para levar adiante esse tipo e pesquisa. Por que não o fazem?
Por fim, eu gostaria de externar algumas reflexões sobre o que eu considero erros conceituais da esquerda, que tem consequências políticas e eleitorais muito negativas.
Não é só a Lava Jato e a campanha midiática que explica a derrota eleitoral do PT em 2016, por exemplo. Outros fatores, de ordem mais geral, talvez tenham influído.
Eu quero falar sobre alguns lugares-comuns que dizem muito sobre os erros, no meu ponto-de-vista que tem vitimado a esquerda e a conduzido por trilhas erradas, cada vez mais longe do bom senso popular – e isso não só no Brasil.
Por exemplo, a meritocracia. Há alguns dias, as redes sociais progressistas (que são enormes, por isso ganhamos quatro eleições presidenciais consecutivas) se encheram de festa pela conquista do primeiro lugar no concurso da faculdade de medicina da USP, por Bruna Sena, uma menina negra, pobre, moradora da periferia.
Rapidamente, os meios de comunicação tentaram, como sempre fazem nestes casos, manipular o seu exemplo como um símbolo da “meritocracia”. A jovem, revelando uma astúcia política que é cada vez mais comum nas novas gerações, respondeu, com visível irritação, que a “meritocracia é uma falácia”. Com honestidade quase doída, ela disse que o seu desempenho aconteceu porque recebeu “apoio”. A resposta dela, numa entrevista a um site, é um caso de estudo tão interessante que vale reproduzir um trecho:
A meritocracia é uma falácia. Eu consegui porque tive ajuda. Não dá para igualar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades. Eu me esforcei muito, sim, mas não consegui só por causa disso, eu tive muito apoio. E é isso que a gente tem que dá para quem não tem oportunidade. A gente perde muitos gênios por aí, inclusive nas favelas porque não podem estudar. E eu fiquei com muito medo de que minha postagem servisse de argumento para a meritocracia. E eu vi comentários que se baseavam nisso. Mas eu sabia que ia acontecer. Eu quero frisar bem que a questão importante é a oportunidade. Eu consegui porque tive oportunidade. Eu tenho visto minha história como apoio à meritocracia e fico muito triste com isso.
Entende-se porque ela passou em primeiro lugar. Ela é brilhante – e progressista. Ela usou a expressão “meritocracia” conforme esta tem sido manipulada pelo pensamento dominante para enganar o povo e não lhe dar oportunidade, sob a “justificação” de que ele só não ascende socialmente porque lhe faltam méritos e esforço.
Ela comunicou-se perfeitamente. Mas há um erro profundo na teoria da moça, que é a teoria da esquerda, hoje em dia: que é de aceitar o significado negativo e enganoso ao termo “meritocracia” que a direita lhe conferiu.
Meritocracia não é uma falácia. É uma coisa boa. O pobre, na verdade, é o único que pode entender a meritocracia em sua acepção mais pura, mais verdadeira, e Bruna é um exemplo disso.
A falácia não está na meritocracia, que deve ser estimulada, e incorporada ao ideário progressista, e sim na alegação de que é possível algum tipo de meritocracia sem que haja, antes, uma oferta equânime e justa de oportunidades.
A gravidade desse erro, no meu ponto-de-vista, é porque o pobre, o cidadão comum, sem grandes posses, quer a meritocracia, quer viver num mundo meritocrático, porque ele sabe que a única maneira de ascender socialmente, é através de seu esforço pessoal, de seu trabalho, de seu empenho e determinação. Essa é a ideia na qual ele precisa acreditar, porque ele também sabe que apenas se acreditar, com todas as suas forças, em si mesmo, poderá efetivamente conseguir o que deseja. Se tiver uma oportunidade, ótimo, mas ele não pode esperar isso. Ele tem que lutar com que tem a mão.
A esquerda que não oferece esse estímulo ao pobre, que não lhe mostra a meritocracia como uma virtude, comete um erro. Ela perde o pobre para a igreja evangélica. Além disso, será uma esquerda hipócrita, uma esquerda herdeira, elitizada, que não vê a meritocracia como uma virtude tão importante porque seus filhos já tem oportunidades – e esta talvez seja a explicação antropológica para o olhar blasé da esquerda para a meritocracia. O pobre, no entanto, entende a importância central da meritocracia para sua vida, para seus filhos. Isso não quer dizer, naturalmente, que ele não entenda igualmente a necessidade de apoio, de oportunidades, para que esta meritocracia possa se materializar.
O que eu quero enfatizar é que, para o pobre, a meritocracia é um valor moral, que precisa ser incutido profundamente no espírito de seus filhos para que elas possam ascender socialmente. Por isso mesmo ele irá procurar as instituições sociais ou políticas que legitimem esses valores que ele já possui em si mesmo.
A esquerda precisa ser meritocrática, porque este é um conceito profundamente positivo, progressista, popular, desde que seja explicado ao povo que o rico não é rico por causa de seus “méritos”, e sim porque ele teve mais oportunidades. O que não quer dizer que o filho do rico ou da classe média também não precisem de “méritos”, caso queiram um lugar à luz do sol. Chico Buarque teve as melhores oportunidades do mundo, mas ninguém lhe negará o mérito próprio que o levou a se tornar o que se tornou.
Entretanto, é óbvio que existe uma tensão histórica entre meritocracia e democracia. O poder, numa democracia, não pertence ao especialista mais renomado, ao jurista mais respeitado, ao intelectual mais inteligente, e sim àquele que tem mais votos. Mas esse é seu mérito: ter mais votos, e isso não é pouca coisa.
Outro erro comum da esquerda é dar uma conotação negativa ao termo “pragmatismo”. Este é um assunto importante porque a crise política que levou a esquerda brasileira, em especial o PT, à uma derrota política histórica, produziu também a seguinte falácia: a de que um dos culpados foi o pragmatismo ou o excesso de pragmatismo. Daí, a crise política, que poderia levar a esquerda às reflexões necessárias sobre seus erros, cede às suas franjas extremistas e infantis, segundo as quais ela não deveria ter feito “alianças” com ninguém.
Balela! A aliança do PT com o centro foi necessária, inteligente e pragmática. Se os aliados se revelaram corruptos, isso não é culpa da aliança em si. E não existe “excesso de pragmatismo”, que é uma expressão absurda, sem sentido. Pragmatismo é sempre bom e o seu excesso, melhor ainda.
Pragmatismo também é saber a hora, por exemplo, de refazer alianças, ou de rompê-las.
O PT errou porque esqueceu de se comunicar com o povo, de fazer uma “aliança política” com a população. Ele fez políticas públicas inéditas, históricas, em benefício do povo, mas esqueceu que era preciso estabelecer uma comunicação direta, constante, entre o governo, o partido e o povo. Isso não foi “excesso de pragmatismo”, isso foi a mais absoluta falta de pragmatismo.
O golpe aconteceu porque o PT não foi pragmático. Foi um partido que hiperidealizou as alianças com a mídia, com o centro, com os setores conservadores da sociedade.
Se a esquerda quiser voltar ao poder, evidentemente não poderá cair na falácia, vendida espertamente pela mídia, de que não precisa se aliar. Precisa sim, mas com pragmatismo, ou seja, cultivando a força das ruas, dos movimentos sociais, da imprensa alternativa, para se posicionar de maneira mais confortável e soberana perante as alianças necessárias que terá de estabelecer com setores do centro.
Neste sentido, a irritação principal da militância, em torno do possível apoio do PT a candidatura de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara, não era contra o “pragmatismo” do partido, mas exatamente pelo oposto, porque não era uma posição pragmática: o partido perderia ainda mais base social, ou seja, incorreria no mesmo erro de Dilma, que abandonou completamente o fator “base social” de seu cálculo político na montagem de seu ministério. Sem base social, sem votos, de que vale o PT? Nada. Então a estupidez monstruosa do partido, em especial dos quadros que ocupavam posições de poder no governo, foi perder a sua base social. Sem esta força, perderam a única coisa que poderiam oferecer ao centro. Para ter base social, é preciso governar para o povo, falar ao povo, ouvir o povo, estar junto ao povo o tempo inteiro. Se tivesse agido assim, não teria havido o golpe.
A esquerda brasileira, se quiser se recuperar, precisa ir além do esquerdismo vulgar. Ela precisa recuperar valores que sempre foram queridos ao povo, e que foram inventados, lá atrás, pela própria esquerda, ou pelo campo progressista que lhe correspondia, como a meritocracia, a liberdade individual, o pragmatismo. Se a esquerda torcer o nariz para estas virtudes, perderá o povo, e voltará ao cercadinho acadêmico e elitista em que o sistema adora vê-la. Aliás, quando a esquerda dá mostras de se “comportar”, ou seja, de ocupar este cercadinho confortável e seguro, a grande mídia passa a tratá-la com uma doçura impressionante. Muitos quadros da ultra-esquerda, nos partidos, na academia, sentem isso na pele. A grande imprensa adora uma esquerda acadêmica, “esquerdista”, castrada, com voz fina, disposta a cantar na festa dos poderosos. Setores medrosos da burguesia, que não se identificam com os exageros conservadores, até porque estes não lhes interessam, são facilmente atraídos por essa esquerda de butique, que não oferece riscos, porque não ganha eleições, não ameaça o status quo.
Por outro lado, a esquerda pragmática, esta é tratada como inimiga de classe pelos setores mais reacionários do capital, porque eles sabem que ela pode despertar o interesse do próprio… capital, em especial o capital produtivo, o capital industrial, o capital da construção civil. Daí a Lava Jato. Ela também é a vingança do capital não-produtivo, do capital estrangeiro, do capital midiático, contra o capital industrial, que se aliou ao PT para ampliar seu poder econômico e político.
A Lava Jato passou a criminalizar qualquer relação entre o PT, Lula, e as grandes empresas, como se fosse possível a um governo, a um partido de massas, tocar adiante uma administração sem ouvir, sem negociar, sem estabelecer parcerias, com os setores estratégicos do capital nacional. Claro, a mídia, associada aos setores golpistas e reacionários da burocracia, à meganhagem, insuflará no ouvido do homem comum a palavrinha mágica: olha, é corrupção! Olha essa obra, custou bilhões! Olha esse operador aqui, ganhou milhões! É muito fácil insuflar a inveja de uma classe média que se esfola dia e noite para pagar um dos custos de vida mais caros do planeta.
O PT, naturalmente, e isto sim foi um erro, deveria ter levado adiante essas parcerias sem jamais esquecer de se comunicar diretamente com a população. Uma Copa do Mundo, uma Olimpíadas, jamais poderiam ser levadas adiante sem um projeto popular progressista, que oferecesse uma narrativa original, popular e inteligente, ao mundo. Não fazer isso fez parte do pacote de estupidez e inacreditável ausência de criatividade que caracterizou o governo Dilma. A mesma coisa vale para os projetos de infra-estrutura, como as hidrelétricas, que deveriam vir acompanhados de ousadas, ou mesmo revolucionárias campanhas em prol das populações indígenas. Tudo isso é comunicação, é política, é acumulação de forças para as batalhas no parlamento, nas ruas, na mídia, nos tribunais.
[Arpeggio – coluna política diária, por Miguel do Rosário]