Espiando o poder: análise diária da grande imprensa
Foto: Marlene Bergamo/Folhapress
Por Luis Edmundo Araujo, colunista do Cafezinho
A foto acima é a de maior destaque da primeira página da Folha de São Paulo de hoje. Mostra legítimos representantes do povo brasileiro revoltados, ameaçadores, furiosos como já ficaram povos de outros países por causa de medidas econômicas até menos nocivas aos pobres, aos trabalhadores em geral, aposentados ou estudantes do que estas que vêm sendo aprovadas pelo Congresso brasileiro. Mas não se trata disso na imagem, não por aqui, ainda.
Ao lado da violência destacada toda em maiúsculas, em azul, a Folha informa na legenda da foto que “a polícia prendeu nesta quarta (28) o segundo homem que espancou até a morte um vendedor no metrô”. A informação de que “de acordo com testemunhas, o ambulante Luiz Carlos Ruas foi agredido ao tentar defender moradoras de rua travestis que estavam sendo atacados pela dupla”, surge somente no quinto parágrafo da matéria lá dentro, não na capa onde o jornal conta ainda que “autoridades preveem segurança especial para os assassinos confessos Alípio Santos e Ricardo Martins”. E mais nada sobre o assunto que vai embaixo da manchete, sobre o mesmo tema, aliás, que as principais notícias do Estado de São Paulo e também do Globo.
“Temer veta ajuda a Estados falidos sem contrapartida”, diz a manchete do Estadão. Dentro do texto da chamada, em vermelho, o jornal avisa que “no Rio, alívio seria de R$ 26 bi”, citando o secretário da Fazenda do estado, Gustavo Barbosa, e no jornal carioca a situação parece oposta, primeiro porque o título é mais brando, sem vetos nem coisa parecida. “Governo costura alívio emergencial para estados”, afirma a manchete do Globo. No subtítulo, o Rio que perdeu R$ 26 bi com a decisão, segundo o Estadão, “estará entre os beneficiados”.
“O presidente Michel Temer encomendou à equipe econômica medidas emergenciais que deem fôlego aos estados em situação crítica, como o Rio. Ele vetou o regime de recuperação fiscal, que concedia moratória de três anos da dívida, e só apresentará novo texto em fevereiro”, começa dizendo o texto da capa do Globo, bem em cima da chamada para o editorial principal do jornal, em que “contrapartidas de estados são essenciais”. “Adotar um teto para o total das despesas, como aprovado para a União, suspender reajustes salariais, elevar a contribuição previdenciária etc. é o mínimo que a gravidade da crise exige”, conclui o jornal carioca, na última frase do editorial.
Também com chamada na capa, mas no lugar de sempre, o editorial do Estadão, “Um veto à irresponsabilidade”, diz no pé da página que “socorrer estados semifalidos sem cobrar contrapartidas é prêmio à irresponsabilidade”, bem abaixo da chamada na altura da manchete, afirmando no título que “para agradar a base, governo deve liberar R$ 7,3 bilhões”. “Deste total, R$ 6,45 bilhões correspondem a emendas impositivas (obrigatórias) e restos a pagar desde 2007 e outros R$ 840 milhões àquelas de bancada”, completa o jornal no texto da chamada.
“Com isso, o presidente Michel Temer tenta criar uma agenda positiva após vetar a decisão da Câmara de derrubar as contrapartidas que Estados precisam cumprir para a recuperação fiscal, no projeto de renegociação das dívidas”, continua o Estadão, voltando ao tema sobre o qual Merval Pereira falará, seguindo aviso do Globo na capa. “Alternativa ao caos” é o título da coluna que abre falando que “o governo Temer preferiu criar uma solução compartilhada na renegociação da dívida dos estados a dar uma lição pedagógica aos governadores que não fizeram seus deveres de casa, e cujos governos encontram-se em situação falimentar”.
Merval apoia, claro, as medidas, assim como seus patrões, e os de toda a grande mídia, mas não deixa de alertar que “ao insistir em que a Câmara defina as contrapartidas a que estarão submetidos os estados necessitados, o governo está criando um obstáculo para sua base aliada, talvez insuperável”. “A derrubada das contrapartidas no projeto original não foi, como pode parecer à primeira vista, uma ajuda aos governos estaduais”, afirma o colunista.
“Ao contrário, foi uma demonstração de que a maioria dos deputados federais, por motivos diversos, queria que os governadores assumissem as restrições”, continua ele, que no fim do texto diz que “desta vez, o governo parece querer definir até que ponto está disposto a negociar, e até onde os parlamentares podem impor suas opiniões contra o projeto econômico do governo.” “Assim como o governo Temer, fortemente congressual, depende de apoio parlamentar, também a base aliada precisa que o projeto econômico do governo seja crível para que ele se mantenha como uma alternativa viável ao caos”, conclui Merval.
Sem chamada na capa da Folha, por sua vez, Jânio de Freitas trata do mesmo assunto, sob outro ponto de vista. O título de seu artigo de hoje é “Sonho autoritário” e nele o jornalista começa dizendo que “já não bastam a incompetência e o final de ano com resultados econômicos e sociais opostos ao prometido”. “Michel Temer e seu governo agora querem ser também autoritários. Derrotados nas pretendidas imposições aos Estados em grave situação financeira, todas substituídas no Congresso por um projeto de recuperação, o ministro Henrique Meirelles decidiu e o presidente Michel Temer adotou a continuidade das exigências derrubadas”, afirma Jânio.
Segundo ele, “sob a falsa denominação de ‘contrapartidas’ às providências federais, o governo quer impor aos Estados uma reprodução do retrógrado ‘ajuste fiscal’ que é o seu programa econômico”. O jornalista afirma ainda que “para os Estados, porém, não é só uma exigência de medidas reacionárias. A ‘ contrapartida’ é, de fato, uma intervenção branca do governo federal na administração estadual”, diz ele, para concluir em seguida que “nem o centralismo monstruosamente deformante poderia legitimar uma intromissão do poder central no que compete à autonomia de cada parte federada”.
Em comum, hoje, os textos de Jânio de Freitas e de Merval Pereira têm o fato de terem sido publicados na página ao lado do anúncio de página inteira do governo federal destinado à mídia amiga, que mereceu os comentário de Fernando Brito no Tijolaço, no texto cujo título diz que “o Haagen Dazs de Temer para a mídia no reveillon é a cara do dono”, e que abre afirmando que “o gasto de milhão e meio de reais da licitação da despensa do avião presidencial é nada perto do gasto feito hoje pelo Governo Michel Temer com a página inteira que veicula nos grandes jornais do Brasil.”
“Numa avaliação bem modesta, é coisa de 10 vezes mais, a depender de quantos jornais possam ter recebido o mimo”, calcula Brito, para quem “a marotagem da peça começa no título”. “Temer faz ‘apenas’ 120 dias de Governo, embora o usurpador esteja no poder há 200, desde que afastaram Dilma. E, neste período de formal interinidade, em nada se acanhou de fazer e desfazer, como ficou claro ao mandar ao Congresso uma emenda garroteando as verbas de Saúde, Educação e Assistência Social por nada menos que 20 anos, cinco mandatos presidenciais”, afirma o jornalista.
Fernando Brito diz ainda que a peça publicitária de Temer é “incapaz daquele mínimo que se esperaria de quem for falar do momento que vive o Brasil para que possa ter credibilidade: reconhecer que vivemos uma crise”. E ao concluir seu texto ressalta que “nem é obter credibilidade o objetivo do anúncio. É só um Haagen Dazs para a mídia, que precisa de um refresco no bolso neste calorão da crise”. E na Folha, hoje, Vinicius Torres Freire fala também do sorvete em seu artigo, afirmando que “lista de compras do avião da Presidência causa surto de populismo jeca e debate ignorante”
O título do texto, “a besteira do brioche do Temer”, não deixa de remeter à revolução francesa, à Maria Antonieta e à frase a ela atribuída. E olhando de novo a foto lá em cima, o ódio do povo direcionado à barbárie, contido, pode-se imaginar as razões de ser difícil, quase impossível aqui no Brasil a explosão de fúria em massa contra medidas econômicas tão amplamente defendidas por uma mídia regiamente abastecida. Ainda mais se no mesmo dia em que o Valor diz na manchete que Novos prefeitos assumem sob risco de colapso fiscal”, Míriam Leitão, no Globo, surge com a boa notícia.
“Alívio na inflação” é o título da coluna em que Míriam afirma que “uma das poucas boas notícias deste fim de ano é a da inflação no espaço de flutuação da meta, o que significa uma queda de mais de quatro pontos percentuais em um ano”. De maneira muito rápida, sutil, a colunista reconhece lá no meio do texto que a inflação “caiu a golpes de recessão” e lembra que “as projeções de crescimento da dívida bruta do governo mostram uma trajetória insustentável, e sem reformas o país poderá passar por uma nova crise de confiança”.
Nada que tire o otimismo da colunista ao concluir seu texto afirmando que “depois de encarar sete trimestres seguidos de recessão e uma inflação acima de 10%, a diminuição do ritmo de reajuste dos preços está sendo, sem dúvida, uma boa notícia”, sem antes deixar de dizer que “para o consumidor a queda da renda, o ambiente recessivo e o desemprego vão manter o desconforto econômico. E janeiro costuma ser mês de inflação alta”.