Diante da crise política e institucional que assola o país, jornalista apresenta semelhanças entre o Brasil de hoje e o de 1964, há mais de 50 anos, quando então outro golpe foi dado: a ditadura militar.
No Brasil 247
Sombra da Ditadura no horizonte
Por Paulo Moreira Leite
Neste final de 2016, o Brasil assiste a montagem de uma ditadura que se constrói através do fatiamento da democracia.
O ponto de partida foi a queda de Dilma Rousseff, produzida por “encenação” no Congresso, nas palavras insuspeitas de Joaquim Barbosa.
O ponto de chegada é a eleição indireta para escolher um eventual substituto de Michel Temer, um presidente impopular e frágil, corroído por delações comprometedoras da Lava Jato e pelas investigações do TSE, originalmente um plano B de Aécio Neves para tirar Dilma do cargo após a derrota em 2014.
Em sua atividade cotidiana, o fatiamento da democracia, cujo resultado prático consiste em alargar o espaço para medidas autoritárias e abusivas, prossegue com a Constituinte da pinguela.
Embora a legislação em vigor autorize a aprovação de Projetos de Emenda Constitucional, o que se tem feito em Brasília, hoje, é outra coisa. Envolve uma mudança que integra a pior tradição autoritária do país: um Congresso sem musculatura própria é utilizado como Constituinte improvisada para realizar alterações de fundo, sem respeito pela vontade do eleitorado. Por exemplo. Na única chance que lhe oferecida para dizer o que pensava da PEC 55, 63% do eleitorado disseram ao DataFolha que rejeitavam o projeto. Não adiantou. Foi aprovado por mais de dois terços.
Este mesmo método foi empregado pela ditadura militar em 1966, em uma demonstração de que as semelhanças com o pior de nosso passado estão longe de configurar simples coincidência. Há meio século, um Congresso em final de mandato, desmoralizado por denúncias, deformado por cassações e emparedado pela permanente ameaça militar, foi chamado a criar uma nova Constituição, num espírito inteiramente diferente do ambiente de democracia que marcou a Carta de 1946, onde até o PCB pode participar e influir. Em 1966, quando se temia — como hoje — que negociações prolongadas contribuíssem para esvaziar o apoio empresarial ao golpe de abril de 64, fixou-se o prazo de 60 dias para aprovação da nova carta. Por motivos fáceis de compreender, este cuidado ajudou a consolidar medidas próprias de um regime de força. Exemplos: o foro privilegiado dos tribunais superiores, que tinham a prerrogativa de julgar parlamentares, ministros e governadores de Estado, sendo por isso mesmo eternamente amaldiçoado pelos comandantes militares, foi substituído pelos tribunais da Justiça Militar. O direito de decretar o Estado de Sítio, que assegura poderes ditatoriais ao Executivo, saiu das mãos do do Congresso, passando à Presidência da República.
As mudanças chegaram à economia e neste terreno as semelhanças com 2016 são ainda mais impressionantes. A tentativa de transformar em matéria constitucional uma visão específica de política econômica, que está por trás da PEC 55, teve um antecedente no artigo 163 da Constituição de 1967, que passou uma borracha na história de um desenvolvimento industrial com apoio em investimentos do Estado, herança de Vargas e Juscelino, para estabelecer uma orientação oposta como matéria constitucional. “Às empresas privadas compete, preferencialmente, com o estímulo e apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas”, diz o artigo. Um parágrafo complementar foi ainda mais claro: “somente para suplementar a iniciativa privada o Estado organizará e explorará diretamente a atividade econômica.”
Apesar dessas mudanças, a Constituição aprovada goela abaixo teve vida curta, desmentindo a promessa de que poderia dar estabilidade a um regime sem a âncora própria das sociedades modernas, que é o voto popular. Um ano e dez meses depois de sua aprovação, o país assistiu a demonstração definitiva de que, sob uma ditadura, aquilo que é ruim sempre pode piorar. Baixado por decreto do Conselho de Segurança Nacional, onde a maioria não tinha voto nem como síndico de prédio, em dezembro de 1968 a Carta de 1967 foi substituída pelo AI-5, que jogou o país na treva mais absoluta.
Há meio século, a cassação de mandatos por decisão militar foi o método preferencial para se formar uma maioria a margem da vontade dos brasileiros.
Em 2016, uma mesma maioria implacável foi formada pelos esquemas corruptos liderados por Eduardo Cunha, que, nas eleições ocorridas dois anos antes, permitiram a articulação de um bloco majoritário ultra-conservador, com força para emparedar o governo Dilma Rousseff desde o primeiro dia. As baionetas foram substituídas, aqui, pelo dinheiro grosso e clandestino, capaz de garantir uma massa de parlamentares disciplinada e pronta a aprovar de olhos fechados toda e qualquer medida para pagar seus patrocinadores.
A aprovação da PEC dos gastos faz parte do mesmo movimento, e consolida o poder do capital financeiro sobre o conjunto da economia, estabelecendo um programa permanente de austeridade que tem dizimado a Europa desde a crise de 2008/2009.
Um processo idêntico será empregado na tentativa de aprovar o açougue social representado pela reforma da Previdência. O que se quer, uma PEC após a outra, é revogar o espírito da carta de 1988 sem consultar o eleitor.
Pretende-se agora substituir a visão que alimentava um Estado de bem-Estar Social, fazendo da luta contra a miséria e contra a desigualdade uma clausula constitucional, por um projeto de Estado Mínimo — que jamais foi aprovado pelas urnas. Em 1966, a força dos bancos não chegava perto do que é hoje mas o debate, essencialmente, era o mesmo. Consistia em sabotar as tentativas de defender a soberania do país e bloquear possibilidades de um desenvolvimento autônomo em relação aos centros dominantes do capitalismo, capaz de proteger os explorados e incluir os excluídos.
O próximo lance do fatiamento de 2016/2017 obviamente será definir o destino do principal, o Executivo.
Paciente terminal, o governo Temer encontra-se em risco permanente, por mais que o Planalto faça o possível para atender aos patrões do golpe, assegurando, milimetro por milimetro, centavo por centavo, cada grama da riqueza do país e da dignidade dos brasileiros, já cobrados com impaciência quando era apenas um presidente interino. Quanto mais se mexe para agradar a camada de cima, mais o governo cria descontentamento embaixo, como mostram as pesquisas de opinião, desde já um fator em si de enfraquecimento de Temer.
Este processo, típico da república bestializada que marca nossa história, estimula os tumultos atuais, anima as conspirações, revigora ameaças e patifarias. Protegidos por uma cobertura de cinismo que envolve juristas, jornalistas e políticos que fingem não saber o que está acontecendo, os aventureiros estão assanhados. Perderam o pudor para mostrar a verdadeira face e tentar garantir sua fatia num botim que, convenhamos, nunca foi tão generoso.
A consequência prática dos ataques à Constituição é abrir caminho para a ditadura judicial, cuja natureza foi denunciada por Eros Grau, ministro no STF entre 2004 e 2010, numa frase que se tornou clássica: “Pior do que a ditadura das fardas é a ditadura das togas, pelo crédito de que dispõe na sociedade,” disse ele, num julgamento em 2008, acrescentando uma advertência: “a nós cabe, no entanto, o dever de exercer com sabedoria nosso poder e impedí-la.”
Anos mais tarde, após a AP 470, após a Lava Jato, cabe registrar que este processo avançou, em fez de ser controlado. Seu principal alimento, um mito político construído em torno do STF — a noção de um poder moderador, neutro, independente, capaz de apaziguar conflitos em nome do interesse geral do país — se desfaz dia após dia, como demonstram episódios recentes e marcantes.
Um deles foi a preservação de Renan Calheiros na presidência do Senado, medida que assegurou a aprovação da PEC 55 no prazo mais conveniente para o governo.
Outro, a tentativa de Luiz Fux de jogar no lixo a decisão do Camara sobre o pacote de corrupção, aprovando medidas que punem abusos de juízes e procuradores, gesto que o insuspeito Gilmar Mendes definiu como “AI-5 do Judiciário.”
Outro episódio, a foto de Sérgio Moro com Aécio Neves numa festa da revista Istoé, mostrou que “toda tentativa de entronizar um guardião, moralizador, seja uma instituição, como o Supremo, seja um militar, seja um juiz, como Sérgio Moro, acaba por gerar partidarização de outro tipo”, nas palavras da professora Angela Alonso, no magistral artigo “A ficção da neutralidade,” publicado na Folha de S. Paulo (18/12/2016).
“Em vez de funcionar como baliza neutra, o Supremo tem tomado partido, desnorteado os atores políticos e mesmo a parte da sociedade que o respaldava no papel de árbitro-mor,” acrescenta a professora, que é a atual presidente do CEBRAP, um dos mais respeitados institutos de pesquisas sociais do país.
Cabe reconhecer que, como em toda tragédia, há método e rumo nessa loucura aparente. Todos estão de acordo num ponto: é preciso excluir o povo da tomada de decisões políticas.
“Parece uma simplificação mas é a pura realidade,” afirma o professor Pedro Serrano, um dos principais constitucionalistas do país. “A origem dos impasses de hoje se encontra no impeachment sem prova de Dilma, uma decisão que rompeu com as regras da democracia e negou a soberania do voto popular.”
Três meses e vinte dias depois afastamento definitivo de Dilma, o povo encontra-se silenciado e se faz um esforço gigantesco para que assim permaneça.
Salvo imprevistos, mais comuns em momentos de crise e incerta, a primeira chance aceitável de mudança num quadro cada vez mais desfavorável — a queda de Temer antes de 31 de dezembro, que transformaria a eleição direta para presidente num processo automático — parece vencida. É lamentável mas não é inédito no país da democracia fatiada.
A rigor, quando se considera a “jurisprudência” (entre aspas) aplicada contra Dilma, as condições legais para afastamento de seu vice estavam dadas desde o princípio. Se foi absurdo afastar uma presidente da República com base na denuncia de pedaladas fiscais e acusações semelhantes, que jamais configuravam crime de responsabilidade, foi ainda mais errado, pelo agravante do casuísmo evidente, poupar o vice da decisão.
De lá para cá, contudo, a situação de Temer apenas se agravou. Não são apenas ministros despencam da Esplanada como frutas podres de uma árvore. O próprio Temer encontra-se em posição de fragilidade extrema. A denúncia gravíssima de que solicitou pessoalmente contribuições financeiras a Odebrecht no Palácio do Jaburu, quando se encontrava em pleno exercício do vice-mandato, jamais foi imputada a Dilma. O único antecedente conhecido refere-se a um episódio com Fernando Henrique Cardoso. Em 2002, no final do segundo mandato, mas ainda de caneta presidencial na mão, FHC passou o chapeu a grandes empreiteiros que haviam se fartado com as obras de seu governo, solicitando — e recebendo — contribuições milionárias para formar o Instituto que leva seu nome.
Não é só. Vista, inicialmente, como o Plano B de Aécio Neves para produzir o impeachment de Dilma, a contestação do resultado da eleição de 2014 no TSE tornou-se agora a ameaça mais urgente contra Temer. Num desses irônicos acidentes de percurso, aquele esforço imenso para reunir provas de crime eleitoral contra a presidente eleita transformou-se em munição pesada contra o vice que operava às escondidas para derrubá-la. Inventada para prejudicar a adversária de Aécio e da coalização que articulava o golpe, a ação no TSE, cuja brecha foi aberta por um voto de Gilmar Mendes que aprovou as contas de Dilma “com ressalvas”, transformou-se num instrumento que desestabiliza e pode derrubar o aliado instalado no Planalto com a missão de preparar o terreno para 2018.
Nesta conjuntura, tanto o Plano B de Aécio como a Lava Jato de Sérgio Moro conspiram para diminuir o oxigênio de Temer, pois lhe retiram o principal alimento para exercício de qualquer cargo político — que não é apenas o poder, mas a perspectiva de poder. Hoje incapaz de transmitir sequer aos aliados mais próximos a certeza de que irá conservar-se no exercício de suas funções pelo menos durante o prazo lega, o problema de Temer não reside, apenas, na falta de legitimidade que sempre o acompanhou. Envolve falta de credibilidade, no sentido mais estrito da palavra.
Mesmo assim, tudo indica que, num país de democracia historicamente frágil, é grande a possibilidade de encarar um brinde de ano novo que implicará num ritual macabro, sem direito de voto. Salvo um fato novo, dificilmente Temer deixará o cargo até lá.
O futuro não está resolvido, contudo. Uma das vantagens de uma crise que avança em alta velocidade é que ela facilita o entendimento dos problemas. É fácil tomar consciência das opções em curso.
Caso Temer permaneça em seu cargo em 31 de dezembro, restará, do ponto de vista da preservação da democracia, aprovar uma emenda constitucional capaz de assegurar a escolha de seu sucessor por voto direto, em urna. Este é o caminho, apoiado pela opinião da maioria dos brasileiros. A alternativa é perseverar no golpe.