Espiando o poder: análise quase diária da grande imprensa
Foto: Avener Prado/Folhapress
Por Luis Edmundo Araujo, colunista do Cafezinho
Variações da foto acima estampam as primeiras páginas do Estado e da Folha de São Paulo de hoje. O Globo mantém sua manchete com a violência explícita das prisões superpovoadas e a grande mídia familiar corporativa se confunde entre a defesa de soluções alternativas para o problema, como a descriminalização das drogas, e os pedidos de sempre por mais ação policial, mais vagas em presídios, mais repressão. Enquanto isso, a economia do golpe segue seu curso e a “Aeronáutica quer privatizar controle do tráfego aéreo”, como anuncia a chamada de capa do Estadão, ao lado da manchete em que “62 municípios decretam calamidade em busca de recursos”.
No Globo a principal notícia de hoje informa que “prisão rebelada tem presos fora das celas desde 2015”. O subtítulo diz que a “Força Nacional de Segurança é convocada e deve atuar na ação de retomada de Alcaçuz”, o que combina com a manchete da Folha na qual “estados pressionam Temer por papel da Força Nacional”. Embaixo, no subtítulo, “governadores pedem que tropas federais atuem no interior de presídios”, e tanto no jornal paulista quanto no carioca, colunistas pedem, na primeira página, medidas alternativas.
“A rebelião na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, na Região Metropolitana de Natal, que deixou ao menos 26 mortos no fim de semana, tornou-se um símbolo do descontrole do sistema penitenciário brasileiro, palco de 142 mortes somente este ano”. Assim começa a matéria da manchete do Globo, e na capa do jornal, na chamada para a sua coluna, Merval Pereira afirma que “nova política contra drogas seria um avanço.”
O título da coluna é “Avanço fundamental” e Merval começando especulando “que o presidente Michel Temer, pressionado pela realidade que a cada dia mostra a gravidade da crise nas penitenciárias brasileiras, pretende procurar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para discutir a descriminalização do porte de drogas para uso próprio”. No texto, o colunista do Globo não perde a chance de lembrar que seu ex-presidente preferido “copresidiu a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, juntamente com os ex-presidentes da Colômbia César Gaviria e do México Ernesto Zedillo”.
Por causa dessa campanha, FHC, lembra Merval, “foi colocado pela importante revista americana ‘Foreign Policy’ entre os cem maiores pensadores internacionais, ‘por dizer o que a guerra às drogas é: um desastre'”. O colunista ressalta ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) “começou a julgar a descriminalização do porte de drogas em 2015, e já existem três votos favoráveis à descriminalização do porte da maconha”.
Mesmo reconhecendo que o tema é “politicamente delicado”, Merval ressalta que a discussão dele está sendo facilitada “pela superlotação das cadeias e, também, pela atuação das facções criminosas, que acabam recrutando nos presídios novos ‘soldados'”. Na Folha, Hélio Schwartsman endossa a opinião do colega afirmando na capa que “é preciso prender menos e legalizar o uso de drogas”. Não por acaso, a chamada para sua coluna vai bem em cima de outra avisando que “Anvisa aprova o 1o medicamento à base de maconha”.
Nada disso, porém, é dito nos dois editoriais que o Globo dedica hoje ao assunto. O menor deles, inclusive, publicado dentro da matéria sobre o caos penitenciário, chega a contradizer a solução sugerida por Merval, ao tecer elogios, por exemplo, ao ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que antes da explosão de violência nas prisões chegou a definir como prioridade a erradicação, em toda a América do Sul, da mesma maconha cujo uso o STF está em vias de descriminalizar, de acordo com o colunista do Globo.
“Caminho certo” é o título do minieditorial no qual o jornal carioca afirma que “a operação que revelou os golpes de Eduardo Cunha e Geddel Vieira na Caixa Econômica mostra que, se alguém ainda tinha dúvidas de que sob o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e Temer, a Lava-Jato corria risco, a ação mostrou que não”. No que diz respeito à crise carcerária, o texto diz que “cobrar uma solução em oito meses, tempo de Temer, é loucura” e que “as medidas anunciadas podem não ser suficientes, mas são emergenciais e vão no caminho certo.”
Já o editorial principal do Globo fala no título, que vai também na primeira página, sobre “a necessidade de uma resposta do Estado brasileiro”. Segundo o jornal carioca, o “crescendo de selvageria reclama de imediato, do poder público, ações exemplares, tranquilizadoras para a sociedade e a população carcerária”. O texto não especifica muito quais seriam essas ações, mas não fala nada nem de descriminalização das drogas nem da redução do encarceramento defendida por Sérgio Bruno Martins, professor do Departamento de História da PUC-Rio, em artigo no mesmo Globo.
“Chacinas produzem mais criminosos”, diz Martins no título de seu texto, no qual ele afirma que “presos provisórios ou que podiam cumprir pena alternativa filiam-se a facções para sobreviver às matanças. Fora da prisão, continuam em dívida com quem os ‘protegeu’”. Difícil, no entanto, é fazer avançar esse tipo de pensamento num país onde, como mostra matéria de hoje no sita da revista Carta Capital, de Miguel Martins, “bancados por autoridades e políticos, os discursos de ódio prosperam”.
“O caos carcerário levanta o debate sobre os limites entre a liberdade de expressão e a apologia e a incitação ao crime”, diz o subtítulo da matéria. O Globo não cita isso no editorial mas reconhece o que o governo de São Paulo, do PSDB, ainda não reconheceu, que o Primeiro Comando da Capital (PCC), fortalecido nos últimos 23 anos de governo tucano em sua terra natal, é “um fato novo, um forte agravante, em relação a episódios passados de violência”.
“O PCC, a principal facção envolvida, consolida-se como uma organização com tentáculos em grande parte do país (e mesmo no exterior)”, afirma o Globo em seu editorial principal. E na Folha, a socióloga e professora da Universidade Federal do ABC Camila Nunes Dias reforça essa linha de raciocínio no artigo cujo título fala de “Pacificação em São Paulo, caos no Brasil”, o que certamente foi provocado pela “exportação” de líderes do PCC para cadeias de outros estados, revelada em matéria da mesma Folha.
Segundo Camila, “dizer que SP nada tem a ver com crise é mais um capítulo da política de segredo e negação que marca relação entre PCC e governos paulistas”. Relação essa que, como em todas as suas colunas anteriores, não foi abordada por Eliane Cantanhêde em seu texto de hoje no Estadão, com chamada de capa contando que “contra o tráfico de drogas, Brasil está enviando adidos de inteligência para países vizinhos”.
“Falta de inteligência” é o título do texto no qual a colunista começa falando das duas maiores obsessões da grande mídia. “Depois de Lula e Dilma acabarem com as câmeras de segurança no Planalto em 2009, o governo dela extinguiu em 2015 o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão de inteligência que assessora os presidentes da República nas diferentes áreas”. Para relacionar isso com a crise atual dos presídios, Cantanhêde fala da restauração do GSI por Temer e da nomeação para o cargo do “general da reserva Sérgio Etchegoyen, quadro de elite do Exército.”
“Etchegoyen defende o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, o Plano Nacional de Segurança e a destinação de recursos do governo Temer para o Fundo Penitenciário (Funpen)”, continua a colunista do Estadão, desfiando algumas das estratégias de Etchegoyen até concluir que “não dá para culpar o atual presidente, o atual governo, o atual ministro da Justiça. Eles apanham muito, o tempo todo, mas fazem o que podem. O que não podem é fazer milagres.”
Milagres, talvez não, mas enquanto envia adidos para países vizinhos e também para a França (para Paris, claro), o atual governo pode tornar nula, completamente sem eficácia qualquer tentativa de defesa do espaço aéreo nacional. “Incrível a notícia de que a Aeronáutica pretende privatizar o controle da gestão da rede de telecomunicações usada pela Aeronáutica para a defesa, vigilância e controle do tráfego aéreo”, afirma Fernando Brito, no Tijolaço, ao tratar da chamada de capa do Estadão.
O jornalista destaca trecho da matéria em que “dezessete empresas participaram da audiência pública, duas com maior interesse: o grupo mexicano Claro/Embratel e a americana Harris.” “Dispensam-se, portanto, a NSA e os satélites espiões”, ironiza Brito, ao lembrar que, caso seja posta em prática mais essa privatização, “todos os registros de navegação aérea – e isso inclui a militar – já vão direto para mãos estrangeiras, da fonte”.
Nesse caso, conclui o jornalista, “se é só uma questão de economia, seria melhor pensar em fechar a Força Aérea, porque uma Força sobre a qual se sabe como age, com todos os detalhes de posição, rotas, altitudes, formações e táticas não serve nem para videogame.”