Com todo o respeito a toda e qualquer primeira-dama, porque ninguém é melhor do que ninguém, mas quem tem uma história tão doída e bonita como a de Marisa Letícia?
O emocionante texto de Saul Leblon, na Carta Maior, seguido de uma rara e antológica entrevista, merecem ser compartilhados e vistos por muitos brasileiros, sobretudo por aqueles que não foram contaminados pelo ódio doentio difundido pela mídia.
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‘Marisa e Lula’
Por Saul Leblon, na Carta Maior
Chegará o dia em que o enredo pronto que existe dentro da legenda ‘Marisa e Lula’ merecerá o olhar de um cineasta brasileiro.
Um diretor atento a um Brasil contra o qual a mídia sempre manteve, e intensificou, uma relação depreciativa, mais belicosa e obsessiva que a dispensada agora aos veículos de comunicação por Trump, enxergará neles a personificação de um dos períodos mais generosos e vitais da vida nacional.
O improvável revestirá os passos iniciais na trajetória deste casal de trabalhadores no maior polo industrial do Brasil.
Um homem e uma mulher de origem simples, jovens mas viúvos, apetrechados no máximo de um cristianismo ingênuo a revestir a luta pela sobrevivência, um dia abriram a porta de sua casa a uma visitante ilustre, para nunca mais fechá-la.
Era a história.
E ela os arrebatou.
Surpreendentemente, porém, e nisso reside o magnetismo da trama há léguas de ser uma fábula de seres perfeitos, também foi arrebatada por eles, com todos os riscos inerentes a uma coisa e outra num dos períodos mais turbulento da vida nacional.
Estamos no Brasil de 1974, em plena ditadura militar.
Nesse enredo de carne e osso as cenas se desenrolam quase prontas aos olhos de quem quiser enxerga-las.
É uma história de resistência e luta, de coragem e medo, curtida em derrotas e superação, temperada de doses de grandezas e fraquezas, cuja soma conflituosa afronta a prateleira do previsível e do edulcorado para arrombar a fronteira que dividia o passo seguinte do país.
Contra todas as probabilidades eles não foram derrotados pela avalanche que recobriria seu destino pelo resto da vida.
Marisa e Lula afrontaram a hierarquia inoxidável do mundo burguês, patronal e conservador e também do universo pequeno burguês no qual poderiam ter se acomodado na ampla sala de estar reservada aos mansos.
Para a surpresa de uns –deles mesmos, talvez– e horror de outros, lograram tomar as rédeas do cavalo xucro da histórica que passou na sua frente, mudando a direção dele e o enredo de suas vidas
Estão juntos há 43 anos assim. Sem parar o trote agalopado.
Um ano depois de se casarem, em 1975, Lula seria eleito presidente do mais estratégico sindicato de trabalhadores do país, inserido no maior polo automobilístico da América Latina.
Lula assumiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo quando o general Geisel era o ditador do Brasil.
O país ingressava num ciclo vertiginoso de luta por democracia e de levantes operários contra o arrocho econômico e sindical.
O ABC era o coração da impaciência operária. Mas a opressão patronal assegurada pelos militares empurrava velozmente a reivindicação salarial para a confrontação política.
Não era o que eles preconcebiam. Longe disso. Mas era o que se impunha como um efeito dominó a cada passo do embate.
Pois bem, Marisa e Lula não se deixaram encurralar pelos repetidos chamados do toque de recolher que dispara na vida de um casal nas situações de perigo que ameaçam o teto e a prole.
Logo, muito logo, nas mãos de Lula, o sindicato dos metalúrgicos ficaria nacionalmente conhecido como uma das principais fortalezas da frente ampla de luta por liberdades democráticas que se esparramava pelo país irradiando a audiência da voz rouca do mar ao sertão.
As ruas eram uma extensão dessa consciência que se adensava contra o que não era mais tolerável, a censura, a tortura, a repressão, o arrocho, enfim, a interdição do futuro na vida de uma nação.
O lar de Marisa, 25 anos, e Lula, 30 anos, foi arrebatado por esse turbilhão da história que entrou pela sala, logo estava na cozinha tomando sopa de madrugada, esparramou colchonetes e fez dali um acampamento de prontidão permanente por democracia e justiça social.
Era assim a casa de Marisa recém-casada.
Ou melhor, a casa da senhora hoje com 66 anos e uma hemorragia cerebral — que respira por aparelhos na UTI de um hospital, em cuja entrada o ódio escarnece de seu drama e ergue cartazes em que pede a prisão de seu marido.
Sua casa tornou-se uma arriscada trincheira da luta por democracia e justiça social, num tempo em erguer cartazes por democracia e justiça social dava cadeia, não raro, pancada e tortura.
O lar dessa senhora em coma induzido era um gigantesco cartaz de audácia operária na noite do Brasil.
O filme à espera de um diretor abriria com a leitura vagarosa dos estandartes de ódio, solitários, mas exclamativos de um sentimento incontido das elites e do seu entorno contra tudo o que se refira àquela casa, à mulher e ao homem que a partir dela os desafiou e venceu.
No ambiente frio da UTI desta São Paulo cinzenta de janeiro de 2017, o silêncio só é entrecortado pelos equipamentos que monitoram o metabolismo fragilizado pelo aneurisma rompido.
O boletim médico informa que o quadro da paciente Marisa Letícia é estável.
O que se luta para preservar ali, porém, é justamente algo que se mexe como a história e que por se mexer opõe-se ao cerco que pretende afoga-lo numa grande hemorragia de demonização e esquecimento.
O alvo é certeiro.
A memória é um pedaço do futuro.
A daquele período, sobretudo preciosa para o presente.
Não apenas para entender o Brasil atual, a partir dos protagonistas ora capturados pela máquina avassaladora de picar e reconstruir reputações e legados deformando-os.
Não só para repor o que está sendo lixiviado, sangrado diariamente na mídia.
Mas ela, a memória, também é crucial para repor o orgulho, a credibilidade, a confiança e, sobretudo, a faísca capaz de religar a esperança que respirava naquela casa onde brotariam as sementes do país que trinta anos depois vicejaria.
Esse que está sendo ceifado agora com rancor inaudito, um Brasil que ainda não somos, mas que poderemos ser no século XXI.
A metamorfose do improvável nas ruas do país naqueles primórdios contradiz o impossível hoje elevado à condição de permanente.
Não é hagiografia filmada.
É uma história real, de gente de carne e osso.
Que se entregou sem se perguntar onde era a porta de saída de volta à rotina, e o fez de peito aberto, pondo na mesa empregos, filhos, o presente e o futuro, numa aposta contra o estabelecido, com os riscos e a violência sabidos.
Gente comum se agiganta em circunstancias incomuns, ao não recuar diante delas.
Esse resgate feito de carne e osso é indispensável para repor a grandeza e as fraquezas da carne e do osso humano na fricção da história brasileira hoje sufocada pela mentira e o ódio.
Carta Maior recuperou uma das raras entrevistas em que a personagem que hoje luta pela vida em uma UTI, assim como lutou pela sua e a de milhões nesses 43 anos, rememora o seu olhar sobre os acontecimentos desse início, cujo epílogo persiste em disputa.
A resistência ao esquecimento é um pedaço dessa disputa.
A entrevista é de 2002, feita durante a campanha que levaria o PT pela primeira vez ao governo.
É atual porque devolve a Marisa o direito de se proteger daquilo que os indígenas mais temem diante de uma câmera: o roubo de alma.
Da alma da mulher que ia visitar o marido preso pela polícia política da ditadura sem fraquejar nem lhe pedir que fraquejasse; da esposa e mãe, sozinha, que, ao contrário de todos os prognósticos, quando o sensato era recuar e sumir, abriu a casa para ser o sindicato quando os três sindicatos de metalúrgicos do ABC sofreram intervenção na grande greve de 1979, coroada pelas lendárias assembleias de 60 mil pessoas no estádio da Vila Euclides; a alma da mulher que organizou com outras mães e esposas uma audaciosa passeata de mulheres e filhos em uma São Bernardo tomada por tropas da repressão, em defesa dos maridos, dos operários e sindicalistas presos; a alma da Marisa que costurou a primeira bandeira do PT; e que se politizou assim, como protagonista de uma história feita com as próprias mãos, sobre a qual nem ela, nem ele, Lula, jamais seriam convidados a opinar se ficassem esperando o convite dos que agora tomaram se assalto a engrenagem e a reescrevem com fel, ferro e fogo.
Repita-se, não é uma elegia à pureza dos oprimidos.
É um enredo de luta entre opressores e oprimidos.
Nessa fricção, virtudes e defeitos se misturaram na implacável máquina de mastigação que é a experiência da política e do poder no capitalismo que eles encararam sem se despir da única armadura que sempre os acompanhou: a consciência de que viver é lutar.
A memória da senhora de 66 anos que hoje trava a batalha pela vida não vale pelo saldo de pureza que ela até possa externar.
Vale pelo legado desse percurso inconcluso.
Feito de instituições e direitos que ajudou a demarcar.
E de possibilidades que contribuiu para esboçar na vida brasileira.
É nesse legado que repousa a possibilidade deste país de presos degolados se tornar um dia uma sociedade virtuosa.
Pautada em pedra e cal por direitos entre iguais e por democracia entre diferentes, que só pode ser democracia se for levada às últimas consequências na repartição do bem comum.
Inclusive para garantir a expressão de quem hoje se posta diante do hospital onde Marisa e Lula travam a batalha de vida e morte para persistirem nessa busca.
E ali destilar a represália dos que rugem contra o enredo de filme à procura de um diretor que se desata aos nossos olhos à simples menção da legenda indivisa: ‘Marisa e Lula’.
Abaixo,a entrevista de Marisa Letícia ao site da campanha do PT de 2002.
(…)
Para Marisa Letícia Lula da Silva, 52 anos, esposa de Luiz Inácio Lula da Silva, 57, o candidato a presidente pela Coligação PT-PL-PCdoB-PC -PMN, a casa nunca foi apenas o refúgio familiar, mas também um ponto de intersecção de alguns dos fatos políticos mais importantes que mudariam a face do Brasil nas últimas três décadas.
As greves do ABC, a repressão do regime militar, a luta pelas Diretas, a fundação do PT e as campanhas presidenciais do marido ganharam as ruas e viraram História, mas antes atravessaram a soleira da porta e transitaram pela sala e a cozinha de Marisa. Em 1975, com um ano de casamento, Lula chegou à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP). Três anos depois, começaria o ciclo histórico de greves no ABC paulista.
A política incorporou-se assim a sua vida como algo natural, quase uma extensão da rotina doméstica frequentemente adaptada para abrir novos espaços à mesa do almoço, ou receber visitantes que desde os anos 70 passaram a ter na casa do líder metalúrgico um ponto de referência nacional.
Lá estiveram senadores, deputados, vereadores, personalidades de todos os matizes. Alguns se incorporaram à família definitivamente. Frei Betto, por exemplo, cansou de dormir no chão da sala durante as greves metalúrgicas dos anos 78/80, designado especialmente pelo então Bispo de Santo André, Dom Cláudio Hummes, hoje arcebispo de São Paulo, para ajudar na segurança de Lula.
Tornar-se a primeira-dama, a partir de 1 de janeiro, portanto, é uma hipótese que não chega a sobressaltar essa neta de italianos, mãe de quatro filhos, avó de dois netos, que começou a ganhar a vida muito cedo.
Aos nove anos Marisa já trabalhava como pajem; aos 13, ainda sem carteira regular de trabalho, empregou-se na fábrica de chocolates Dulcora, em São Bernardo, onde ficou até os 21 anos.
Casada, tornou-se funcionária da rede municipal de ensino, que deixou para cuidar dos filhos.
Nem sempre, porém, o trânsito do país para dentro da casa foi tranquilo. Na greve de abril de 1980, Marisa e Lula acordaram sobressaltados pelos gritos dos agentes do Dops -Departamento de Ordem Política e Social.
Eram cinco e meia da manhã, ainda estava escuro. A residência cercada por homens de metralhadoras em punho foi despertada por berros no portão: -Cadê o Lula? Viemos buscar o Lula, viemos buscar o Lula.
“Foi terrível, mas mantivemos a tranqüilidade. Lembro-me que ele ainda disse –calma, vou tomar um café antes de sair, enquanto eu arrumava a mala”. Lula ficou preso 31 dias, saiu duas vezes nesse intervalo. Uma para visitar a mãe agonizante; outra, para o funeral de dona Lindu.
Diante da crescente exposição pública do marido, Marisa preferiu a discrição aos holofotes. Mas por trás deles ajudou a organizar passeatas de mães e filhos de metalúrgicos, em 1980, quando os líderes estavam presos e o sindicato sob intervenção. Foi ela também que de forma pioneira inaugurou o hábito da participação feminina na vida sindical do ABC. Foi Marisa, ainda, quem cortou e costurou a primeira bandeira do PT –feita em sua casa, claro–, quando da fundação do partido, em fevereiro de 1980.
Hoje, ela tenta preservar um pouco mais a fronteira familiar, pelo menos nos raros fins de semana em que o marido está no apartamento onde residem, em São Bernardo. “Proíbo conversa política e filtro as ligações telefônicas. Notícia ruim, à noite, fica para o dia seguinte”, sentencia com a voz firme mas serena. Mais que simplicidade, seu jeito reflete a maturidade de quem aprendeu na prática que tudo tem um tempo e nada vinga sem esforço. “As coisas foram acontecendo aos poucos na nossa vida, ao longo de anos de luta. A projeção do Lula foi a evolução natural de uma pessoa de muita persistência. Quando quer algo, ele consegue”, diz com conhecimento de causa.
Em 1973, viúva, mãe de um filho do primeiro casamento, ela conheceu de perto a tenacidade do galante diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Foi um namoro rápido. Um cerco telefônico e uma manobra ousada de ocupação do terreno do rival definiram as núpcias, sete meses depois do primeiro encontro.
“Lula chegou em casa um dia e avisou meu namorado que precisava tratar um assunto muito sério comigo. Mandou o sujeito embora –pode?”, balança a cabeça ainda perplexa com a lembrança. Perseverança equivalente ela identifica na sua trajetória política. “Em 1980, quando fui a Brasília pela primeira vez, disse a Lula: eles não vão abandonar o poder nunca. Hoje tenho certeza de que ele vai chegar lá. E espero que faça algo pela juventude –tenho certeza que o fará. A violência me assusta. Quando leio os jornais já nem presto atenção nos nomes, fixo apenas a idade das vítimas. É terrível o que está acontecendo com os jovens no Brasil”, desabafa.
Aqui os principais trechos da sua entrevista
Qual a origem da sua família?
Meus pais são descendentes de italianos. O sobrenome do meu pai é Casa; o da minha mãe, Rocco. Meus avós, tanto do lado paterno, como os do lado materno, conheceram-se no navio vindo da Itália. Conheceram-se no mar, casaram-se em São Bernardo e tiveram vários filhos. Foram posseiros e para não dividir as terras faziam casamentos entre eles, algo que naquele tempo era normal. Tenho várias primas-irmãs: os irmãos de meu pai casavam-se com as irmãs de minha mãe e vice-versa.
Em que bairro eles moravam?
Atualmente chama-se bairro dos Casa, em São Bernardo do Campo, antigo sítio dos Casa, onde meu avô fez a capela de Santo Antônio, que está lá até hoje. A maioria dos irmãos do meu pai chama-se Antônio; os de minha mãe também; o meu avô, idem.
Eles plantavam o quê?
De tudo um pouco. Batata doce, batatinha, milho. Tinha gado, tinha galinha, pato. Saí do sítio com cinco anos de idade.
Vocês são em quantos irmãos?
Minha mãe teve quinze filhos. Três morreram ao nascer. Vivos, hoje, somos em nove. Mamãe trabalhava na lavoura, os maiores ajudavam e os menores ficavam num chiqueirinho cavado na terra. Minha mãe deixava a gente ali dentro, para não fugir. Eu tinha uns dois ou três anos. Sou a penúltima dos irmãos. Tenho irmã que poderia ser minha mãe, pela diferença de idade.
Qual é o nome dos seus pais?
Regina Rocco Casa e Antonio João Casa.
Foi uma infância difícil?
Não, em casa tinha fartura. Como minha mãe plantava e colhia e também tinha criação, nunca ninguém passou fome. Ela fazia aquela galinhada, galinha com polenta para o jantar ou a minnestra, um caldo de feijão com muito legume, arroz, carne…
Vocês frequentavam a cidade?
A gente só saía para ir a capela. A cidade era longe. Só por volta de 1955, quando minhas irmãs mais velhas começaram a trabalhar nas tecelagens a gente saiu do sítio, aí em definitivo. Meus irmãos também estavam buscando emprego nas fábricas de móveis. Mudamos para o bairro Assunção. Meu pai comprou uma casa muito grande, com quintal onde ele continuou criando seu porquinho, galinha, horta. Ficou sempre nessa vida. Mas ainda não tínhamos luz, a água era de poço. Minha mãe cozinhava no fogão à lenha. Foi nessa época que comecei a estudar, numa escolinha de madeira. Só na terceira série é que fui para um colégio no centro, o Grupo Escolar Maria Iracema Munhoz.
Qual era teu sonho de vida?
Eu queria dar aula, gostava muito de criança. Meu pai achava que mulher tinha que aprender a lavar, cozinhar e costurar. Educação rígida, à antiga. Aos nove anos as meninas começavam a ajudar dentro de casa. Eu não gostava muito dessas coisas, mas fiz cursinhos de corte e costura, culinária…
Você começou a trabalhar com que idade?
Aos nove anos. Fui ser pajem dos filhos do sobrinho do Cândido Portinari, um dentista muito famoso em São Bernardo, o Jaime Portinari. Ele tinha três filhas. Eu tomava conta dessas meninas porque a mãe dava aula. Ela trabalhava à tarde e eu estudava de manhã, as duas no mesmo colégio. Depois nasceu mais uma menina e eu com nove anos tomava conta de uma recém-nascida. Morava nesse emprego, dormia lá.
Ficou muito tempo?
Saí mocinha para trabalhar em fábrica, na Fábrica de Chocolates Dulcora. Tinha 13 anos. Foi necessário tirar uma carteira especial de menor, com autorização do pai. Tenho essa carteira até hoje. Depois, com 14 anos, você já tirava a carteira normalmente. Eu comecei como embaladora de bombom alpino.
Como era para você trabalhar assim tão criança?
Sempre gostei de ser útil, adorava isso. Era um sonho trabalhar fora, ter o próprio dinheirinho. Fazia com prazer, mas hoje tenho consciência de que lugar de criança é mesmo na escola, com tempo para brincar e aprender. Trabalhei na Dulcora oito anos. Saí para casar.
Seus pais eram bravos?
Meu pai era muito enérgico, minha mãe contornava as coisas. Mas namorar não podia, imagine! Minha mãe inventava historinhas para a gente poder sair, mas era difícil. Das irmãs eu era a mais rebelde. Gostava de participar de tudo, reuniões, centro cívico, festinhas de igreja, meu pai não deixava…
E para namorar?
Namorar naquela época era bate-papo, dava a mão, ele levava você até a esquina de casa e ponto.
Você tem alguma lembrança política dessa época?
Não, nenhuma. A gente não tinha televisão e meu pai proibia falar de política dentro de casa. Ele não gostava. Nunca comentou o porquê. A gente sabia é que os avós tinham passado momentos difíceis na Itália, vieram fugidos por causa de política e proibiam de falar no assunto. Meu pai seguiu a regra. Televisão em casa só entrou quando eu já era bem mocinha. Mas nós ainda rezávamos toda tarde, às seis horas. Paquera então, só longe de casa, na Marechal Deodoro (rua central de São Bernardo), logo após o cinema, à tarde. Comprava-se pipoca e depois era sobe e desce a Deodoro…
Com que idade você teve o seu primeiro casamento?
Casei com o primeiro namorado, o Marcos, aos 19 anos. Casei e continuei trabalhando. Só saí da Dulcora quando engravidei. Marcos era motorista de caminhão, transportava areia. Como a gente queria comprar casa própria, ele pegava o táxi do pai, que só trabalhava à noite, para fazer bicos à tarde e nos fim de semana. Ficamos casados apenas seis meses. Marcos foi assassinado quando eu estava grávida de quatro meses. Trabalhava com o táxi num domingo à tarde quando foi assaltado e morto. Meus sogros queriam demais essa criança, aí praticamente me adotaram. Fiquei morando com eles até o Marcos completar um aninho. Então fui trabalhar num colégio de Estado, como inspetora e substituta, mas contratada pela prefeitura. Aí voltei para a casa de minha mãe, porque ela tinha mais tempo para tomar conta do nenê, enquanto eu estivesse no serviço.
Como você conheceu o Lula?
Eu recebia uma pensão de viúva. Naquela época você tinha que passar em qualquer sindicato para recolher um carimbo e depois receber no INPS. Costumava ir ao sindicato dos marceneiros. Mas houve umas mudanças de local e a sede dos metalúrgicos passou a ficar mais perto para mim. Foi assim que conheci o Lula, que trabalhava no Serviço de Assistência Social do sindicato.
O Lula já conhecia seu sogro?
É o que ele conta. Diz que eles se conheciam porque tomava o táxi do seu Cândido às vezes. Os dois conversavam sobre a nora viúva etc, mas ele não me conhecia, nem houve nenhum arranjo para esse encontro entre nós. Foi pura coincidência a ida ao sindicato.
Ele atendeu você?
Não, foi um menino, um mocinho chamado Luisinho. Expliquei que precisava do carimbo para receber a pensão. Diz o Lula que já havia avisado a esse rapaz: assim que chegasse uma viuvinha nova, era para chamá-lo porque ele também era viúvo (a primeira esposa de Lula, Maria de Lurdes, operária tecelã, faleceu grávida e o filho também morreu).
O tal Luisinho chamou mesmo o Lula?
Exato. Inventou que o carimbo estava com um probleminha, foi lá dentro e quem voltou foi o Lula. Chegou e já senti que havia algo diferente. Percebi logo, porque nunca precisou tanta cerimônia para receber uma pensão que eu já tinha há três anos. O Lula disse que havia mudado a lei, eu teria que deixar o carnê para renovar etc… E pediu meu telefone. Caí que nem uma bobinha. Trabalhava na secretaria de uma escola na época. Desse dia em diante o telefone não parou mais de tocar.
E você não atendia?
Um dia atendi. Ele disse que já podia passar para assinar a papelada. Cheguei, começou tudo de novo. Senta um pouquinho; vou te explicar; aquele papo… Vamos tomar um cafezinho? Foi nessa hora que deixou cair a carteirinha do sindicato e falou: tá vendo, eu também sou viúvo. Respondi: ah é?
Nenhuma simpatia nesse primeiro contato?
Não, naquele tempo, o que uma mulher mais queria na vida era casar e ter um filho. Eu já tinha passado por essa experiência. Mas ele não desisitiu. Telefonava, insistia, por fim, marcamos um almoço no São Judas, no bairro Demarchi (tradicional restaurante do ABC).
O Lula sabia que você era nora do tal chofer de táxi?
Ele diz que ficou desconfiado, porque as histórias batiam. Mas foi tudo coincidência. Jamais foi montado um encontro.
E o namoro como começou?
Eu já tinha um namorado, vizinho da família que eu conhecia desde criança. Uma coisa assim descompromissada. Mas o Lula não queria saber. Um dia descobriu a minha rua. Chegou com um TL azul turquesa. Viu uma senhora, pediu informações. Era justamente minha mãe. Eu estava tomando banho para encontrar o namorado. Quando saio, quem está lá com a minha mãe? O Lula. Pedi que fosse embora porque tinha um compromisso, mas ele só deu uma voltinha com o TL e retornou. Chegou e foi logo dizendo para o meu namorado dar licença, que tinha assunto muito sério a tratar comigo. Mandou o cara embora. Pode? Aí já havia conquistado a simpatia de minha mãe porque era um sujeito mais alegre, mais dado que o outro. Ela ofereceu um aperitivo, o Lula entrou e, bom, tive que acabar o namoro porque ele já não saía mais de casa…
Casaram-se rápido?
Depois de sete meses. Mas não casei grávida não (risos). O Fábio, meu primeiro filho com o Lula, nasceu com nove meses e nove dias depois do casamento. Depois, com um ano de casado, em 1975, ele ganhou a eleição para a presidência do sindicato dos metalúrgicos.
Como foi essa coisa de ele virar uma figura pública?
Eu não estranhei muito porque, como disse, comecei a acompanhá-lo. Levava as esposas dos trabalhadores, organizava festas, projetos sociais. Passamos a reivindicar a presença de mulheres nas chapas. Então foi uma evolução junto.
E quando começam as greves, veio o medo?
Medo a gente sempre tem um pouquinho. Mas o dia a dia vai mostrando tanta força que muitas vezes você se pergunta: será que eu fiz isso mesmo? Por exemplo, nós fizemos aquela passeata das mulheres em 1980, quando os dirigentes sindicais estavam todos presos. Hoje, você pensa, parece uma loucura. Encheu de polícia. Os homens queriam dar apoio, mas nós dissemos, não, e saímos. Fizemos só com as mulheres. Botei as crianças na rua, meus filhos no meio daquela multidão, polícia para tudo quanto é lado.
Como era para eles ver o pai na televisão?
Tive que fazer um trabalho com isso mas acho que ficaram com uma cabeça boa. As coisas foram acontecendo aos poucos, fomos nos adaptando. Quando ele aparecia na tevê eu brincava com os meninos: querem ver seu pai, olha ele aí, porque eles já quase não viam mais o pai.
Você virou mãe e pai?
É, mas foi tranqüilo. Tinha reunião de pais na escola, lá ia eu. Tinha joguinho dos pais, lá ia a mãe. Não tinha problema, eu sabia que era importante.
A sua casa também virou uma sucursal do sindicato?
Virou mesmo. Em 1980, tomaram o sindicato da gente com a intervenção. Não tínhamos para onde ir. Desocupei a sala da frente e disse: pronto, aqui é o sindicato. E a secretária era eu. Vinham políticos, almoçavam, alguns dormiam lá em casa. Depois, montamos um fundo de greve na Igreja, para arrecadação de alimentos. Aí desconcentrou um pouco. Quem ajudou muito nessa época foi Dom Cláudio Hummes, que era bispo de Santo André e hoje é arcebispo de São Paulo.
Vocês acabaram conhecendo muita gente nesse processo. O Fernando Henrique Cardoso também?
Sim, sim, em 1978 quando ele foi candidato ao Senado, o Lula apoiou, demos o maior apoio a ele. Foi nessa época também que conhecemos os deputados do PMDB, Suplicy, Geraldinho Siqueira, Sérgio dos Santos… Mas a gente ficava com um pezinho atrás, porque nós éramos sindicalistas e eles, políticos.
E a prisão do Lula, em 1980?
Nossa casa estava cercada há muito tempo. Policiais na esquina, gente rondando à noite. Eu tinha um pouco de medo pelas crianças. Mas tinha consciência de que estávamos mudando alguma coisa importante. Depois, o irmão do Lula, o Frei Chico, já havia sido preso. Preso político. Fomos visitá-lo, conversamos muito. Aquilo tudo foi deixando um sentimento de revolta em mim. Eu sabia que era preciso mudar. E para mudar alguém tinha que enfrentar aquela situação porque se ficasse pensando como meu pai, que não queria nada com política, as coisas não sairiam do lugar nunca.
Quando o Lula decolou como liderança, o que você sentiu?
Achei que era isso mesmo, um momento importante, algo que alguém precisava assumir. Tinha orgulho. Mas também sentia falta dele, claro, sentia falta de ter alguém com quem conversar, discutir…
E a prisão?
Então, a casa estava cercada há várias semanas. Frei Betto, Geraldinho Siqueira, o Jacó Bittar, o Olívio Dutra e vários outros dormiam lá para nos dar alguma cobertura.
Como é que vocês conheceram o Frei Betto?
Olha, foi até gozado. Um dia o Lula avisou: vem um frei almoçar aqui. Para mim, tudo bem, almoçava tanta gente lá que não fazia diferença. Come o que tem. O Lula precisou sair e lá pelas tantas me aparece na porta um jovem. Eu estava esperando um frei, com aquela bata, chinelo, um velhinho, enfim, com roupa toda marrom. Então me aparece um rapazinho e diz: —Sou o frei Betto, trouxe uma pasta para o almoço. Respondi brincando: você pensa que nesta casa não tem comida? Somos grandes amigos até hoje.
E quando a polícia chegou?
Bom, primeiro,ligaram dizendo que o motorista do deputado Geraldinho Siqueira havia sumido. Saiu para buscar jornais e sumiu. Fomos dormir. Cedinho bateram no portão. Era umas cinco e meia. Tudo escuro. Frei Betto atendeu -Cadê o Lula, nós vamos levar o Lula, nós vamos levar o Lula…. Um bando de homens armados de metralhadora com uma Veraneio que fechou a saída da garagem, onde ficava o nosso Fiat. Meu quarto dava para a rua. Acordei assustada, chamei –Lula, Lula, estão aí atrás de você.
E ele, apavorou?
Nada. Falou exatamente assim — Calma, calma, vou tomar meu café, trocar de roupa, manda esperar. Eu queria que o Frei Betto e o Geraldinho acompanhassem a viatura, mas eles já tinham prendido o motorista do deputado justamente por isso. E barraram a saída do nosso Fiat. Foi uma cena horrorosa, metralhadoras para tudo quanto é lado, mas as crianças não acordaram, graças a Deus. Pegaram o Lula, enfiaram dentro do carro e sumiram. Não falaram nada, na-da. A gente não sabia para onde o levariam. Até o Fiatizinho esquentar, já tinham desaparecido. Então começamos a ligar para Deus e o mundo, e descobrimos que estava no DOPS. Ele e vários outros. Foram pegando todo mundo da diretoria do sindicato.
Lula tomou o tal café?
Tomou, trocou de roupa…
E as crianças?
Não falei sobre a prisão num primeiro momento. Dei um tempo em banho-maria, depois expliquei devagarzinho, direitinho para não assustar. Mas eu tive problemas com o mais velho na escola. O Marcos se recusava a ir à aula. Quando fui saber, eram colegas que acusavam: seu pai é bandido. Está preso, é bandido. O Marcos sentava lá na frente, eles jogavam aviãozinho dizendo essas coisas. Acabei permitindo que ele se afastasse por um tempo, o que o levou perder o ano letivo. No semestre seguinte fui à escola e falei com a diretora. Expliquei o que havia acontecido e disse que elas deveriam esclarecer as crianças. Esse tipo de preconceito não podia continuar. Só então o Marcos voltou aos estudos.
O Marcos era filho do seu primeiro casamento?
É. Eu o ensinei a chamar o Lula de tio, mas ele preferia pai mesmo. Aos nove anos, disse ao Lula que queria ter o mesmo sobrenome dele. E o Lula assumiu isso legalmente com alegria, com a maior satisfação. Hoje ele é Marcos Cláudio Lula da Silva.
Nesse período da prisão morreu a mãe do Lula?
Ela já estava muito mal, com câncer, queria ver o filho. Nós conseguimos que o Lula saísse uma vez da prisão, antes da morte, coisa que pouca gente sabe. Convencemos o Romeu Tuma (diretor do Dops na ápoca) a permitir essa visita. Depois, ele voltou para o velório. Saí do Dops com o Lula. Mas quando chegamos ao enterro os trabalhadores cercaram o carro da polícia. Estavam revoltados. Lula pedia calma. Mas os operários haviam parado as fábricas, eram ônibus e ônibus que chegavam, uma situação tensa, de nervos à flor-da-pele, que exigiu muita habilidade e liderança do Lula.
As crianças foram visitar o pai no Dops?
Foram. Preparei os meninos. Expliquei como era para eles não terem medo. Disse que tinha polícia, mas que o papai estava bem, contei sobre o lugar, enfim, tentei evitar surpresas que assustassem uma criança. Quando chegamos, o Tuma disse: –Olha, dona Marisa, é melhor a senhora ir para a minha sala com as crianças que eu vou buscar o Lula. Quando ele apareceu na porta, o Fábio pensou que a cela era ali e falou — Papai você não tá preso, você tá num hotel! Tinha quatro aninhos.
Quando você ouviu falar em PT pela primeira vez?
Nesse tempo a discussão já havia começado, em pequenos grupos, lá em casa. No início, muitos políticos diziam: Lula, para que criar outro partido, basta entrar num dos que já existem. Mas ele respondia: quero criar um partido diferente de todos, um partido dos trabalhadores. A primeira bandeira do PT eu é que fiz.
Como é essa história?
Eu tinha um tecido vermelho, italiano, um recorte guardado há muito tempo. Costurei a estrela branca no fundo vermelho. Ficou lindo. A gente não tinha núcleo, não tinha nada. Minha casa era o centro. Começamos então a estampar camisetas para arrecadar fundos. Vendíamos uma para comprar duas. Estampava a estrelinha, vendia, comprava mais. Foi assim que começou o PT.
Você se lembra da primeira vez em que se falou de Lula na Presidência?
Em 1980, Lula foi julgado no Superior Tribunal Militar, em Brasília. Foi a primeira vez que visitei a capital. Fizemos um passeio e o guia foi mostrando as mansões, aquela ostentação toda. Quando acabou eu disse – Lula, vamos parar com tudo isso: esses caras não vão deixar você chegar ao poder nunca. Eles não vão largar isso aqui jamais. Fazem qualquer coisa, mas não abandonam essa vida…
Você mantém essa opinião?
Não, hoje não mais. O PT cresceu muito e na verdade já começou a mudar o país. Tem prefeituras, tem governos de estado. A mudança começou. Mas ainda vão resistir muito. Vão lutar muito para deixar a gente chegar ao poder. Mas hoje temos chance. O povo está descontente demais. Além do que, existe uma característica do Lula que pesa muito. É algo que vem de berço: o Lula quando quer uma coisa consegue. E ele vai conseguir melhorar esse país.Ele mudou na época da ditadura militar, não mudou?
O que te dá mais medo no Brasil hoje?
A violência. Os nossos jovens são a principal vítima. Quando leio os jornais já não olho nem nome, nada. Me fixo na idade: uns moleques, viu? Só moleques. É o que me dá mais medo, me dá dó, dá pena. Mas eu sei que se essa juventude tiver a chance de uma escola, uma boa educação e trabalho, o país muda.
Muda. Tenho certeza que muda.