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2016 e o golpe midiático: a narrativa que sustentou o impeachment

O monopólio da mídia e do discurso público foram um dos alicerces mais fortes entre o conjunto de fatores que levaram a queda de Dilma Rousseff da presidência da república. Em entrevista,  membros do FNDC falam sobre o papel da imprensa privada no golpe e o cerceamento à liberdade de expressão em curso no país. No FNDC […]

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O monopólio da mídia e do discurso público foram um dos alicerces mais fortes entre o conjunto de fatores que levaram a queda de Dilma Rousseff da presidência da república. Em entrevista,  membros do FNDC falam sobre o papel da imprensa privada no golpe e o cerceamento à liberdade de expressão em curso no país.

No FNDC

2016 consolidou escalada da narrativa golpista na mídia privada 

Em entrevista, cinco dos sete membros da Coordenação Executiva do FNDC falam sobre o papel da mídia privada no golpe e o cerceamento à liberdade de expressão em curso no país

Por Elizângela Araújo

Se o golpe que depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff trouxe retrocessos para o conjunto da população brasileira, no campo da luta pela democratização da comunicação não foi diferente. A mídia privada, que monopoliza a agenda e o discurso público, foi um dos pilares mais fortes do processo que destituiu o governo democraticamente eleito. A partir dessa ruptura, instalou-se também uma escalada de violações à liberdade de expressão: a classe trabalhadora e os estudantes têm sido violentamente reprimidos pelas polícias militares e até pelo Exército por ousarem denunciar as consequências do golpe.

Além da tentativa de calar as vozes dissonantes nas ruas, o golpe também tem promovido perseguição a organizações do movimento social por meio de ações judiciais e de invasões violentas, como a que aconteceu na Escola Nacional Florestan Fernandes no início de novembro; além de punir jornalistas e blogueiros com cortes de verbas publicitárias oficiais por critérios unicamente ideológicos. Diante dessa conjuntura, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação precisou reavaliar sua atuação, deixando de lado uma agenda propositiva que vinha sendo articulada nos últimos anos para denunciar a escalada da violação à liberdade de expressão no país.

Para comentar esse processo, entrevistamos o coletivo que compõe a Coordenação Executiva do Fórum. Renata Mielli, coordenadora geral; Bia Barbosa, Secretária de Comunicação; Israel do Vale, secretário de Finanças; Alan Carvalho, secretário de Formação; e Roni Barbosa, secretário de Organização, entendem como fundamental denunciar a centralidade da mídia privada no processo de ruptura democrática e denunciar o Estado de exceção que se instalou desde então. Acompanhe.

– 2016 vai entrar para a história como um ano de ruptura e avanço do conservadorismo na política brasileira. Como analisar a atuação da mídia na articulação desse episódio?

Renata Mielli – Os meios de comunicação privados hegemônicos tiveram um papel central golpe. Desde o início adotaram uma postura de enfrentamento contra os governos do PT. Contrários a políticas de distribuição de renda, tratavam as medidas adotadas como paternalismo, “política de esquerda”, e procurando deslegitimar esses governos com o discurso da corrupção, como se nunca tivesse havido corrupção no Brasil e isso fosse uma novidade inaugurada pelos governos do PT. Esse discurso foi se intensificando cada vez mais e culminou no processo de ruptura democrática que levou ao golpe.

Alan Carvalho – A desestruturação da EBC, a reforma do ensino médio, a Lei da Mordaça, enfim, são manifestações de um governo ilegítimo, que procura atacar as forças progressistas que lutaram nos últimos anos por mudanças sociais profundas. Então, o ataque contra a liberdade de expressão e a criminalização dos movimentos sociais está no bojo desse movimento conservador, antipopular, antidemocrático e que culmina com as ações desse governo absolutamente conservador, reacionário, que procura por todos os meios reduzir os direitos sociais, grande parte deles garantidos pela Constituição Federal, implementando uma pauta neoliberal que tem dois pilares fundamentais: destruir os direitos sociais e elevar o grau de repressão. O que temos observado nas manifstaçoes das forças democráticas no Brasil é que há um elevado grau de repressão, de caráter até fascistóide. E a mídia comercial tem sido protagonista na construção da narrativa criminalizante.

– Houve um momento propício à discussão da regulação da mídia nesses anos em que tivemos um governo de centro-esquerda?

Renata Mielli – Acho que o melhor momento de correlação de forças da sociedade para iniciar uma discussão sobre democratização da mídia foi o segundo mandato do Lula. Ele tinha maioria no Congresso Nacional, altos índices de aprovação, tinha força política. A mídia privada é beneficiada com concessões públicas e com a concentração que lhes permite ter domínio do discurso público na sociedade. Temos um cenário de oligopólio privado e não interessa a ele debater a modernização da legislação sobre comunicação. Não aceitam que é preciso haver uma comunicação pública. A mídia privada se baseia na venda dos anúncios publicitários, portanto, temas que não são de interesse publicitário não têm interesse na mídia privada. Ela tira espaço na mídia estatal para divulgação das ações do Estado. Quando setores que historicamente lutam por democratização nas comunicações realizaram a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), a intenção era justamente debater os monopólios desses meios privados, que têm muito poder e acabam centralizando o discurso e a agenda política nacional. Naquele momento, no entanto, o governo alimentava a ilusão de que poderia implantar uma agenda de desenvolvimento com o apoio da mídia, que tem laços com o capital privado e financeiro. Num segundo momento, quando percebeu que já não era possível, se sentiu acovardado diante do poder. Num terceiro momento, já no governo Dilma, a correlação de forças na política e na sociedade já havia se alterado muitíssimo contra as bandeiras progressistas e a agenda conservadora já dominada a sociedade.

– Essa conjuntura forçou o FNDC a alterar sua agenda de luta e lançar a campanha Calar Jamais!

Renata Mielli – Isso mesmo. Até antes do golpe, a principal agenda do FNDC foi a pressão pela necessidade de o Brasil enfrentar a discussão de um novo marco legal das comunicações que fortalecesse a comunicação pública, a comunicação comunitária, que permitisse que novos agentes pudessem disputar o campo público. Tínhamos uma agenda propositiva. O Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática surgiu disso. Com o golpe, não fazia mais sentido manter uma agenda de pressão sobre um governo que não reconhecemos, que rompeu com o Estado Democrático de Direito, que rasgou a Constituição, que não foi eleito pelo voto popular. Tivemos um retrocesso democrático.

Saímos de 2016 e fomos para o período pré-Constituição, num cenário no qual a mídia passou a apoiar completamente o governo golpista, deixando de lado qualquer compromisso com a liberdade de expressão, calando vozes dissonantes para fazer com que a sociedade acredite que o golpe ocorreu dentro da legalidade. Houve uma escalada da censura à liberdade de expressão, ações judiciais contra sites e blogueiros, verbas publicitárias suspensas por critério político e ideológico, o que é vedado pela Constituição e caracteriza cerceamento à liberdade de expressão e ao livre pensamento.

As reações contra o golpe e as políticas que se seguiram, como a PEC 55 e a reforma do ensino médio, por exemplo, foram violentamente reprimidas. Jornalistas e comunicadores sociais agredidos, presos, pessoas sofrendo violência policial por estarem se manifestando nas ruas, tudo isso nos colocou diante do desafio de alterar a agenda de luta do FNDC. A bandeira de um novo marco legal para as comunicações tornou-se inócua, por isso, optamos por mostrar para a sociedade que estamos sofrendo violação desse direito, incitando-a a denunciar isso e levando essas denúncias às cortes internacionais.

Alan Carvalho – O lançamento da campanha Calar Jamais! é fundamental. O FNDC cumpre uma função extremamente importante é que a de procurar garantir o direito constitucional e internacional à liberdade de expressão. Essa campanha é fundamental porque vem inclusive combater essa proposta chamada “Escola sem Partido”. Criminalizar aquilo que é próprio do professor, que é sua manifestação, sua subjetividade, é buscar uma escola amordaçada, sem possibilidade de exercer reflexão crítica do mundo, da realidade, afinal, a sociedade só avança com radicalidade crítica. Só houve avanços no campo do conhecimento com crítica. O FNDC acerta muito quando desenvolve essa campanha.

– Como tem sido a adesão das entidades do movimento social à campanha?

Renata Mielli – Acho que foi surpreendente. Lançamos a campanha Calar Jamais! há dois meses e os vídeos que de divulgação tiveram recordes de visualização. Ela também já foi lançada em vários estados e está repercutindo nos meios alternativos de comunicação. Isso demonstra que acertamos com a agenda política nesse momento.

– A classe trabalhadora tem percebido a centralidade da comunicação no golpe?

Roni Barbosa – Acredito que os trabalhadores e trabalhadores estão acordando para essa questão da comunicação, principalmente nas lideranças da esquerda brasileira isso está mais nítido, mas na base da classe trabalhadora isso ainda é uma questão pouco percebida. É uma tarefa para cumprirmos. Nosso desafio é bem grande, mas acredito que as pessoas têm percebido essa concentração dos meios nas mãos de poucas famílias e têm percebido que dentro do golpe o direito delas tem sido moeda de troca, e isso coloca a mídia como um dos pilares do golpe. A lideranças sindicais têm visto a questão da comunicação como uma questão central para o próximo período. Além disso, também avaliam o quanto fez falta uma mídia democratizada para o enfrentamento do golpe. Apesar da CUT sempre ter discutido isso, sempre teve dificuldade de chegar na centralidade dessa pauta. A partir do golpe, esse tema ganhou um protagonismo maior e a gente tem conseguido discutir mais comunicação do que antes.

– Que articulações têm surgido a partir disso?

Roni Barbosa – O movimento sindical tem sentido a necessidade de se articular melhor, de unificar suas pautas na mídia sindical. Ainda tem muito debate sobre como fazer isso, mas há um entendimento geral de que é necessário organizar uma rede de comunicação para que possamos distribuir melhor nossos conteúdos para rádio e TV. Isso está num momento de bastante discussão e acredito que vá crescer ao longo do próximo ano.

– A comunicação pública foi um dos primeiros alvos do governo golpista. Já no segundo dia de governo interino, Temer atacou a EBC. Confirmando no mandato presidencial, ele imediatamente iniciou o processo de desmonte da comunicação pública no país por medida provisória. Em que medida isso afeta a comunicação pública nos estados?

Israel do Vale – Estamos vivendo mais um momento crítico num histórico de sabotagens e sufocamento à comunicação pública neste meio século que se completa ano que vem. Houve avanços nos governos Lula e Dilma e a sociedade tem cada vez mais consciência da importância da comunicação pública. Então, acho que estamos vivendo um desvio de rota e que num futuro próximo vamos recuperar as conquistas que tivemos. As ações do governo Temer são fruto de um grande arranjo que passa pelo pagamento da fatura do que foi gerado pelas emissoras comerciais pelo papel cumprido na orquestração do golpe. É claro que o fortalecimento das emissoras públicas não interessa, sobretudo as educativas. Então, quando o governo se apressa a operar esse desmonte fica muito claro que a finalidade é inviabilizar o projeto nacional de comunicação pública e que o passo adiante é que seus aliados estaduais acabem reverberando um pouco esse movimento brusco que foi feito de cima pra baixo. Esse processo está sendo vivido no Rio Grande do Sul, por exemplo.

– Em Minas Gerais, o governo deu um passo no sentido de fortalecer a comunicação pública com a criação da EMC. Como você avalia essa iniciativa?

Israel do Vale – Eu acho que é indiscutivelmente uma conquista. Fruto de um trabalho de muitos anos, que começou antes da gestão Pimentel e do qual me orgulho de ter participado. Mas é preciso efetivar os caminhos que a empresa pública precisa seguir. Há várias complexidades. Pela primeira vez, a rádio e a TV pública de Minas Gerais vão operar sob um mesmo guarda-chuva, o que inicialmente pode gerar problemas, a partir, por exemplo, da assimetria no regime de trabalho entre os funcionários dessas emissoras e na compreensão do que é comunicação pública. Mas estamos num momento de maturação que é fruto desse déficit de debate sobre as políticas de comunicação e sobre o papel dos diferentes modos de organizar esse setor. E isso reflete também o descaso da academia pela comunicação pública. Aqui em Minas, a Universidade Federal de Juiz de Fora é a única que tem um acúmulo sobre esse tema.

– Dos retrocessos no campo da comunicação digital, qual foi o mais grave em 2016?

Bia Barbosa – Acho que no campo digital, o maior retrocesso que a gente teve acabou de acontecer, que foi a aprovação do projeto de lei que modifica a LGT, acabando com a figura da concessão pública para a telefonia fixa e para qualquer serviço de telecomunicações. Ou seja, a internet, a partir de agora, jamais poderá vir a ser prestada no regime de concessão. O impacto disso é que a gente não vai ter a prestação de um serviço à internet que vise à universalização, à qualidade, à continuidade e à modicidade tarifária, que são requisitos básicos de um serviço prestado no regime público, por meio de concessão. Esse projeto de lei, além disso, também entrega para as operadoras de telecomunicações o patrimônio composto pela infraestrutura, tanto em redes como em prédios, que vinha sendo usada pelas operadoras nos contratos de concessão desde o processo de privatização da telefonia fixa e que deveria ser devolvida ao Estado ao término desses contratos de concessão caso não fossem renovados.

Agora, toda essa infraestrutura fica para essas empresas, com previsão de indenização ao Estado na forma de investimentos privados onde elas acharem necessário. É óbvio que elas vão investir onde acham que terão lucro. Ainda tem uma polêmica em torno do valor dessa indenização, porque segundo cálculos do Tribunal de Contas da União (TCU), todo esse parque de infraestrutura valeria cerca de cem bilhões de reais, e a Anatel avalia entre 17 e 24 bilhões, ou seja, além de tudo esse investimento que as empresas terão que fazer será num valor muito menor do que essas estruturas de fato valem.

– Sem falar que esse PL teve tramitação ligeira.

Bia Barbosa – Isso. Ele passou de maneira bastante acelerada nas comissões. Não foi discutido no plenário da Câmara nem do Senado, e no caso do Senado foi ainda mais sério porque houve um recurso dos senadores para que ele fosse debatido no plenário da casa, negado pelo presidente, o senador Renan Calheiros, alegando que o requerimento teria sido apresentado fora do prazo. Mas essa questão ainda está para ser discutida e certamente será judicializada pelas entidades de defesa do consumidor e outras organizações da sociedade civil. O FNDC tem acompanhado de perto essa agenda, porque se não compreendermos o acesso à internet como um serviço fundamental não vamos poder garantir o direito à comunicação da população. Vamos seguir nessa disputa agora no campo jurídico. Há uma perspectiva interessante, o Ministério Público já se manifestou contrário a esse projeto e o próprio TCU.

– Para além da questão do acesso, há outras agendas importantes para os militantes da democratização da comunicação em 2017.

Bia Barbosa – Há um conjunto de projetos de lei que visam descaracterizar o Marco Civil da Internet e legalizar mecanismos de vigilância em massa. Temos projetos que autorizam acesso a todos os dados de navegação dos usuários sem ordem judicial; que demanda a criação de um cadastro único de todos os internautas do país, obrigando cada um a se registrar nesse cadastro e receber uma autorização prévia para navegar; e temos as propostas que saíram da CPI dos Crimes Cibernéticos sob a justificativa de combater crimes, mas que restringem as liberdades individuais. Há iniciativas de remoção de conteúdo e retirada de sites do ar em função de questões que na nossa avaliação não justificam essas medidas, como violação de direitos autorais, por exemplo. E temos também o enfrentamento que precisa ser feito contra os bloqueios do WhatsApp, que já é objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). As organizações da sociedade civil que atuam nesse campo entendem que mesmo havendo desobediência a uma ordem judicial por parte da empresa, bloquear o acesso de todos os brasileiros ao serviço é uma medida bastante desproporcional. Ou seja, a agenda vai ser bem intensa e é importante que as organizações estejam alertas.

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