Espiando o poder: análise diária da grande imprensa
Foto: Donaldo Hadlich/Framephoto
Por Luis Edmundo Araujo, colunista do Cafezinho
O Globo e a Folha de São Paulo vêm hoje com a mesma manchete, o primeiro dizendo que “Governo tenta aval do STF para resolver crise do Rio”, e a segunda, afirmando que “União negocia com o Supremo solução para” o mesmo problema. O jornal carioca ainda tem como reforço do alívio, do vislumbre de soluções futuras, a chamada no alto ao lado da manchete, a informar, sob os “sinais de recuperação” em cor de laranja, que “captações vão superar US$ 25 bi”. Mas não há como deixar de falar, ainda, na explosão de violência nos presídios. O Globo pede no editorial, na primeira página, “mais presídios e também uma administração eficiente”, e só lá dentro, no penúltimo parágrafo do texto, lembra do “contingente que, submetido a atos correcionais mais brandos, com penas alternativas, poderia ser reintegrado à sociedade”. A Folha cita o exemplo do Espírito Santo na capa e só na página interna, no subtítulo, fala em “políticas de ressocialização”. E abaixo, na mesma página, “sob pressão, Temer enviará tropas a AM e RR”. Apela para a repressão, às armas, o mesmo presidente que no Globo tem suas declarações equivocadas ressaltadas na chamada de capa para a matéria sobre as “gafes em série”, ilustrada pela foto acima na qual, pode parecer só impressão, mas Temer, dentro da ambulância, parece ser cuidado com toda a atenção destinada aos incapazes.
O Estado de São Paulo é o único dos três principais jornais do País a manter a manchete com a barbárie nas penitenciárias, dizendo que “resolver crise dos presídios custa R$ 10 bi”. “Cálculo está em documento enviado à ministra Cármen Lúcia em outubro”, avisa o subtítulo, e na primeira frase do texto da chamada o leitor fica sabendo que o valor é necessário “para acabar com déficit de 250 mil vagas no sistema penitenciário nacional.” Mais presídios, mais vagas, o que vai de encontro ao artigo publicado cinco dias atrás no El País, que, já no título sobre “o massacre no Amazonas e as prisões privatizadas”, mostra, no link do dia, “o lucro como alma do negócio”.
Lucio Costa, psicólogo e perito, e Thais Lemos Duarte, socióloga e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), são os autores do texto que afirma que “ao privatizar unidades prisionais, o Estado transfere o seu poder punitivo a uma entidade com interesses meramente lucrativos.” Segundo os autores, “nessa lógica, quanto mais presos, maior é o rendimento à empresa, sendo o encarceramento a alma do negócio”.
No editorial principal de hoje o Globo diz que “o país precisa de mais vagas no sistema — o que significa a construção de mais presídios”. No El País do dia 5, Lúcio e Thais lembraram da “forte discussão no cenário político voltado ao endurecimento penal, como a redução da maioridade e um maior rigor na guerra às drogas”. Os dois peritos deram o exemplo dos Estados Unidos, onde a privatização das prisões começou a ser implantada “no governo de Ronald Reagan, ainda na década de 1980”.
Por lá, de acordo com os autores do artigo, “a privatização das prisões gerou um lobby fortíssimo voltado a um maior rigor das penas e uma repressão policial ainda mais intensa”. O psicólogo e a socióloga afirmam que “mais pessoas foram presas e condenadas a penas mais longas de privação de liberdade – constituindo um negócio milionário para empresas do setor”. Em seguida, lembram que “esse processo começou a ser revertido, tendo o Departamento de Justiça do país já anunciado que reveria as prisões privadas, pois não seriam tão eficientes se comparadas às instalações do próprio Estado”.
Nada disso, no entanto, aparece hoje na grande mídia, nem no editorial do Globo nem no do Estadão, que pega carona na chamada embaixo da manchete do jornal carioca, a dizer que “divisão de presos por facção é polêmica”. “Por trás dos massacres” é o título do texto em que, logo na primeira página, embaixo, o jornal paulista afirma que “autoridades carcerárias são hoje subordinadas àqueles que fazem o favor de se intitular presos”.
Sem falar em privatização, muito menos em ressocialização, o Estadão se concentra no poder e na guerra entre facções criminosas, dizendo que hoje, nos presídios, “são os bandidos que mandam e as autoridades, querendo ou não, que obedecem”, e afirmando, na conclusão do texto, que este é “um desafio que não pode ficar sem resposta”. “E não uma resposta qualquer, para inglês ver”, continua o jornal paulista, “mas uma forte o suficiente – e articulada pelos Três Poderes, em todos os seus níveis – para começar a repor as coisas em seus devidos lugares. E o mais rápido possível.”
Mais repressão, mais prisões e nada, também, sobre as ligações que Luis Nassif faz em seu “Xadrez da política, do crime e da contravenção”, no qual procura tecer um “pequeno histórico das relações com a contravenção de dois personagens-símbolos do Brasil atual: o presidente Michel Temer e o Ministro da Justiça Alexandre de Morais.” Antes, porém, o jornalista não deixou de associar Morais com a “alma do negócio” do texto do El País, ao lembrar de discurso que ele, já ministro, “fez a uma plateia lotada de estudantes”, diante da qual “defendeu que os futuros advogados se preocupem em ganhar dinheiro, ‘porque não sou comunista nem socialista, muito pelo contrário’.
Nassif lembra que Temer e Morais despontaram para a política como secretários de Segurança Pública de São Paulo. “As ligações de Temer com o jogo nasceram com sua própria carreira política”, afirma o jornalista, para lembrar que o atual presidente assumiu o cargo na gestão de Franco Montoro (PMDB), eleito em 1982, e “empossado Secretário, sua primeira declaração foi pela legalização do jogo do bicho.” Ainda segundo o jornalista, “se a gestão Temer foi no auge do poder do bicho, a de Morais se deu no auge do poder do PCC”.
Apesar de ressaltar que o atual ministro da Justiça não participou do acordo celebrado entre as autoridades e o Primeiro Comando da Capital, após “o embate maior” de 2006, quando “o PCC invadiu a cidade e executou diversos agentes públicos”, Nassif lembra que ele bem tirou proveito da paz que, com o acordo “voltou a reinar” . Morais virou um “super-secretário” do então prefeito Gilberto Kassab, “acumulando as pastas de Transportes e de Serviços, presidindo o Serviço Funerário, a SPTrans e a Companhia de Engenharia de Tráfego”, cargo no qual “era o responsável pela negociação dos sistemas de transportes, incluindo as vans, sob o controle do PCC”.
Na Folha, a chamada de capa avisa que “em três anos, PCC cresce 20 vezes em Roraima e cria ‘filiais'”. Lá dentro, somente no antepenúltimo parágrafo da matéria é citado o ministro da Justiça que, segundo Luis Nassif, “se tornou suficientemente confiável para, fora do cargo, ser contratado como advogado pelo PCC para sua cooperativa de vans, a Transcooper”. Não há qualquer relação ou insinuação a respeito disso na reportagem da Folha na qual o personagem principal aparece quando o promotor Marco Antonio Azeredo, “do Gaeco, especializado em crime organizado” “considerou ‘vergonhoso’ o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, dizer que pretendia ‘colaborar’ com o Estado para solucionar a crise”.
“Se ele quisesse ajudar, tinha que evitar que membros em presídios federais tivessem contato com presos (…). O crime é nacional, não estadual. Quem estruturou todo o sistema (do PCC) em Roraima foi um detento do Paraná”, conta o promotor. Na primeira página da Folha, a matéria vem abaixo da chamada para o texto de Julieta Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Ucam”, e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da PUCRS, que afirmam que “plano federal para prisões é retórico e superficial”.
“Há 20 anos apresentam-se planos nacionais sempre que algum acontecimento espetacular chama a atenção da sociedade e da mídia”, diz o texto, que em seguida afirma que “tais planos pecam pelo improviso e pelo não enfrentamento dos problemas estruturais do setor”. Talvez fosse aconselhável investir no que a própria Folha mostrou ter dado no Espírito Santos, como “metas de atendimento jurídico, foco na educação dos detentos, oferta de emprego para ex-presidiários e, para evitar encarceramentos desnecessários, o encontro do juiz com o detido ocorre sempre em até 48 horas depois do flagrante”, nas chamadas audiências de custódia.
Mas nada disso, por enquanto, foi feito nem pensado em nível federal, a não ser mais um anúncio do pelo ministro, com a foto dele ao lado, mais uma, de que “estados receberão, cada um, 100 homens da Força Nacional ainda nesta terça”. O que esperar, porém, de um presidente que, como informa a capa do Globo, sob o título “o acidente e o cruzeiro”, “após chamar o massacre de presos de ‘acidente pavoroso’, (…) trocou a moeda do país, voltando ao cruzeiro”.