Entrevista enviada ao Cafezinho
Por Aray Nabuco e Nina Fideles
Em entrevista à revista Caros Amigos, o historiador e cientista político prevê que “a superestrutura jurídica está a ruir” no Brasil; “Ninguém mais respeita a Constituição, nem juízes, nem procuradores da república nem sequer magistrados da corte suprema. O atual e suposto presidente da república, ao que tudo indica, será jogado no lixo da história e conhecido como Michel Temer, o breve”; ele analisa ainda crises, guerras e golpes no que chama de “desordem mundial”; ele diz não acreditar em uma nova guerra mundial; “Não creio em uma conflagração direta entre as potências. Não me parece provável que as contradições internacionais cheguem a tal ponto”.
Caros Amigos – Gostaria que o senhor descrevesse o que chama de desordem mundial. Quais elementos (políticos, econômicos, militares, enfim) que o senhor enxerga dessa desordem?
Moniz Bandeira – O desenvolvimento da tecnologia favoreceu a concentração de riqueza e de poder e as disparidades sociais aumentaram ainda mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política, que se produziu no sistema internacional após o colapso da União Soviética e do Bloco Socialista. E os Estados Unidos não conseguiram estabelecer a “new world order” que o presidente George H. W. Bush prometeu em setembro de 1991, um mês após o presidente Boris Yeltsin dissolver a União Soviética. Que ocorre no mundo? Guerras na África, Oriente Médio, Ucrânia, turbulência na Ásia, na América Latina, o Brexit, a inquietação social União Europeia e os Estados Unidos estão financeiramente exauridos, em franco declínio. A América Latina também não escapa. A Venezuela precipitou-se no caos. O Brasil está no limiar. A desordem política aprofunda a recessão econômica e avança no sentido da desestabilização. A superestrutura jurídica está a ruir. Ninguém mais respeita a Constituição, nem juízes, nem procuradores da república nem sequer magistrados da corte suprema. O atual e suposto presidente da república, ao que tudo indica, será jogado no lixo da história e conhecido como Michel Temer, o breve.
Caros Amigos – Esse cenário de desordem mundial que o senhor descreve é o que também chamam de “corporocracia”, o governo das corporações?
R – O domínio das corporações, anulando mais a soberania nacional, está no trasfondo dos tratados de livre comércio, que constavam da agenda dos Estados Unidos. O Trans-Pacific Partnership (TPP) e outro similar proposto à União Europeia tiram dos tribunais do país a capacidade para decidir sobre qualquer dissídio entre uma corporação e o governo. O Estado nacional perde a jurisdição sobre as corporações. Qualquer disputa seria adjudicada a um tribunal internacional de arbitragem, composto por três membros associados do tratado. Esses tratados contém os preceitos do Investor-State Dispute Settlement (ISDS) que ferem não apenas a soberania dos demais países signatários, mas também dos Estados Unidos, razão pela qual o TPP ainda não foi aprovado pelo Congresso e Donald Trump a ele se opôs durante a campanha para presidente. Quem o defendia era Hilary Clinton, do Partido Democrata.
Caros Amigos – Poderíamos comparar a ‘desordem’ atual (conflitos na periferia do capitalismo por interesses econômicos, resumidamente) a uma nova era de “colonização” (ou re-colonização ou renovação do velho colonialismo, a dominação política e do território)?
R – Ao dizimar gradualmente as economias naturais e pré-capitalistas, o capitalismo vinculou todos os povos em um sistema de vasos comunicantes e tornou as sociedades interdependentes, apesar e/ou em conseqüência da diversidade de seus níveis de progresso e civilização. As condições históricas são outras, não mais as mesmas do século XIX. O capitalismo, como o único modo de produção capaz de envolver todo o planeta, assumiu, na sua evolução, formas diferentes. Os Estados Unidos são um império, mas não como o de Roma ou da Grã-Bretanha e França. Dominam, diretamente, Hawaii, Porto Rico, Guam, Samoa, e as Ilhas Mariana do Norte. E, das 4.999 bases militares, que possuem, segundo o inventário do Pentágono, 4.249 estão no seu próprio território, 88 além-mar e 662 em 36 países e territórios estrangeiros, em todas as regiões do mundo. A dominação e exploração se processam de modo diferente, embora similares em alguns aspectos. Os Estados Unidos possuem, atualmente, cerca de 4.999 instalações militares, das quais 4.249 no seu território; 88 nos territórios americanos além-mar; 698 em outros países e territórios estrangeiros, em todas as regiões do mundo. Para que? Essas bases militares marcam o espaço do império, com tropas de ocupação, revestidas por tratados militares assimétricos, como no caso da OTAN. Os Estados Unidos têm bases militares e aéreas na Alemanha e em vários outros países da União Europeia. Porém qual o país da União Europeia que tem bases militares e aéreas nos Estados Unidos? O general Hastings Lionel Ismay, 1° Lord Ismay (1887–1965), então secretário-geral da OTAN (1952–1957) declarou explicitamente que a criação dessa aliança encapava o múltiplo propósito de “to keep the Americans in, the Russians out and the Germans down”, i.e., conservar a supremacia dos Estados Unidos, conter a União Soviética e submeter a Alemanha. E é o que os Estados Unidos fazem até hoje.
Caros – O senhor cita o terror, a guerra ao terror, e essa guerra psicológica da mídia, quer dizer, colocar medo nas pessoas se tornou um instrumento da dominação atual, é isso?
R – Sim, disseminar o medo é uma das formas de dominação.
Caros – Os EUA financiaram o terror da Al-Qaeda, por exemplo, e continuam repetindo isso na Síria, com o Estado Islâmico. O terror tornou-se política de estado?
R – Da mesma forma que a Alemanha nazista durante os anos 1930, os Estados Unidos encontraram no militarismo, sobretudo com a Segunda Guerra Mundial, um meio de permitir ao Estado sustentar a prosperidade das empresas privadas e reduzir o número de desempregados, consignando-lhes a encomenda de armamentos e outros grandes projetos militares. Daí que, após o esbarrondamento da União Soviética, o Pentágono, à frente do complexo industrial-militar, tratou de elaborar e dimensionar novas ameaças, entre as quais o terrorismo, e pretextos para intervenções militares, dilatação da OTAN, dado que não mais havia outro Estado com capacidade de desafiar os Estados Unidos e pôr em risco o sistema econômico capitalista. O terrorismo, porém, sempre ocorrera ao longo da história de modo geral, um ato político, de natureza instrumental, um método de guerra e/ou um crime político, ora praticado tanto por organizações revolucionárias ou contra-revolucionárias, pelos radicais de esquerda ou de direita, ou fundamentalistas religiosos e grupos étnicos, quanto pelos serviços de inteligência de quase todos os Estados, nem sempre com objetivo militar, em tempo de guerra. A CIA executou exaustivamente atentados terroristas contra a Cuba, também covert actions no Brasil, a fim de propiciar o clima para p golpe militar de 1964, bem como no Chile contra o governo de Salvador Allende. O terrorismo islâmico foi em larga medida fomentado pela CIA e os serviços de inteligência do Paquistão e da Arábia Saudita, desde o final dos anos 1970, não somente no Afeganistão, como também com o objetivo de desintegrar a União Soviética a partir das repúblicas da periferia asiática, onde o Islã predominava. E, atualmente, as ONGs executam, no mais das vezes, o trabalho que antes a CIA diretamente realizava.
Caros Amigos – Retomando a “corporocracia”, o governo das corporações, nesse momento a Europa vive um dilema sobre os tratados transatlânticos e de serviços, que podem acabar com o estado de bem-estar social. Esse ataque é parte dessa desordem mundial?
R – Há um ataque ao Estado de bem-estar social, que começou desde o colapso da União Soviética. Esse ataque reflete a crise sistêmica do sistema capitalista, que se manifestou e se agravou no epicentro de sua expansão, Wall Street, com a explosão do mercado imobiliário, no primeiro semestre de 2007, quando grandes corretoras, como Merrill Lynch e Lehman Brothers, suspenderam a venda de colaterais, e em julho do mesmo ano, bancos europeus registraram prejuízos com contratos baseados em hipotecas sub-prime. A erupção da crise econômica e financeira, que abalou e ainda ameaça a Grécia, Portugal, Espanha e toda a Eurozona (16 dos 27 Estados-membros da União Européia e outros 9 não-membros da UE que adotam o euro), constituiu um desdobramento, a terceira etapa da crise econômica e financeira deflagrada nos Estados Unidos, cujo déficit fiscal era de US$5,7 trilhões e a dívida pública atingia cerca de US$ 20 trilhões, a ultrapassar em mais de 104% o seu Produto Interno Bruto, em meados de dezembro de 2016. Os custos a longo prazo dos Estados Unidos, cujo problema fiscal é extremamente grave, tornaram-se, progressivamente explosivos, a evoluir como espiral, em que o crescente pagamento dos juros tende a aumentar o déficit fiscal e a dívida pública, gerando novo aumento e assim por diante. E a elite financeira dominante intenta lançar o peso da crise, compensar a taxa média de lucros, em queda, sobre os ombros da classe trabalhadora, dos assalariados. Esse problema, inter alia, constitui um dos fatores da desordem mundial, dentro de um contexto em que os Estados Unidos trataram de impor a full-spectrum dominance, mas não têm meios de escalar as guerras e estão a defrontar-se com a Rússia e a China.
Caros Amigos – O senhor acredita, diante dessa ascensão da direita e do fascismo, que caminhamos para uma nova conflagração entre potências, uma nova “guerra mundial”?
R – Não creio em uma conflagração direta entre as potências. Não me parece provável que as contradições internacionais cheguem a tal ponto. O desenvolvimento tecnológico, com as armas nucleares, afastou, virtualmente, possibilidade de um confronto direto entre as grandes potências. O cartel ultra-imperialista, formado pelos Estados Unidos e a União Europeia, não ousaria investir diretamente contra a Rússia ou a China. A guerra não seria um jogo de soma-zero. Todos seriam destruídos.
Caros Amigos – Dentro dessa desordem mundial, como o senhor vê o papel das forças progressistas de esquerda? Como poderiam reagir ou enfrentar?
R – Primeiro é necessário definir o que são forças progressistas de esquerda, onde e quando, qual o contexto, a conjuntura etc. Muitas vezes forças que se dizem progressistas e de esquerda, com políticas erráticas, favorecem a ascensão da direita, do fascismo, como ocorreu na Alemanha, no início dos anos 1930, em que o Partido Comunista, por entender que a vitória de Hitler precipitaria a revolução socialista, rechaçou a aliança com a socialdemocracia, apodando-a de social-fascismo. E o fato é que não haveria Hitler sem Stalin. Esquerda ou direita depende do ângulo, da equação política, das circunstâncias e condições.
Caros – Há quem, como Eric Hobsbawm, diz que a esquerda acabou aí na Europa (e no mundo todo). O senhor acha isso também?
R – O que Eric Hobsbawm disse, em entrevista à agência de notícias Télam, da Argentina, foi que “já não existe esquerda tal como era”, seja socialdemocrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu. Onde está a esquerda, como antes? Eric Hobsbawm está certo.
Caros – Diante desse cenário (forças da esquerda enfraquecidas e ascensão da direita), o senhor acha que tem como a esquerda se recompor nos moldes, digamos, de antes?
R – Não entramos no mesmo rio duas vezes.
Caros – O 1% (o grupo de pessoas mais ricas entre a população mundial) domina as corporações que por sua vez, dominaram os estados e governos. Há quem enxergue nesse movimento uma espécie de plutocracia, o senhor acredita nessa possibilidade?
R – Não se trata de possibilidade. Trata-se de realidadse. A free enterprise e o free market engendraram, como na selva, a acumulação de riqueza e a desigualdade estrutural de poder. A desigualdade de renda atingiu, em 2013, o nível mais elevado desde 1928: 1.645 homens e mulheres controlavam maciça parte do acervo financeiro global, um montante de US$ 6,5 trilhões. E essa elite financeira é que detém o poder mundial.
Caros – Sobre o Brasil, como o senhor avalia o governo em exercício? Estamos sendo vítimas dessa “desordem mundial”?
R – Que governo? O que vejo no Brasil é uma tragicomédia, um teatro de marionetes, manejado pelo do capital financeiro nacional e internacional, o esforço para aplicar o quanto mais rápido possível um programa econômico elaborado previamente ao golpe parlamentar-judiciário, com o respaldo da mídia corporativa, em meio a uma lawfare (guerra jurídica), cujo objetivo é desmontar alguns andaimes da estrutura econômica e política do Brasil. E por que a força-tarefa da Operação Lava-Jato não investiga a corrupção das multinacionais do petróleo e outras no Brasil? Por que não investiga o lobby da Chevron e a razão pela qual o Senado aprovou rapidamente o Projeto n° 131, que retirou da Petrobrás a condição de operadora única do petróleo nas camadas pré-sal da costa do Brasil? Serão as multinacionais impolutas? A força-tarefa da Operação Lava-Jato, porém, atacou a Petrobrás, a Eletronuclear e as grandes empresas construtoras, paralisando toda a sua cadeia produtiva, a contribuir para aumentar ainda mais a recessão e o desemprego. A operação Lava-Jato a cumprir seu papel. Aluiu importantes andaimes da estrutura para desenvolvimento econômico do Brasil.
Caros – Se for pensar no futuro desse golpe, qual o futuro que o senhor enxerga?
R – Nenhum.
Caros – Os EUA querem instalar bases na Argentina. Seria este país o braço fiel dos EUA aqui na América Latina?
R – A situação política na Argentina não está ainda definida.
Caros – E o que ocorreria com o equilíbrio geopolítico caso os EUA conseguissem instalar de fato uma base na América do Sul? Podemos antever ou fazer um exercício de análise sobre esse cenário?
R – Não posso fazer análise sobre um cenário que é muito incerto e difuso. Muito depende das diretrizes políticas que Donald Trump adotar, como presidente dos Estados Unidos.
Caros – O senhor lançou nos anos 70 o livro Presença dos Estados Unidos no Brasil. De lá para cá, o senhor vê alguma mudança dessa presença? Como é que o senhor vê uma evolução, uma linha de tempo?
R – Clara que houve mudança. Depois de Presença dos Estados Unidos no Brasil, publiquei Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente, As relações Perigosas – De Collor a Lula e Brasil, Argentina e Estados Unidos inter alia. História é movimento, é mudança e permanência na mudança. E mudança na relação do Brasil com os Estados Unidos sempre houve, desde que ocorreu a proclamação da república, mediante um golpe de Estado, desfechado pelo marechal Deodoro da Fonseca, em 1889, tendo por trás com o dedo do secretário de Estado americano, James G. Blaine, conforme o visconde de Ouro Preto denunciou no New York World, em 3 de março de 1891. E o jornalista Aristides Lobo, primeiro ministro da Justiça do governo Provisório, disse, em crônica no Diário Popular, de São Paulo, que “o fato (o golpe que derrubou o imperador Dom Pedro II) foi deles (militares) só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, supresso, sem conhecer o que significava”. E é essa república que está em decomposição.