Maria Silvia Bastos Marques, presidente do BNDES, vive o dilema de implantar o novo sem falar no antigo. Em artigo, Cristina Chacel disserta sobre os desafios de uma das executiva mais prestigiadas do país em fazer a economia brasileira crescer novamente.
No SINAL
BNDES, no olho do furacão
Por Cristina Chacel
Desde que assumiu a presidência do BNDES, em 1º de junho de 2016, a economista Maria Silvia Bastos Marques é refém de um paradoxo. Executiva das mais prestigiadas do país, perfeita tradução de mulher de sucesso, primeira e única a ocupar a presidência da lendária Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Maria Silvia vive o dilema de implantar o novo sem falar no antigo. Ela veio para mudar. Essas mudanças devolvem ao banco a orientação neoliberal que dominou a instituição nos anos 1990 e são antagônicas à gestão desenvolvimentista de Luciano Coutinho.
Têm sido dias difíceis para todos no BNDES. Ao público externo, seus superiores e interlocutores no governo Temer, a presidente Maria Silvia tem que mostrar coragem e pulso firme na tomada de decisões. Para o público interno, um contingente de 2.855 servidores públicos, 81% deles profissionais de nível superior, administradores, advogados e economistas altamente qualificados, precisa afirmar a nova orientação, sem, contudo, desqualificar a experiência pregressa, da qual eles se orgulham, acenando com a bandeira branca da boa convivência e da cooperação. Compreendese o desconforto em abordar o passado. Procurado, o BNDES preferiu não participar desta reportagem da Por Sinal.
Fogo cruzado
A vida segue, mas o mundo lá fora não tem ajudado. Aqui e ali, ganham espaço crescente na imprensa críticas ferozes à administração do expresidente Luciano Coutinho, sobretudo a partir de 2008, quando o banco serviu como antídoto à crise financeira que desabou sobre o mundo, adotando medidas anticíclicas, ao custo do crescimento da dívida pública. A essas críticas, somaramse as notícias de irregularidades envolvendo a concessão de empréstimos supostamente seletivos a empreiteiras nacionais implicadas na Operação LavaJato, em contratos de exportação de bens e serviços para países do Cone Sul. Da nova diretoria, a massa de empregados esperava uma defesa firme da instituição. “A casa está em chamas”, revelou, numa tarde da primeira semana de outubro, o economista Thiago Mitidieri, presidente da Associação de Funcionários do BNDES. A declaração foi feita dois dias após a publicação de um anúncio de página inteira, nos jornais de grande circulação do país, em que o governo Temer condena a administração Dilma Rousseff e, nos dois últimos parágrafos, atira contra o BNDES.
A propaganda oficial acusa o banco de ter emprestado R$ 8,3 bilhões, entre 2003 e 2013, a juros subsidiados, para a construção de obras de infraestrutura em outros países, em prejuízo do desenvolvimento nacional. Diz que “o Tesouro Nacional se endividou em R$ 323 bilhõespara emprestar dinheiro ao BNDES”, que por sua vez beneficiou majoritariamente empresas de grande porte (mais de 60%) e que o saldo devedor do banco com o Tesouro é superior a R$ 500 bilhões, o equivalente a 10% do PIB.
Os funcionários saíram em defesa do banco. Em nota de 11 parágrafos, as associações dos funcionários do Sistema BNDES, que inclui Finame e BNDESPar, expressaram “perplexidade com os ataques descabidos” e fizeram questão de qualificar a instituição: “As decisões do BNDES são tomadas de forma impessoal e técnica, depois da avaliação de ao menos duas equipes de análise e dois colegiados, num processo que passa pelo exame de pelo menos 50 pessoas.”
Sobre a acusação de que o banco privilegiou os investimentos em infraestrutura no exterior, a nota é clara: “O BNDES tem uma carteira com mais de 300 operações de projectfinance voltados para a infraestrutura nacional. Os desembolsos para infraestrutura entre 2007 e 2015 atingiram quase R$ 600 bilhões, a valores de dezembro de 2015. No ano passado, os desembolsos representaram 40% do total. O financiamento às exportações respondeu por cerca de 4,5% dos desembolsos totais do BNDES. De fato, nunca concorreram com o investimento no Brasil.”
Diante do exposto, a nova diretoria devolveu três parágrafos, nos quais reconhece o desconforto causado pelo anúncio do governo, informa que só soube do mesmo pelos jornais, mostrase compreensiva “que a Casa tenha se sentido atingida neste momento de grande turbulência, em que o BNDES vem sendo citado em reportagens sobre delações e processos de investigação”, e sai em defesa do governo: “O objetivo do anúncio foi expor a grave situação fiscal encontrada pelo atual governo – e não atacar o BNDES.”
Não foi suficiente para acalmar os ânimos dos funcionários. Desde que Maria Silvia e equipe assumiram a diretoria do banco, a situação é tensa. Houve boato de demissões seriam mandados 800 embora, que demorou a ser desmentido. E outubro é o delicado mês de negociação do acordo coletivo de trabalho. Dias depois da troca de notas, o Ministério Público Federal denunciava o expresidente Lula por receber propina para facilitar empréstimos da empreiteira Odebrecht no BNDES.
A diretoria, desta vez, deu uma resposta mais curta, de três linhas, divulgada em cadeia nacional de televisão, informando estar cooperando com as autoridades e comunicando o anúncio, no dia seguinte, de novas regras para os contratos de financiamento às exportações de bens e serviços. A dúvida pairou no ar.
Será que os contratos vigentes são irregulares e estão contaminados de malfeitos? Coube aos funcionários, por meio de suas associações, sair em defesa da instituição, repudiando, em nova nota, “as ilações indevidas feitas na imprensa de que as mudanças anunciadas esta semana pelo BNDES no financiamento às exportações tenham sido motivadas pela identificação de irregularidades em 25 dos 47 contratos dessa carteira”.
A bola da vez?
Esses são apenas exemplos mais recentes do desgaste crescente entre os funcionários e a nova diretoria do BNDES. O ambiente faz precipitar uma indagação: Depois da devassa na Petrobras, será o BNDES a bola da vez? Na berlinda, o banco está desde 2015, quando uma CPI na Câmara Federal investigou e nada encontrou a condenar. Também no ano passado, a instituição foi alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas da União, o TCU. No relatório de 93 páginas, nada se encontra além de apontamentos quanto a procedimentos do banco que poderiam ser aprimorados em nome da transparência e da boa avaliação de projetos. Mas nenhuma irregularidade, efetivamente. O que contribui para um clima de desconfiança.
“O banco é um instrumento estratégico, cumpriu seu papel de governo. A política brasileira de exportação vem da década de 1980. O BNDES começou a apoiar as exportações de bens e serviços de engenharia nos anos 1990. Em 2007, o BNDES herdou as funções da antiga Carteira de Comércio Exterior, a Cacex, do Banco do Brasil, e reativou a linha de financiamento a Angola, dentro da contapetróleo, o que também atendia à política externa do governo Lula, inspirada na tradição da independência diplomática dos anos 1960, inaugurada por San Thiago Dantas”, observa Thiago Mitidieri. Para ele, as relações internacionais não podem ser reguladas pelo mercado. São relações de governo. “Os contratos com
a Venezuela fazem parte das relações do Brasil com o Hemisfério Sul. O mesmo vale para os paísesmembros dos Brics (Rússia, China, Índia e África do Sul). Em operações garantidas pelo Tesouro, o BNDES financia obras nesses países realizadas por empresas brasileiras”, ressalta. A confusão em torno do financiamento às exportações é grande. O comunicado do governo que tanto ofendeu os empregados do banco não ajuda a esclarecer. Difunde a ideia de que essas operações são feitas em detrimento do desenvolvimento do Brasil e ganham tintas incandescentes quando entre os paísesmercado dessas empresas está a indesejável Venezuela e a mítica ilha de Cuba.
“As críticas são muito ruins. Falase que o BNDES financiou o porto de Cuba. Ele não financiou o porto de Cuba. Financiou a exportação de bens e serviços de engenharia brasileira para o porto em Cuba. Uma operação que gera emprego para o Brasil, desembolsada em reais e paga pelo povo cubano. Financiar exportação não tira recursos da infraestrutura interna. Gera divisas e aumenta a capacidade de crescimento. O banco tem operação até muito conservadora. Isso se traduz na inadimplência baixa. O ataque às exportações atinge uma institucionalidade criada nos anos 1990, não foi no governo do PT”, comenta um profissional de administração, com dez anos de casa, que anda submerso, com as barbas de molho.
Os nove anos da gestão Coutinho
A Por Sinal teve acesso a um documento ainda inédito que consolida os resultados obtidos em nove anos de gestão de Luciano Coutinho no BNDES, período entre os anos 2007 e 2015. O documento informa que o banco tem ativos e passivos de longo prazo devidamente alinhados e que seu “desempenho econômicofinanceiro mostra que a missão de apoiar o desenvolvimento demanda sustentabilidade financeira, capaz de resistir a crises severas como a atual”.
Registra, ainda, a rentabilidade das participações societárias, via BNDESPar, cuja carteira acumula R$ 60,2 bilhões, em valor de mercado. E sublinha que os custos fiscais dos aportes do Tesouro entre 2008 e 2014 não só contribuíram para elevar a taxa de investimento e o crescimento da economia, como também podem ser anulados ou superados pelos “benefícios fiscais decorrentes do efeito multiplicador dos investimentos sobre a renda”.
O ano crítico
No capítulo dos Desembolsos, o estudo deixa claro o impacto da crise financeira que abalou o mundo: o número de operações indiretas, que incluem Finame, Cartão BNDES e BNDES Automático, passou de 197,5 mil, em 2007, para mais de 1 milhão, em 2013 e 2014, tendo sofrido queda em 2015. E que as liberações para as micro, pequenas e médias empresas quase triplicaram de 2007 a 2013, tendo sofrido queda expressiva em 2015, ainda que menos forte que a média. Assinala que, excluindo infraestrutura, exportações e setor público, quase metade dos desembolsos do BNDES foi para as MPMEs. A peça, de linhagem desenvolvimentista purosangue, apresenta também um resumo da efetividade e dos resultados da atuação do BNDES nesses nove anos. Atesta que, de 2007 a 2015, os desembolsos do banco “criaram ou mantiveram 24 milhões de empregos. Considerando o total do investimento alavancado, tal indicador foi de 33 milhões.
A geração de empregos foi crescente até 2013, estável em 2014, caindo em 2015”.
Os resultados refletem a análise de Antonio Alves Junior:
“Nesse período em que o BNDES elevou os financiamentos, o comportamento da dívida pública era de estabilidade. Outras coisas contribuem para reduzir. O país financia, tem investimento, tem crescimento do PIB, aumento da arrecadação. E protelou o mergulho na recessão. Se não fosse o setor público, os bancos públicos, que equivalem a 50% do sistema financeiro nacional, nós não teríamos só uma crise de crédito, mas uma crise bancária. Quando os bancos privados contraem crédito, acontecem efeitos recessivos na economia.”
O Estado e o mercado
A chegada da nova diretoria, composta por executivos de mercado adeptos da doutrina neoliberal, faz emergir o velho debate sobre o papel do Estado – e do BNDES – na indução do desenvolvimento e do crescimento econômico. Dez entre dez economistas da instituição sabem como dois mais dois são quatro, que tudo o que se decidir, sob a nova direção, atenderá ao princípio menos Estado, mais mercado. Privatizações e concessões de serviços públicos voltaram à pauta.
“O BNDES é uma instituição do Estado. Quando foi chamado a fazer as privatizações, ele fez. O projeto deles é reduzir o banco, diminuir. A visão deles é a de que o banco atrapalha o mercado de capitais, de que basta tirar o banco para os negócios florescerem. Parte da atual administração entende que o banco não deveria sequer existir”, dispara um desses economistas.
Professor de Macroeconomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o economista Antonio José Alves Junior acompanha de perto o BNDES desde 2004, sempre de mirantes privilegiados. Desde então e nesta ordem, chefiou a Assessoria Econômica de Guido Mantega no Ministério do Planejamento, a Assessoria Econômica de Dilma Rousseff na Casa Civil e o escritório do BNDES em Brasília, que atende pelo nome de Departamento de Relações com o Governo (Dereg). De 2013 a 2015, assessorou diretamente Luciano Coutinho na presidência do banco, no Rio. De seu campo de visão, ele resume em três metas o que pensa ser o papel de um banco público de desenvolvimento:
1) Cumprir atividades comuns de uma economia de mercado que o setor privado não cumpre, caso dos empréstimos de longo prazo para indução do desenvolvimento econômico.
2) Cumprir atividades fundamentais para a indução do desenvolvimento, ligadas às transformações do país, que são de alto risco e retorno incerto caso do financiamento à inovação.
3) Cumprir uma função que o setor privado normalmente cumpre, mas que por alguma razão deixa de cumprir – caso das medidas anticíclicas adotadas a partir de 2008, para enfrentar um momento de crise econômica.
Marcelo Miterhof é economista de carreira do banco há quase 15 anos. Foi aluno de Luciano Coutinho na Unicamp, e nos últimos anos o assessorou no BNDES. De 2012 a 2015, ganhou notoriedade com uma coluna semanal na Folha de S.Paulo. Didático, ele explica por que há uma falsa dicotomia entre Estado e mercado, não sem salientar que esta é uma opinião sua e não, necessariamente, do BNDES:
“Tem gente que acredita que o mercado é capaz de resolver tudo. Essa é uma ideia platônica, uma idealização. A ’mão invisível’ do mercado não tem correspondência com a realidade, é algo de um realismo fantástico. Mas ela é traduzida pelo princípio de Bernard Mandeville, de que vícios privados correspondem a benefícios públicos. Faça o melhor pra você, que será o melhor pra todo mundo. Essa máxima só seria verdadeira se a competição fosse capaz de dar conta não só da busca pela eficiência, mas também daquilo que é típico da cooperação, que é a proteção social e a sobrevivência.”
Miterhof cita estudo de Mariana Mazucto, da Universidade de Sussex, Inglaterra, que fala de encontros do Estado com o mercado que resultaram em inovação e transformação para o mundo contemporâneo:
“O algoritmo do Google foi desenvolvido com gastos da Defesa do governo americano. O GPS idem. A internet idem. O protocolo da internet é de 1974. Levou dez anos para se tornar real e outros dez para se tornar comercial. Então, como você sustenta esses 20 anos, até gerar dinheiro? Por exemplo, com compras públicas, que diluem o risco da inovação por todo o mundo. E, quando não é imposto, é banco público. É preciso não perder de vista que os mercados não são obras da natureza. São obras de empresas e seus governos. A questão é qual o balanço adequado entre competição e cooperação, entre mercado e Estado.”
FATOS E VERSÕES
Entre as principais críticas à gestão de Luciano Coutinho no BNDES estão as medidas anticíclicas. O ano era o de 2008. A crise financeira internacional asfixia o mercado de crédito no mundo inteiro. O Brasil não está imune à epidemia. Os bancos privados se retraem e as torneiras secam. O dinheiro some do mercado.
Em uma decisão de política econômica, o governo faz do BNDES seu principal agente de crédito, encarregado de manter a economia ativa. Sem fundos para tanto, o BNDES passa a receber recursos do Tesouro. Sem receita fiscal para tanto, o Tesouro emite títulos da dívida pública. Capta dinheiro caro, à taxa básica anual, a Selic, que depois de mais de um ano estacionada em 14,25% caiu 25 pontos percentuais, e repassa para o BNDES emprestar pela TJLP, a Taxa de Juros de Longo Prazo, de 7,5%, ou a excepcionais 2,5%, caso dos empréstimos enquadrados no Programa de Sustentação de Investimentos, o PSI.
A diferença entre o dinheiro comprado caro e vendido barato é o que se costuma chamar de subsídio. De 2008 a 2014, o Tesouro repassou R$ 420 bilhões ao BNDES. O que o país ganhou com isso? O professor Antonio Alves Junior responde:
“A economia estava lutando contra consequências graves da maior crise econômica a que o mundo já assistiu. Muito maior que a de 1930. A crise de 2008 começou mais violenta, com a desvalorização dos ativos e a ameaça de quebra de grandes instituições financeiras. No mundo inteiro, houve movimento contracíclico de compensação, para salvar o sistema financeiro. Senão ia ser uma quebradeira geral. No Brasil, quase por razões acidentais, como nosso sistema financeiro privado não opera em economia globalizada e não financia a longo prazo e o mercado de capitais é ainda incipiente, não sofremos o impacto da crise da mesma forma que a Europa. Mas do dia para a noite vimos as torneiras se fecharem, os preços de commodities como petróleo, carne, ferro e soja despencarem, o financiamento externo secar. O nosso sistema bancário se retraiu fortemente. Não fosse o peso do setor público, teríamos uma crise de crédito sem precedentes no país.”
Ao olhar mais ligeiro, da aritmética básica, o que o governo fez foi financiar o desenvolvimento à custa do endividamento. Mas para os economistas da escola desenvolvimentista, da qual Luciano Continho é um dos expoentes, a operação faz todo o sentido. Durante depoimento na CPI da Petrobras, o próprio Coutinho admitiu que pode ter havido um erro de dose na taxa do PSI. Fosse algo mais alta, exigiria menos equalização e menos empréstimo do Tesouro. Mas não houve erro de direção. Miterhof concorda:
“O crescimento do BNDES foi uma importante arma para a gestão da política econômica durante um longo tempo. O Brasil tem o problema de juros altos e restrição de crédito, mas mesmo que não tivesse, inclusive nos países desenvolvidos, o mercado não consegue ser plenamente eficiente para fornecer crédito de longo prazo necessário ao investimento em infraestrutura. Os Estados Unidos, que têm o mercado de capitais mais profundo, têm déficit de infraestrutura. A institucionalidade com bancos públicos é positiva para contrabalançar os soluços e as dificuldades de assumir risco do setor privado.”
O economista Antonio Alves Junior acrescenta:
“Há mais fumaça que fogo, quando falam em crise da dívida pública ligada ao setor bancário e à ausência de lastro. Quando você olha os números, vê uma certa estabilidade da dívida pública.
Nossa dívida pública sai do controle para valer em 2015, no primeiro ano do governo da Dilma, quando o Joaquim Levy começa a política da austeridade e a arrecadação tributária desaba. Ele derrubou o investimento público. Teve um efeito recessivo forte. E, curiosamente, essas medidas não sanearam.”
O Tribunal de Contas da União enxerga o mundo de outro mirante. Por meio de seu vicepresidente, ministro Raimundo Carreiro, propôs que o BNDES devolvesse R$ 100 bilhões aos cofres do Tesouro. Disse ele ao Portal do TCU: “Os empréstimos totalizaram cerca de R$ 500 bilhões, tendo sido autorizados pelo Ministério da Fazenda por meio de emissão direta de títulos públicos ao BNDES. Assim, há controvérsias perante a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), tanto sobre a legalidade dessas injeções de recursos do governo federal no banco quanto sobre a devolução ora anunciada.” O BNDES está disposto a realizar a devolução antecipada, mas esbarra no artigo 37 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que veda a antecipação. Mas o simples fato de se dispor a antecipar é prova, segundo Thiago Mitidieri, de que o banco goza de boa saúde financeira, tem liquidez. Mitidieri é um técnico. Trabalha no banco desde 2008. E não esconde críticas à administração anterior:
“O BNDES cresceu muito, a meta era desembolso. Perdeu qualidade. Nossa questão é trabalhar com planejamento e o motor do crescimento não foi planejado. Falta ao Brasil um projeto de país.”
FELIPE REZENDE | PROFESSOR DA HOBART AND WILLIAM SMITH COLLEGES
“VIVEMOS UMA HISTERIA FISCAL”
O economista Felipe Rezende é um craque em dívida pública. Mestre e doutor pela University of MissouriKansas City, ele é discípulo e seguidor das teorias fundadas por Hymam Minsky, influente economista póskeynesiano, morto em 1996, conhecido por seus estudos sobre crises financeiras. Há dez anos ele vive nos Estados Unidos, os últimos seis como professor da Hobart and William Smith Colleges, de Nova York. É de lá que ele olha o mundo, como um todo, e o Brasil, em particular.
Associado ao Minds Institute, Felipe coordena há três anos pesquisa financiada pela Fundação Ford, que tem por finalidade identificar as fontes de fragilidade financeira da economia brasileira e as razões da concentração dos bancos privados do país no mercado de curto prazo. Com a autoridade de quem estuda dívida pública e acompanha as taxas de juros nos principais mercados do mundo, diariamente, ele adverte:
“Vivemos no Brasil uma histeria fiscal injustificável. De 2007 a 2014, a dívida pública do Japão aumentou de 183% para 246% do PIB. No mesmo recorte de tempo, nos Estados Unidos, subiu de 64% para 105% do PIB. E no Reino Unido, em igual período, o comprometimento foi de 44% para 89% do PIB. Esses dados, coletados pelo FMI, refletem o desempenho de países em crise. Vários países tiveram déficits nominais de cerca de 10% do PIB, nos últimos 15 anos, e apresentaram elevação da dívida pública em decorrência de diferentes fatores.”
O aumento do endividamento, como exposto, não é exclusividade do Brasil, continua Felipe Rezende: “Não é jabuticaba. O Brasil apresentou resultados primários positivos por mais de uma década, até 2013. Em 2014, a balança entre receita e despesa, onde não entram os juros da dívida pública, ficou negativa em 32,5 bilhões, o equivalente a 0,57% do PIB. Em 2015, com o quadro de recessão já configurado, o déficit primário negativo saltou para 111,2 bilhões, ou 1,88% do PIB, refletindo o ciclo de queda da atividade econômica, com produção baixa, menos arrecadação tributária, desemprego e custos sociais, sensíveis ao ciclo econômico. Em um recorte de tempo acrescido de um ano, em relação ao período registrado pelo FMI, de 2007 a 2015, a dívida pública brasileira cresceu 15%. De 56,7% para 66,2% do PIB.”
Rezende observa que há uma disputa entre analistas da cena econômica sobre o uso, muito comum no mercado, do resultado da dívida pública como indicador de solvência de um país. Ele diz que não se pode comparar um país como o Brasil, que é emissor de moeda, a um país usuário de moeda, sem soberania, caso da Grécia. Contesta a tese, em voga no Brasil, de que as contas públicas estão fora de controle por erros da matriz econômica, que empurraram o país para uma crise fiscal que foge ao alcance da política monetária no combate à inflação.
COMBINAÇÃO EXPLOSIVA
Por este entendimento, o remédio para os males da nossa economia é antes de tudo um severo ajuste fiscal, que teria por consequência o aumento dos índices de confiança, a queda dos juros e a redução do custo médio da dívida e do déficit nominal, que inclui o resultado primário e os juros nominais, e que em 2015 bateu a casa dos 10,34% do PIB. Rezende argumenta:
“Um aperto fiscal em uma recessão só piora as coisas. A combinação da austeridade fiscal com juros altos aumenta a desigualdade, reduzindo a renda dos mais pobres e elevando os rendimentos dos mais ricos. Provocam distorções no setor produtivo, inviabilizam investimentos, aumentam a inadimplência e agravam o desemprego. Os dados confirmam que o déficit primário no Brasil não resulta do descontrole das contas públicas, mas da recessão.” Na prova dos nove, Felipe Rezende observa que a dívida pública brasileira, hoje, corresponde a 70% do PIB. Deste montante, 9% são transferências de títulos públicos para os bancos públicos e 20% são aquisições de dólar para compor as reservas internacionais. Ou seja, arredondando, para facilitar o entendimento, essas duas linhas operacionais respondem por 30% da dívida bruta, indicando um endividamento real, efetivamente oriundo dos gastos públicos, de 40% do PIB.
“Isso quer dizer tãosomente que a dívida pública brasileira, de 40% do PIB, está em linha com a de países que têm algum grau de investimento. Tratase de um patamar aceitável”, pondera
PONTE PARA O FUTURO
Muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte até o BNDES consolidar sua nova identidade, que ainda não se pode enxergar a olho nu. As cartas de princípios já foram postas na mesa. Menos Estado, mais mercado é o pilar desses princípios. Os desafios são muitos, e muitas perguntas ficaram sem resposta. A nova diretoria anunciou a revisão de contratos em vigor, a possibilidade de suspensão de alguns deles, e maior rigor na análise dos projetos, que não serão mais considerados à luz apenas da parte financiada, mas como um todo.
A decisão de acabar com os empréstimosponte surpreendeu os técnicos da Casa. Esse tipo de desembolso é uma antecipação de curto prazo, feita a juros mais altos e garantias maiores, para viabilizar a partida do empreendimento enquanto não estão concluídas as análises de longo prazo, que levam tempo. Sem a ponte, o empreendimento atrasa.
Ao que se comenta nos corredores do BNDES, a expectativa da nova diretoria é de que o mercado privado preencha esta lacuna. Bem coerente com o princípio menos Estado, mais mercado. Vozes desses corredores do banco acham que se trata de uma ilusão imaginar que no fundo do poço de uma recessão, o setor privado, cuja cultura é do curto prazo, vá investir em obras de alto risco e longo período de maturação. Quem viver verá. Com o país mergulhado em denúncias de corrupção e em uma crise política que só traz mais incertezas, é difícil imaginar qual modelo de desenvolvimento será adotado daqui para frente, em especial na área de infraestrutura, um setor oligopolizado, concentrado em meia dúzia de empreiteiras, todas elas implicadas na Operação LavaJato e que, por esta razão, estão impedidas de participar de novas obras públicas. O Brasil vai parar de crescer? Quem ocupará este mercado milionário de dimensões continentais? A resposta mais rasa é de que serão empresas estrangeiras. Quem viver verá.
Com o país mergulhado em denúncias de corrupção e em uma crise política que só traz mais incertezas, é difícil imaginar qual modelo de desenvolvimento será adotado daqui para frente, em especial na área de infraestrutura, um setor oligopolizado, concentrado em meia dúzia de empreiteiras, todas elas implicadas na Operação LavaJato e que, por esta razão, estão impedidas de participar de novas obras públicas. O Brasil vai parar de crescer? Quem ocupará este mercado milionário de dimensões continentais? A resposta mais rasa é de que serão empresas estrangeiras. Quem viver verá.
MARCELO MITERHOF | ECONOMISTA DO BNDES
“UM BANCO PÚBLICO SINGULAR”
Não haveria nada de diferente no BNDES em relação aos demais bancos de desenvolvimento espalhados pelo mundo, não fosse uma prática popular e peculiar do Brasil que atende pelo nome de juros altos. Em análise comparativa da instituição com suas congêneres no exterior, Marcelo Miterhof conclui que a singularidade do BNDES, aquilo que só ele faz, está na sua função de atenuar o que ele chama de falha macroeconômica estrutural, fornecendo crédito de longo prazo em reais a taxas compatíveis à rentabilidade e à maturação dos projetos de desenvolvimento.
“O Brasil tem uma economia de restrição de crédito. Se a gente olha a carteira do BNDES em relação ao PIB do Brasil, vai ver que ela está em linha, mas um pouco abaixo dos outros bancos. O KfW, da Alemanha, um dos países mais eficientes do mundo, tem uma carteira maior em relação ao PIB. O banco da China, a maior potência emergente do planeta, a mesma coisa. Mas quando se fala em participação dos bancos no estoque de crédito total do país, o quadro muda. O BNDES tem um papel singular. Tem uma proporção no crédito muito maior que a dos outros bancos”, analisa o economista.
Ele ilustra a sua análise com números expressivos. A carteira do KfW equivale a 13,7% do PIB alemão, mas sua participação no mercado de crédito é de 12,6%. O CDB da China tem 12,5% no PIB e 7,4% no estoque de crédito. Já o BNDES, com 11,8% do PIB, quase dobra sua participação quando comparada ao estoque de crédito ofertado no país – 21,7%. Isso acontece porque o crédito total oferecido nesses países é maior que o PIB, mais de 100%, enquanto que no Brasil é muito menor, está na casa dos 50%, porque as taxas de juros são muito altas.
“O BNDES tem essa participação singular no crédito porque corrige uma falha macroeconômica estrutural que é a alta taxa de juros. O que o BNDES faz é fixar prazos e um patamar de juros minimamente compatíveis aos praticados no mundo, e com prazos de maturação e o retorno esperado dos projetos.”
PADRÃO MUNDIAL
Enquanto a Selic está no patamar de 14%, a TJLP, praticada nos empréstimos do BNDES, acompanha, grosso modo, o IPCA, de modo a oferecer uma taxa de juros real zero, que é o padrão mundial. Assim, o investimento no Brasil não é prejudicado por um custo demasiado elevado. Mas essa diferença é o que se chama de subsídio. Miterhof questiona: “A diferença entre a Selic e a TJLP parece sugerir que há um subsídio. Mas onde está o subsídio? Na Selic ou na TJLP? No senso comum, o subsídio está na TJLP. Eu tenho as minhas dúvidas. Nem uma nem outra são taxas de mercado. Ambas são fixadas pela equipe econômica. A Selic, pelo Banco Central e a TJLP, pelo Comitê Monetário Nacional. Ambas são taxas de governo, da equipe econômica, da autoridade monetária, instrumentos de política econômica.”
O fato de não representar subsídio, no entendimento de Miterhof, não significa que a TJLP não tenha um custo fiscal. Em 2008, com a crise internacional, a fonte constitucional do BNDES, que é o montante equivalente a 40% do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), já não provia recursos suficientes para dar conta da demanda de investimento do país.
Os números confirmam. A taxa de investimento, de 2000 a 2007, representou 17% do PIB – aumentando. De 2008 a 2014 – que é o período que o BNDES recebe empréstimos do Tesouro, ela bateu a casa dos 20% do PIB, um crescimento de três pontos percentuais. Por isso, o BNDES precisou de mais dinheiro para sustentar o financiamento dos investimentos.
“O debate, do ponto de vista liberal, é dizer que o Brasil tem juros altos por causa do BNDES, porque o BNDES entope os canais de transmissão da política monetária, tira parte do crédito do alcance da Selic. Ao mesmo tempo, argumentam que o BNDES seleciona os melhores clientes, e o mercado, ficando com os piores, tem que cobrar mais. Tratase de uma contradição. Se o BNDES é seletivo, não entope”, conclui Miterhof.