Economia: A que ponto chegamos? André Lara Resende tem essa resposta

Pesquisador da Columbia University escreve ao Valor e apresenta um panorama sobre o cenário econômico brasileiro nos últimos 20 anos. André Lara Resende analisa desde o Plano Real até os contornos da política econômica atual. Ele também critica a alta taxa de juros e suas tantas explicações.

No Valor

Juros e conservadorismo intelectual

Por André Lara Resende

Desde a estabilização da inflação crônica, com o Real – e já se vão mais de 20 anos -, a taxa básica de juros no Brasil causa perplexidade entre os analistas. Por que tão alta? Inúmeras explicações foram ensaiadas, como distorções, psicológicas e institucionais associadas ao longo período de inflação crônica com indexação; baixa poupança e alta propensão ao consumo, tanto pública como privada; ineficácia da política monetária, entre outras.1 Embora todas façam sentido e possam, no seu conjunto, ajudar a entender por que os juros são tão altos, nenhuma delas foi capaz de dar uma resposta convincente e definitiva para a questão.

As altíssimas taxas brasileiras ficaram ainda mais difíceis de serem explicadas diante da profunda recessão dos últimos dois anos. Como é possível que depois de dois anos seguidos de queda do PIB, de aumento do desemprego, que já passa de 12% da força de trabalho, a taxa de juro no Brasil continue tão alta, enquanto no mundo desenvolvido os juros estão excepcionalmente baixos? Há quase uma década, nos Estados Unidos e na Europa, e há três décadas no Japão, os juros estão muito próximos de zero, ou até mesmo negativos, mas no Brasil a taxa nominal é de dois dígitos e a taxa real continua acima de 7% ao ano.

A taxa cobrada pelo Banco Central por um dia – de “overnight” – pelas reservas bancárias influencia toda a estrutura de taxas do sistema financeiro. Por isso é considerada a taxa básica, ou de referência, da economia. É também o principal instrumento da política monetária. Juros mais altos reduzem a demanda agregada, desaquecem a economia e moderam a inflação; juros mais baixos elevam a demanda agregada, aquecem a economia e pressionam a inflação. Esta é a essência do mecanismo de funcionamento da política monetária. Há muitas interpretações sobre os chamados “canais de transmissão” da política monetária, inúmeras sofisticações analíticas, mas, em síntese, juros mais altos reduzem a demanda agregada e moderam a inflação. A macroeconomia moderna tem sua origem nas discussões sobre a Grande Depressão dos anos 30 do século XX. É essencialmente baseada na Teoria Geral de Keynes, embora tenha evoluído muito desde então.

Quanto à inflação, sempre houve controvérsia. Diferentes versões dos modelos macroeconômicos tinham diferentes interpretações sobre as causas e a melhor forma para controlar a inflação. O debate entre monetaristas e keynesianos, da segunda metade do século XX, deu lugar a um consenso pós-keynesiano. Com o reconhecimento de que instrumento usado pelos bancos centrais não são os agregados monetários, mas sim a taxa de juros, e a adoção das metas para a inflação, chegou-se ao atual relativo consenso sobre a condução da política monetária.

A teoria monetária, mais ainda do que outras áreas da economia, sempre esteve associada a um contexto histórico e institucional específico. Como estudada nas escolas de economia, a teoria monetária estabelecida tem sua origem nas discussões sobre moeda e crédito na Inglaterra. Duas grandes vertentes se formaram, a partir do debate das primeiras décadas do século XVIII, quando a conversibilidade da moeda em ouro foi interrompida pelo Banco da Inglaterra. O debate entre os defensores da conversibilidade e os que não viam necessidade de uma moeda lastreada define, até hoje, as duas grandes linhas teóricas sobre moeda e crédito.

Os bullionistas, defensores da conversibilidade, foram os primeiros quantitativistas, para quem a quantidade de moeda determina o nível de preços. A vitória intelectual dos bullionistas tornou a chamada Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) a hipótese dominante na macroeconomia. Os anti-bullionistas, para quem a relação causal poderia ser inversa,, ou seja, são os preços que determinariam a quantidade de moeda, foram relegados a um segundo plano, quando não ao completo ostracismo.

Partes das teses dos anti-bullionistas foram resgatadas, no fim do século XIX, pelo economista sueco Knut Wicksell, mas nunca chegaram a ser incorporadas à teoria dominante. Só ressurgiram quando Michael Woodford, já no início deste século, deu ao seu modelo neokeynesiano alguns toques wicksellianos. 2 Tanto Keynes como seus seguidores, apesar da acirrada controvérsia, dos anos 60 e 70 do século XX, com os monetaristas liderados por Milton Friedman, eram essencialmente quantitativistas. Vozes destoantes, tanto na Cambridge inglesa como na América Latina, nunca chegaram a ser levadas a sério pela ortodoxia. Embora continuem a ser utilizados pelos analistas e pelos economistas práticos, os modelos quantitativistas, tanto o keynesiano como o monetarista, são hoje considerados ultrapassados. Na fronteira teórica, foram substituídos pelos modelos neokeynesianos, com expectativas racionais, que deixam a moeda de lado e focam exclusivamente na taxa de juros como instrumento de controle da inflação.

A experiência revolucionária dos bancos centrais do mundo desenvolvido, desde a grande crise financeira de 2008, não deixa mais dúvida: todos os modelos macroeconômicos que adotam alguma versão da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) estão equivocados e devem ser definitivamente aposentados. Os bancos centrais aumentaram a oferta de moeda numa escala nunca vista. O Fed, por exemplo, aumentou as reservas bancárias de US$ 50 bilhões para US$ 3 trilhões, ou seja, multiplicou a base monetária por 60, num período inferior a dez anos. A inflação não explodiu, ao contrário, continuou excepcionalmente baixa. O mesmo aconteceu no Japão, na Inglaterra e nas economias da zona do euro. Diante do aumento, verdadeiramente extraordinário, da oferta de moeda, a inflação manteve-se excepcionalmente baixa e ainda menos volátil do que no passado.

Nas ciências sociais, o teste empírico de hipóteses teóricas é mais complicado do que nas ciências exatas. Nestas é possível fazer experiências em laboratórios, com controle das variáveis envolvidas. Embora a economia seja uma ciência social com pretensão de se equiparar às ciências exatas, o teste empírico dos modelos teóricos – especialmente na macroeconomia, onde muitos fatores estão simultaneamente em jogo – é uma arte. O abuso da formalização matemática só mascara os graves problemas de identificação estatística. Esta é a essência da recente e dura crítica de Paul Romer, atual economista-chefe do Banco Mundial, a toda a teoria macroeconômica contemporânea.3 Com a experiência radical dos bancos centrais das economias avançadas, tem-se, entretanto, uma oportunidade única. O chamado Quantitative Easing (QE) praticamente replica o que seria uma experiência de laboratório para observar o efeito sobre os preços de um extraordinário aumento da quantidade de moeda. A resposta contradiz frontalmente o que sustentava a teoria monetária quantitativista e a macroeconomia ensinada nas grandes escolas até muito recentemente: nada acontece. A inflação não explode, continua estável e impassível.

Os modelos monetaristas, cujo cerne era a TQM, expressa na equação MV = PY, provavelmente a relação mais conhecida de toda a teoria econômica, pressupõem que a velocidade de circulação da moeda, V, seja estável. Logo, com o nível de atividade econômica, Y, mais ou menos constante, um brutal aumento da quantidade de moeda, M, levaria a um aumento proporcional do nível de preços, P, portanto, a uma explosão inflacionária. Não foi o que ocorreu.

Os modelos neokeynesianos, até hoje usados pelos bancos centrais, sustentam que a inflação pode ser estabilizada através de uma regra para os juros. Segundo a chamada Regra de Taylor, para estabilizar a inflação, o juro deve ser reduzido ou aumentado mais do que proporcionalmente e de maneira inversa ao movimento observado na inflação. Se a política monetária for passiva, ou seja, não reagir de maneira inversa e mais do que proporcional aos movimentos observados na taxa de inflação, a inflação ficará instável. Assim que a taxa de juros atingisse, como de fato atingiu, um limite inferior nominal, próximo de zero, o processo deflacionário se tornaria incontrolável. Também não foi o que ocorreu.

Os modelos neokeynesianos com expectativas racionais, onde a moeda é deixada de lado e só a taxa de juros aparece com o instrumento de política do banco central, deixam a inflação indeterminada: haveria uma infinidade de níveis de inflação compatíveis com um determinado hiato de produto. As últimas versões dos modelos neokeynesianos resolvem essa indeterminação introduzindo a hipótese de Irving Fisher, segundo a qual a taxa de juros nominal de equilíbrio é igual à taxa real mais a expectativa de inflação futura. Neste caso, a inflação seria estável com uma política monetária passiva. São, portanto, modelos compatíveis com a experiência recente de inflação estável, apesar de a taxa de juros ter batido no seu limite nominal inferior. Tais modelos, além de alguns complicados problemas conceituais, para perplexidade geral, preveem que, no longo prazo, a relação entre a taxa de juros e a inflação é inversa à que sempre se acreditou: quando o banco central eleva a taxa de juros, a inflação não cai, mas aumenta; e quando o banco central reduz a taxa de juros, a inflação não sobe, mas ao contrário, cai.

Veja-se a que ponto chegamos em matéria de confusão e perplexidade. Os bancos centrais promoveram uma experiência radical de expansão monetária. Duas das três versões dos modelos macroeconômicos dominantes preveem resultados flagrantemente incompatíveis com o que efetivamente ocorreu. O único modelo compatível com a estabilidade observada da inflação é o neokeynesiano mais recente, na sua vertente neo-fisheriana, utilizado apenas na fronteira acadêmica, pois além de sérias complicações analíticas, inverte a relação entre juros e inflação. A condução da política monetária estaria assim, há décadas, seriamente equivocada. Esta não é, como poderia parecer, uma conclusão de contumazes críticos da teoria dominante. É o resultado lógico do arcabouço teórico da moderna macroeconomia, que inspira a condução das políticas monetárias no mundo, quando confrontado com evidência empírica dos últimos anos.

John H. Cochrane, até recentemente professor da Universidade de Chicago, atualmente professor na Universidade de Stanford, é um dos mais destacados expoentes do debate acadêmico, na fronteira da macroeconomia e da teoria monetária. Em um longo e detalhado artigo, que acaba de ser publicado, Cochrane expõe, de forma clara e reduzida ao essencial, as diversas versões da ortodoxia macroeconômica. Em seguida, confronta a evidência empírica das últimas décadas com as simulações dos diferentes modelos. Conclui que o longo período de baixa inflação com taxas nominais de juros próximas de zero sugere que a teoria monetária está errada. Taxas de juros nominais mais altas, no longo prazo, resultam em inflação mais alta.4

Esta surpreendente reversão do sinal da política de juros, no longo prazo, é chamada de hipótese neofisheriana, em homenagem a Irving Fisher. Ao fixar a taxa nominal de juros, i, dada a taxa real de juros, r, determinada na esfera não monetária da economia, pela equação de Fisher, i = r + E p , o banco central determina também a inflação esperada, Ep . Os interessados na dedução analítica das conclusões não devem deixar de ler o artigo de Cochrane. A inversão do sinal do impacto dos juros sobre a inflação é essencialmente resultado das expectativas racionais. Das expectativas racionais, que não olham para trás, para o passado, como é o caso das expectativas adaptativas, mas sim para frente, para o futuro. A taxa nominal de juros, fixada pelo banco central, atua assim como sinalizador da inflação futura. O resultado é tão surpreendente quanto controvertido, pois há forte evidência de que, no curto prazo, juros mais altos reduzem a inflação. É preciso, portanto, compreender como é possível que a alta dos juros, no curto prazo reduza, mas no longo prazo aumente a inflação.

Cochrane utiliza todo o arsenal das chamadas “distorções” em relação ao modelo de referência, para as quais os economistas apelam quando precisam compatibilizar o modelo analítico de referência com a realidade, para tentar encontrar uma relação inversa entre a taxa de juro e a inflação, no curto prazo. Não teve sucesso. A única hipótese capaz de explicar a tradicional relação inversa entre o juro e a inflação, no curto prazo, é a chamada Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP).

Segundo o modelo neokeynesiano contemporâneo, com expectativas racionais, a inflação é indeterminada, ao sabor das expectativas. A TFNP sustenta que, em última instância, o que ancora as expectativas e determina a taxa de inflação é a política fiscal.5 É, portanto, a política fiscal, o equilíbrio sustentável de longo prazo da dívida pública, que em última instância determina a taxa de inflação.

Cochrane demonstra que, ao combinar a TFPL com o modelo neokeynesiano de expectativas racionais, é possível dar uma explicação simples e logicamente robusta para o fato de que o efeito do juro sobre a inflação se inverta no longo prazo. Ou seja, que um aumento do juro reduza a inflação no curto prazo, ainda que aumente a inflação no longo prazo.

A lógica do modelo parece irretorquível, mas o mecanismo através do qual o juro mais alto reduz a inflação no curto prazo – pelo menor valor presente da dívida pública – seja uma consequência lógica, mas pouco intuitiva. O próprio Cochrane afirma que se trata de “um mecanismo dramaticamente novo” em relação a tudo que se acredita em termos de teoria e políticas econômicas.

A teoria monetária dominante nunca conseguiu compreender e dar soluções para as altas taxas de inflação crônica. Sua prescrição – controlar a expansão da moeda e contrair a liquidez – só provocou crises bancárias e recessões. Também, como sustentou Keynes com a chamada Armadilha da Liquidez, agora incontestavelmente confirmada pela experiência do QE, também não tem resposta para a deflação. A teoria macroeconômica contemporânea está em polvorosa. A inflação é indeterminada, resultado exclusivo das expectativas. A teoria monetária, que até hoje balizou as políticas dos bancos centrais, pode estar equivocada. A macroeconomia contemporânea, das versões mais recentes dos modelos neokeynesianos, sustenta que os juros altos balizam as expectativas de inflação mais alta, o que resulta efetivamente em mais inflação no longo prazo. Segundo a TFNP, as expectativas são, em última instância, determinadas pela credibilidade do equilíbrio fiscal de longo prazo, pois a inflação compatibiliza, no longo prazo, a dívida pública com o seu nível sustentável. A mirabolante reviravolta da teoria macroeconômica sugere que a separação entre as políticas monetária e fiscal é mais artificial do que se acreditava.6

Voltemos então ao Brasil e suas altíssimas taxas de juros. Vencida a inflação crônica, com o mecanismo engenhoso da URV, a taxa de juros no Brasil foi mantida alta. O objetivo inicial era sustentar a estabilidade do câmbio flutuante e impedir novos surtos de inflação, mas como o equilíbrio fiscal sempre foi precário, o juro continua, até hoje, extraordinariamente alto, devido à grande necessidade de financiamento do setor público. A experiência do QE deixou claro que o financiamento monetário – através da expansão de reservas remuneradas no banco central – não é inflacionário. Logo, maior necessidade de financiamento público não exige necessariamente juro alto. O único modelo analítico compatível com a evidência empírica do QE leva à conclusão de que o juro nominal alto sinaliza uma inflação alta, pauta assim as expectativas e mantém a inflação alta. Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta.

A possibilidade de que o juro alto agrave de tal forma o desequilíbrio fiscal que se torne contraproducente, foi primeiro ventilada para o caso brasileiro, em 2004, por Olivier Blanchard. A chamada hipótese da “dominância fiscal” foi inicialmente tratada como uma mera conjectura teórica, logicamente possível, mas praticamente irrelevante.7 Reapareceu, mais recentemente, com o agravamento da situação fiscal durante os últimos anos dos governos do PT.8 Foi ainda tema de artigo de Eduardo Loyo, citado por Chris Sims no encontro dos presidentes de bancos centrais em Jackson Hole de agosto do ano passado.9 Com o recente desenvolvimento analítico da macroeconomia, percebe-se que a dominância fiscal deveria ter merecido mais atenção e suas consequências, para a formulação das políticas monetária e fiscal, levadas mais a sério.

A hipótese neo-fisheriana, que vê no juro alto a causa da alta inflação no longo prazo, apesar de ainda mais difícil de digerir, assim como a tese da dominância fiscal, tem sólidas credenciais analíticas. Ambas sugerem que não se pode pedir da política monetária e dos bancos centrais mais do que moderar a inflação no curto prazo. Exigir que a política monetária faça, mais do que circunstancialmente, o trabalho de controle da inflação, cuja estabilidade depende, em última instância, do equilíbrio fiscal de longo prazo, pode ser contraproducente. Sem equilíbrio fiscal não há saída. Quando o país passa por um delicado momento político e pela sua mais séria recessão em décadas, vale a pena acompanhar, sem ideias preconcebidas, a discussão na fronteira da teoria macroeconômica. O custo do conservadorismo intelectual nas questões monetárias, durante as quatro décadas de inflação crônica do século passado, já foi alto demais.

Redação:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.