“Eu nunca vi situação assim em nenhum país. Eua, França, Inglaterra, Alemanha… Bom, talvez na Alemanha nazista tenha acontecido algo semelhante. Essa autodestruição insana, essa alienação, inclusive de nossa outrora elite intelectual”, diz o cientista político, veterano de tantas escaramuças, nesta não-entrevista ao Cafezinho.
Eu comento algo sobre um livro de Stefan Zweig, o Mundo que eu vi. Zweig era um jovem judeu austríaco, profundamente cosmopolita, que construiu relações com intelectuais de toda Europa: poetas, escritores, pintores. Quando o clima político europeu começa a azedar pouco antes da I Guerra, ele descreve sua perplexidade diante da postura de uma imprensa e, sobretudo, de uma elite intelectual, que até então ele considerava sofisticada: sobrevêm um nacionalismo tacanho, violento, agressivo em relação a qualquer outro país que não fosse aquele do qual se fizesse parte. E isso em toda Europa. Na França, contra alemães e austríacos. Na Áustria, contra franceses e italianos. O que mais choca Zweig é que mesmo grandes intelectuais alemães, como Thomas Mann, que ele até então admirava tanto, aderem alegremente à onda de xenofobia.
O professor vai à estante e tira um livro que corrobora a citação de Zweig. Mostra-me um trecho em que prestigiados intelectuais, incluindo Max Weber, um dos fundadores da ciência política moderna, assinavam listas em favor da guerra, em favor de medidas xenófobas, discriminatórias, racistas.
O assunto veio à tona porque ele falava sobre seu espanto em relação a vários intelectuais brasileiros, que se entregaram a essa onda deprimente de linchamento político, contra a esquerda, contra o Estado, contra tudo que existia de bom, humanista, estável, no país. “Até o Edmar Bacha!”, espanta-se o professor, dizendo-se saudoso de conservadores como Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção.
Eu tinha vindo de bicicleta e chegara com o cérebro meio-derretido pelo sol. Saíra de uma outra entrevista, com João Feres, cientista político do Iesp, cujo vídeo devo publicar amanhã por aqui. Na hora de começar a entrevista com o professor, dei-me conta de que não tinha perguntas a fazer. Gaguejei alguma coisa sobre falarmos sobre a conjuntura, a morte de Teori, os erros da esquerda, do PT, dos governos populares…
O professor foi impiedoso. Queria uma pergunta objetiva, e não achava que era o momento de criticar a esquerda. Em geral, em situações como essa, apela-se à vaidade do entrevistado. Todos querem falar alguma coisa. Principalmente um intelectual. Não o professor. Seu estado de humor não lhe dava espaço para vaidade.
Desmascarado, um pouco humilhado, com o cérebro ainda não recuperado do sol psicótico do verão carioca, converti a entrevista numa conversa informal, uma não-entrevista. Mantenho o professor no anonimato pela mesma razão.
Testemunhei então um fato curioso: o professor é uma pessoa bem-humorada, e se mantém assim, apesar de tudo. Ao longo da conversa, rimos melancolicamente de nossas desgraças nacionais.
Raramente, contudo, estive diante de uma melancolia tão profunda e tão sincera.
“Eu fico olhando as pessoas, pela janela”, conta-me o professor, “e não entendo como elas podem ser tão indiferentes ao que acontece em seu país”.
“Pois é”, concordo, “e o olha que o desemprego real já chegou há mais de 20%, um dos maiores do mundo. As pessoas, porém, reagem a isso com medo. Fecham-se ainda mais”.
“O egoísmo aumenta. As pessoas só querem saber de si mesmas”.
O pano de fundo da nossa conversa, evidentemente, é a sequência de golpes do governo contra o interesse nacional e popular.
“O governo parece uma babushka, aquelas bonecas russas. Ele vai tirando um golpe de dentro do outro, ao infinito. A babushka, porém, chega ao fim. Sempre tem a última bonequinha. Os golpes desse governo, não. A partir da ilegalidade primitiva, o impeachment, eles vão sacando outras, porque precisam sustentar as mentiras iniciais”.
“A burguesia brasileira é pífia, medíocre”, afirma o professor, sem compreender como o próprio setor do capital tenha comprado um golpe que apenas serviu para destruir, arrasar mesmo, a economia brasileira.
Entretanto, o que mais nos impressiona, a mim e ao professor, é a apatia e anomia da sociedade civil. “Eu não sinto nenhuma mudança, nem sequer possibilidade de mudança. Embora eu acredite que as coisas, um dia, possam mudar”, lamenta.
Ele admite que a conjuntura chegou a tal ponto que ele se pergunta se a sociedade civil brasileira não entrou num processo acelerado, irreversível, de degeneração moral e política.
“Não sei mais se das trevas nascerá alguma luz, ou apenas mais trevas”, opina o professor.
“Será que ela – a sociedade brasileira – não foi sempre assim, e nós é que não sabíamos, porque não havia internet, ou redes sociais?”, eu pergunto.
“É isso que eu também estou começando a achar”, ele diz.
O pessimismo do professor o leva a meditar sobre a ficção do progresso. “Não há, exatamente, nenhuma prova científica de que os povos evoluam. Pelo menos, não de uma forma linear”, ele filosofa.
A gente continua conversando e eu descubro que a depressão política do professor tem uma outra razão, ou um agravante. Ele sempre acompanha a produção bibliográfica do seu campo de estudo, ciência política, e nos últimos tempos, têm surgido livros em sequência que questionam as virtudes da democracia. Um dos mais fortes tem como título justamente “Against Democracy” (Contra a democracia).
Esses autores defendem que o processo de voto deixou de ser eficaz para a escolha das autoridades e governos que devem nos liderar. O que o mundo precisa, dizem eles, é de governos burocráticos, corporativos, liderados por uma elite preparada. É a velha tese da República de Platão, que Robert Dahl, adversário ferrenho dessa tese, chama de “guardianismo”. É o governo dos bons, dos iluminados, da aristocracia governamental. O pior é que, explica o professor, eles trazem muitas pesquisas para provar que a própria população aprova essa forma de governo.
Ele me mostra livros que lutam contra essa tese, alguns de maneira desastrada, outros com elegância, mas admite que, por enquanto, as teses antidemocráticas têm vencido o debate.
“Eles devem adorar a China, então”, eu comento.
Ele ri, mas diz que não.
“Esses autores explicam que um governo burocrático é a única maneira de manter protegidos os direitos e garantias individuais. Ao contrário da China. Claro, é um wishful thinking, que supõe uma elite ‘boazinha’, virtuosa, que protegerá os cidadãos. Evidentemente, é uma farsa”.
Eu comento que, de certa forma, muitos governos atuais já caminham para essa hegemonia burocrática, e menciono a burocracia brasileira, a Lava Jato, o Judiciário, que se arvoram como representantes de uma casta superior, acima da política.
“Eu fico imaginando como um desses príncipes do Ministério Público deve olhar um Vicentinho da vida, um sindicalista negro, baixinho, nordestino, que fala com a língua presa. O desprezo do burocrata pela política é infinito”, eu comento.
O professor assente, concordando.
Antes de nos despedirmos, eu dou uma olhada nos livros que o professor pretende doar a uma universidade. Ele já havia dado a entender que eu poderia escolher algum.
Escolho “As origens da democracia na Grécia Antiga”, que é um tema que sempre me interessou: como nasceu essa bagunça extraordinária que diz que o povo deve governar a si mesmo.
Diante do golpe e dos ataques vergonhosos que a democracia brasileira vem sofrendo, é quase poético ler sobre um regime onde o cargo mais importante, de presidente da assembleia dos cidadãos, não durava mais que um dia e era distribuído por sorteio.
A gente se despede.
“Vamos curtir a nossa melancolia. Quem sabe as coisas melhoram”, me diz o professor.
“O pessimismo e a melancolia muitas vezes são ótimos inspiradores”, eu digo, tentando, em vão, extrair algo positivo do sentimento de depressão política.
Sempre que eu penso em depressão política, eu lembro de Arnaldo Jabor, de seus textos profundamente melancólicos, depressivos, que correspondiam à derrota política do grupo midiático para o qual ele havia alugado seu pensamento.
Há uma diferença importante, todavia: Jabor se deprimia ao mesmo tempo em que o país crescia de maneira espetacular. Pobres, nordestinos, negros, assalariados, os oprimidos viviam um momento de alegria, de expansão de renda, de libertação social, política e econômica. E não venham dizer que isso é a razão da crise atual, porque não é verdade. As contas públicas melhoraram nessa época. As dívidas públicas líquida e bruta não apenas caíram, como melhoraram sensivelmente de perfil, ficando menos expostas às intempéries internacionais. A questão energética foi sanada com grandes obras de infra-estrutura.
A depressão política do campo progressista é muito mais coerente com a nossa realidade. O povo brasileiro (embora, como admite o professor, a “maioria esmagadora” sequer tenha a consciência disso) está sendo humilhado por um governo ilegítimo, alçado ao poder sem voto, um governo criminoso, que mesmo consciente de sua ilegitimidade, já começou a destruir conquistas sociais históricas da classe trabalhadora.
Chego em casa e recebo um telefonema assustado de minha mãe. Ela me diz que minha tia foi ao salão de beleza e que “todo mundo está dizendo que Lula é o responsável pela morte de Teori”. Eu converso com ela por alguns minutos. Ela não acredita nesse boato, mas está chocada com o nível de baixaria que tomou conta do imaginário popular.
Eu explico que apenas Michel Temer e seus cúmplices do golpe ganham com a morte de Teori, porque ela lhes permitirá nomear um novo ministro. Se Lula fosse este ser maligno, para começo de conversa, ele não tinha nomeado ministros do STF que agiriam contra ele e seu partido, como agiram. Seria muito mais fácil ter nomeado gente que lhes protegesse, como fizeram os tucanos com Gilmar Mendes.
Após desligar o telefone, porém, eu fico pensando: é absurdo mas é tão lógico! Se Lula é pintado pela mídia, e pelos próprios powerpoints da Lava Jato, como o “comandante máximo”; se foi transformado em vilão de novela da Globo, então a associação é automática! Lula matou Teori! Aconteceu a mesma coisa após o acidente de Eduardo Campos. Não interessa se Dilma foi a mais prejudicada, por causa do crescimento exponencial de Marina, que só não ganhou as eleições em 2014 por causa de sua incrível incompetência política. A política brasileira degenerou numa luta sem qualquer base racional.
Voltando à entrevista com o professor: essa é a realidade sombria que nos deprime. A vitória da irracionalidade. Não adianta mais debater política. Para quê? O outro, o adversário político, virou “ladrão”, “assassino”, ou então “defensor de bandido”.
O secretário de juventude do governo federal, diante do massacre no presídio em Manaus, afirmou que era preciso ter uma chacina parecida todos os dias. Que era preciso matar mais.
“O que impressiona não é tanto que existam pessoas que pensem assim, mas…”
Faço uma pausa, a procura das palavras que possam expressar minha perplexidade.
“Sim, o despudor. O despudor da barbárie”, ele me ajuda, com o olhar mais triste do mundo.
Em algum momento da nossa conversa, o professor responde – com outra pergunta – a uma das questões que eu havia tentado levantar na entrevista:
“Alguém imaginaria, há alguns anos, que o PT apoiaria Rodrigo Maia, para a presidência da Câmara, em troca de cargos no terceiro escalão?”
[Arpeggio – coluna política diária]