Professor de Direito da Universidade Federal Fluminense e colunista do Cafezinho, Rogério Dultra concedeu entrevista ao jornalista argentino Darío Mizrahi, do portal Infobae, e falou sobre a crise nos presídios brasileiros e o massacre Manaus. Especialista em segurança pública, Dultra, em 2015, coordenou pesquisa para o Ministério da Justiça e para o IPEA sobre excesso de prisão provisória no Brasil. O relatório é o primeiro estudo que mensura o tempo que a burocracia judicial gasta com pessoas desnecessariamente presas.
¿Cómo se explica lo ocurrido en la prisión de Manaos? ¿Qué es lo que llevó a que se pueda producir una masacre de esa magnitud?
As prisões no Brasil sempre foram depósitos de pobres e, ao mesmo tempo, lugar de exercício do poder político das Polícias Militares estaduais, que decidem quem e o que reprimir de forma arbitrária – ou seja, sem investigação técnica, na maioria absoluta dos casos. São as polícias e não o Judiciário quem decide os que ficam encarcerados no Brasil. E isto, que é uma clara distorção do sistema processual, gera como conseqüência formas não regulares de controle interno, como o aparecimento de facções criminosas organizadas dentro dos presídios.
Cerca de 80% das pessoas estão presas no país porque foram pegas em flagrante delito pelas Polícias Militares. O Poder Judiciário sempre operou confirmando estas prisões policiais e as transformando automaticamente em prisões processuais sem culpa provada – ou seja, antes de uma condenação judicial – fazendo com que 41% dos presos no país sejam presos provisórios.
No Estado do Amazonas o número de presos provisórios chega a 58%, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/MJ).
Nos crimes de drogas a taxa de conversão de flagrantes em prisões processuais atinge em alguns estados 90% dos casos. Isto gera uma quantidade enorme de presos não violentos que poderiam estar sendo monitorados fora das prisões mas que ficam submetidos ao encarceramento em massa e às facções criminosas pelo modo como as polícias escolhem reprimir.
Outro problema grave, no caso específico do Complexo Penitenciário Anísio Jobim é a gestão pública incompetente somada à gestão penitenciária privatizada. O Ministério Público Estadual no Amazonas suspeita de superfaturamento e pediu recisão de contrato com a Empresa Umanizzare, responsável pela gestão do sistema carcerário estadual.
Enquanto a maioria dos países do ocidente que experimentou a privatização de presídios está voltando atrás por conta de resultados desastrosos, o Brasil está vivendo um momento de boom de privatizações de serviços e de gestão do sistema carcerário.
Isto tem gerado um “barateamento” aparente de custos que sai caro para a sociedade. Por um lado, a privatização só se sustenta através de uma precarização geral de serviços, como pessoal mal treinado e mal remunerado, com alta rotatividade e pouco compromisso com as funções.
Por outro lado, existe uma ligação subterrânea entre empresas que cuidam de presídios e lideranças políticas estaduais, o que geralmente estimula a burla de licitações e contratações, sempre em prejuízo da coisa pública. Só no ano passado, a empresa Umanizzare recebeu do governo R$ 430.000.000,00 para gerir o sistema, sem que a qualidade do serviço prestado tenha sido monitorada devidamente. O resultado é que no presídio onde ocorreu a rebelião e o massacre havia um quadro endêmico e inexplicável de superlotação.
¿Qué lugar tuvieron en la masacre de Manaos, y más en general en la violencia que se ve dentro de las prisiones, las bandas del crimen organizado como el PCC y el CV? ¿Cómo se explica que el Estado no logre erradicarlas a pesar que están activas hace tanto tiempo?
As facções criminosas organizadas surgiram no Brasil por conta do encarceramento em massa. É o encarceramento em massa que gera esse tipo de fenômeno. No país, embora a legislação exija que a pena de reclusão seja individualizada – cada preso tem direito a uma cela individual de 6m2, segundo a Lei de Execução Penal – o próprio ministério da Justiça contabiliza como lotação normal a quantidade de cinco presos por cela de 6m2. Acima desse número é que se fala oficialmente em superlotação.
Então, na realidade, não temos apenas prisões superlotadas. Temos um verdadeiro genocídio em curso. Celas com 50, 80 pessoas amontoadas, numa situação praticamente idêntica ou mesmo pior – se é que é possível – aos campos de concentração nazistas. Daí ser acertado se falar que no Brasil estamos vivenciando um processo sistemático de criminalização da população pobre, que ocorre ao largo de parâmetros legais e institucionais.
O Poder Judiciário também tem responsabilidade por este estado de coisas, já que acaba chancelando esta situação. As decisões que mantém réus presos sem culpa se transformaram em regularidades burocráticas, sem a necessidade de maiores fundamentações. E os juízes, em geral, mantém réus presos não somente porque acreditam – ao contrário do que dizem estudos científicos e estatísticas – que a solução para a violência social seja o encarceramento, mas porque igualmente sucumbem à pressão dos meios de comunicação.
O Judiciário brasileiro está cada vez mais sensível às demandas punitivistas da opinião “pública”, aos editoriais dos grandes conglomerados de comunicação. É usual que o Judiciário chancele sem maiores problemas a exposição pública, indevida e ilegal de suspeitos em rede de televisão, por exemplo.
De fato, o Judiciário perdeu a exclusividade e o controle sobre o processo criminal que, de um procedimento complexo e burocrático, transformou-se em um acontecimento instantâneo e espetacular. A criminalização pelos meios de comunicação impossibilita o sistema republicano de controle das agências repressivas, pois transforma o processo em notícia, elimina o meio (o devido processo legal) e faz subsistir apenas o fim (a decisão criminalizadora). De fato e “de direito”, a mídia tem controlado os efeitos do processo enquanto espetáculo e, em certos casos, substitui o Judiciário na criminalização.
Nesse sentido, as facções criminosas organizadas são um elemento “funcional” ao sistema repressivo. A existência do PCC e de outras facções justifica a ampliação da repressão, o aumento dos gastos com o encarceramento, e, de forma torta, dá origem ao discurso de que é preciso privatizar para resolver o problema. O caso do massacre no presídio de Manaus é um exato exemplo de como esse discurso é falso.
El nivel de violencia que se vio en Manaos no sólo sorprende por la cantidad de muertos, sino también por la crueldad y el sadismo exhibido. ¿Por qué las bandas sienten la necesidad de llegar a ese nivel de violencia? ¿Es un fenómeno en aumento, que se va agravando, o es algo que ya está sucediendo desde hace tiempo?
A violência do sistema carcerário brasileiro é extrema e medieval. Há pouco tempo, no Estado do Maranhão, flagrou-se no presídio de Pedrinhas um jogo de futebol com a cabeça de um detento. No Espírito Santo, presos eram esquartejados vivos e enterrados em latas de óleo diesel. Ouros eram trancafiados em containers de metal sob calor escaldante. Presas grávidas são submetidas a torturas físicas e psicológicas inimagináveis, inclusive há relato de tortura de recém-nascidos em prisões femininas.
Portanto, é bom que se diga que a violência sistemática, brutal e injustificada que ocorre no país se dá pelas mãos do sistema de encarceramento em massa. O que ocorreu em Manaus foi uma conseqüência do modelo de gestão de segurança pública, que é irracional, caótico, corrupto e violento. Mas esta não é uma novidade no país.
O que está acontecendo – e a situação tende a se agravar – é que o processo de privatização avançou de forma criminosa em vários Estados Brasileiros nas últimas décadas.
Os exemplos mais chocantes são os dos Estados de São Paulo e Minas Gerais. Em São Paulo, a população carcerária pulou de 45.000 detentos em 1995 para mais de 300.000 em 2015. Em Minas Gerais, entre 2005 e 2010, o sistema aumentou de tamanho 417%, indo de 11.000 presos para 56.000. Isto não trouxe nem melhorias para a gestão do sistema, nem qualificação de serviço ou de pessoal. A precarização de um modelo falido simplesmente alcançou a velocidade que só o dinheiro e a corrupção podem dar.
A melhor solução para o sistema carcerário é qualquer uma que não passe pela sua permanência ou ampliação. O problema é que esta decisão política coloca a questão de como o capitalismo irá lidar com populações degradadas e marginalizadas pelo próprio sistema.
Historicamente, por exemplo, o sistema de seguridade social – que controlava financeira e moralmente as populações pobres através de seguro-desemprego, salário mediante estudo ou trabalho, etc. – foi simplesmente substituído pela repressão e pelo encarceramento em massa. É esta a tragédia que nós temos que enfrentar no campo da política, onde as soluções fáceis e rápidas são muito mais tentadoras.