Imagem: Elisa Feres / Sensacionalista / El País
Por Rudolph Hasan*, colunista do Cafezinho
Como um indivíduo comum, pai de família e funcionário da burocracia estatal pode se tornar capaz das maiores brutalidades é o que demonstra Hannah Arendt em seu livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”. No caso, o pano de fundo era a Alemanha Nazista, mas as circunstâncias políticas e sociais que levam a um terreno fértil para massacres já despontam no Brasil de hoje: o machismo, a misoginia, homofobia, racismo e toda forma de discriminação e intolerância agora se expandem e ganham contornos cada vez mais violentos.
Ícone disso foi o recente episódio do massacre em Campinas: a primeira vista pode parecer uma chacina como outras já vistas (e que devemos nos esforçar para não naturalizar), como as motivadas por confrontos entre quadrilhas rivais, provocadas pelo racismo e violência policial, ou até mesmo um crime passional perpetrado por alguém acometido de alguma patologia psiquiátrica, mas a diferença está no conteúdo de gravações e cartas escritas pelo assassino.
Nas transcrições de áudio e nas linhas deixadas pelo técnico de laboratório Sidnei Araújo, constatamos com objetividade as motivações ideológicas do crime. O autor da barbárie demonstra seu ódio às mulheres e politiza sua ação ao extravasar sua intolerância em relação a Lei Maria da Penha (Lei que confere direitos e proteção às mulheres vítimas de violência). Partindo dessas constatações preliminares, podemos afirmar com segurança que tratou-se de feminicídio (assassinato de mulher por razões da condição de sexo feminino), contudo, as palavras do assassino demonstram a extensão de um ódio mais amplo, profundo e sim, político, que tornou-se comum encontrarmos em qualquer mesa de bar ou em editoriais de jornais e TVs.
As palavras do assassino são chocantes pois revelam um discurso cada vez mais recorrente no Brasil. O ódio às mulheres, a aversão às legislações protetivas e de garantias de direitos e a negação da política são a base argumentativa que subsidiaram uma chacina e, ao mesmo tempo, que compõem conversas em mesas de bar, postagens nas redes sociais e cartazes em manifestações. Quem não cansou de ver aquelas cartolinas nas mobilizações do “verde e amarelo” que tratavam a presidenta por “vadia” e outras centenas de adjetivos pejorativos e violentos?
O massacre de Campinas, assim como o assassinato do vendedor ambulante na estação de metrô da capital paulista, estão intimamente ligados e não se tratam de casos isolados de violência, perpetrados por lunáticos ou desequilibrados, como de forma irresponsável e até perversa tratam alguns veículos de comunicação. Imputar aos assassinos do metrô ou ao técnico de laboratório de Campinas a pecha da loucura significa lançar sobre os fatos o manto da invisibilidade, subtraindo dos crimes seu caráter político e suas motivações de ódio. Além disso, a tentativa em atribuir uma patologia psiquiátrica aos criminosos tem por objetivo a isenção da sociedade em relação aos delitos, como se cada difusor do ódio ou reprodutor de intolerância não fosse responsável pelos crimes praticados.
Talvez o fato mais importante que deve ser revelado e debatido sobre os recentes crimes seja seu caráter social e suas motivações políticas e ideológicas. Os agressores e assassinos do metrô, guiados pela homofobia e a intolerância de classe, não espancaram sozinhos o ambulante até a morte, assim como o técnico de laboratório não apertou solitário o gatilho da pistola que usou para matar as 12 pessoas, em sua maioria mulheres, em Campinas.
No metrô de São Paulo a discussão com uma transexual foi o estopim para a violência que seguiu-se, assim como no caso de Campinas uma disputa judicial pela guarda do filho foi a centelha do crime, contudo, nos dois casos, observa-se a incidência prévia do ódio e da intolerância. Tendo por objeto de análise a carta de Sidnei Araújo, constatamos que as fundações do crime cometido já estavam presentes através das concepções de sociedade e política do autor. O mais assustador em toda essa história é que nada, absolutamente nada, do que foi dito pelo assassino soa como novo ou distante de nosso cotidiano. Pessoas comuns, trabalhadores e estudantes, vizinhos, amigos ou parentes, qualquer um poderia ter sido autor da chacina, e essa é a face mais perversa do ódio que de forma vertiginosa vai se espalhando.
A filósofa e cientista política alemã de origem judaica, Hannah Arendt, no livro já citado, descreve suas percepções no decorrer do julgamento de Adolf Eichmann, um conhecido carrasco do regime nazista responsável por milhares de mortes, capturado em 1960 em Buenos Aires e Julgado em Jerusalém. Em seu relato, Arendt demonstra como um homem comum, com emprego e família, pode se tornar capaz das maiores atrocidades. Levando-se em conta uma conjuntura política específica que propiciava a intolerância na Alemanha e a propaganda de ódio fomentada pelo nazismo, indivíduos absolutamente normais foram capazes de cometer crimes, não sendo eles vítimas de doenças psiquiátricas ou qualquer tipo de patologia. A constatação é simples: A violência está na sociedade e pode ser cometida por qualquer um sob qualquer circunstância.
Os atentados cometidos em São Paulo são apenas uma amostra de um conjunto de violências que tem se reproduzido em quantidades cada vez maiores no Brasil.
Se o machismo, a misoginia, homofobia, racismo e toda forma de discriminação e intolerância já faziam parte da sociedade brasileira, agora, por um vasto conjunto de circunstâncias políticas e sociais, parecem ter encontrado terreno fértil para expansão e legitimação. Fica cada vez mais nítido que os avanços e conquistas de grupos vulneráveis alcançados nos últimos anos, apesar de tímidos em alguns sentidos, foram suficientes para gerar a reação daqueles que se pautam no conservadorismo.
Dos meios de comunicação às rodas de bar ou jantares de família onde se reproduzem piadas machistas, discursos racistas ou falas homofóbicas, fica a indelével marca da responsabilidade por cada gota de sangue derramada nos atentados de São Paulo.
*Rudolph Hasan é Bacharel em Ciências Sociais (UERJ), Mestrando em Sociologia (UFF) e Membro do Coletivo Brizolistas Contra o Golpe.
Rachel
05/01/2017 - 00h01
Em qual país se vê chacinas dentro de presídios como as que acontecem no Brasil?
Michel Serres em “A Guerra Mundial” diz que gostamos de matar. É ler para concordar…. infelizmente. Mas , dá para se dar conta de quanto somos bárbaros e nos trabalharmos no sentido contrário.
Para qualquer cura o começo é o reconhecimento da morbidade.
Nícia Adan Bonatti
04/01/2017 - 21h14
Ainda a esse respeito, aguardem o lançamento do livro Diante do Extremo, da Editora da Unesp. No livro,Tzvetán Todorov trata do cenário em que o florescimento do nazismo foi possível. É arrepiante ver que quase todos os quesitos estão presentes na atual sociedade brasileira. É muito triste!
Eduardo Albuquerque
04/01/2017 - 18h13
De onde vem essa vontade de matar tão característica hoje da classe média, a eterna cadela de guarda da eleite, que sem exagero se compara ao nazismo? Da educaçao familiar, das escolas onde os rebentos frequentam, da linguagem e atitudes dos empresários da midia que são a ponta do iceberg da elite.
Miguel Biegai Jr.
04/01/2017 - 18h46
“característica hoje da classe média”… Vc não está generalizando um pouquinho não?
Leonardo Leão
05/01/2017 - 07h19
Generalizar quando a média atinge quase todo o universo analisado faz todo o sentido. Vemos nas ruas essa intolerância e o ódio descarado.
É fato social real!
Neto Carvalho
05/01/2017 - 10h42
Embora o ódio e a intolerância possam manifestar-se em todas as classes sociais, parece que membros da classe média sejam os mais entusiastas portadores dessa condenável bandeira que hoje permeia as relações entre brasileiros. Desse meio social, vieram as maiores manifestações de apoio ao estupro da democracia brasileira.
Miguel Biegai Jr.
05/01/2017 - 18h12
Mas generalizações sempre trazem injustiças.
Danilo Costa
05/01/2017 - 12h28
Da linguagem, em boa parte, que usamos sem perceber. Veja, por exemplo, como vc se refere às características da classe média, usando o termo “cadela de guarda”. Cadela é um termo utilizado de forma pejorativa em xingamentos contra mulheres. Ao usar esse termo nessa outra circunstância, vc o emparelhamento com a idéia pejorativa, reforçando-a. Ou seja, o ódio à mulher que está relacionado ao uso do termo cadela se emparelha à questões políticas, generalizando-se. Essa análise parece bem simples, e é só um exemplo, não uma crítica a vc. Se se interessar, pesquise sobre emparelhamento de estímulos e comportamento respondente na área da psicologia. A coisa é bem séria.
Lorena
06/01/2017 - 15h01
Danilo, vou pesquisar sobre emparelhamento de estímulos e comportamento respondente. Obrigada pela dica.
João Bosco
04/01/2017 - 17h41
Excelente. Vale lembrar que teve o caso do pai que assinou o filho supostamente por este ter uma orientação política diferente da sua. E os disseminadores desse ódio e intolerância que se cuidem, pois a situação pode virar contra eles também.
Dorinha Carvalho
04/01/2017 - 16h24
Ótimo texto!
RitaCandeu #ForaGolpistas
04/01/2017 - 16h14
excelente