foto: Ana Rojas
Por Mariana T. Noviello, correspondente internacional do Cafezinho, exclusivo para o Cafezinho
De Berlim
O ex-assessor especial para as relações internacionais da presidência da república dos governos Lula e Dilma fez parte de um painel no 1o seminário entre o Partido da Esquerda Europeia (PIE), agrupamento de partidos de esquerda, socialistas e comunistas e o seu análago latino americano, o tão demonizado Foro de São Paulo, em Berlim nos dias 14 e 15 de dezembro.
O seminário visou a articulação entre as esquerdas europeias, latino americanas e caribenhas para pensar a atual conjuntura mundial e encontrar soluções comuns para questões como o avanço da direita e as novas versões do capitalismo e do neoliberalismo, levando em conta eventos como a eleição de Trump, o Brexit e o crescimento do reacionarismo em todas as partes do mundo.
Marco Aurélio Garcia, professor aposentado do departamento de história da Unicamp, fez uma exposição sobre a expansão das relações internacionais do Brasil durante os governos Lula e Dilma, que priorizou as relações com os continentes latino-americano e África, e o papel protagonista que estes governos tiveram na tentativa de formar um mundo mais multipolar e multilateral com a criação de novos foros e espaços de atuação internacional, como o G20, os Brics e a Unasur, entre outros.
Abaixo segue entrevista concedida por ele:
Mariana Noviello (MN) – Como você vê os acontecimentos no Brasil em relação a outros eventos mundiais, como o voto Brexit, as eleições de Trump e o chamado ‘fim do ciclo das esquerdas’ na América Latina?
MAG – O caso do Brasil está, obviamente, relacionado aos eventos mundiais. Mas há fatores específicos que levaram à atual situação brasileira. Nós tivemos no Brasil uma coalizão de forças empresariais, midiáticas, parlamentares com uma forte atuação do judiciário que, junto com a oposição, praticaram o golpe.
MN – Porque não esperaram o fechamento natural do ciclo democrático? Dilma não estava indo bem, a economia era um desastre. Ela quase não ganhou as eleições passadas, não seria mais prudente esperar este ciclo se fechar e entrar no governo pela via democrática em 2018?
Marco Aurélio Garcia (MAG) – O golpe, na verdade, começou com as eleições em 2014. A coligação de forças era imensa. Se você se lembra, até Marina que tinha se mantido neutra nas eleições anteriores, deu apoio à oposição. Mas mesmo assim Dilma ganhou.
Se nós voltarmos a 2005, com o mensalão, FHC argumentava a favor da via democrática, ele dizia que era melhor “deixar Lula sangrar”. Na época havia uma divisão entre aqueles que já queriam a caída forçada do governo Lula e aqueles que acreditavam que ele cairia naturalmente. Fracassaram, Lula não caiu e Dilma se elegeu.
A armação do golpe começou em 2014, quando Dilma ganhou as eleições. Ninguém esperava que ela ganhasse e Lula, apesar dos escândalos, continuava com a popularidade alta. Eles achavam, que se Dilma terminasse o mandato, Lula poderia se reeleger e, reelegendo-se, poderia ficar mais 8 anos. Eles não queriam mais correr este risco.
Então Aécio começou por questionar as eleições. Ninguém nunca havia feito isso antes. Depois pôs uma ação no TSE.
E nós também temos que pensar nos erros cometidos pelo governo Dilma a curto e médio prazo. Assim que Dilma se elegeu, ela ignorou os anseios da grande coalizão de forças sociais que se juntou para defender o seu mandato. Ela recebeu o apoio de um grande número de movimentos e partes da sociedade, algo que não se via há muito tempo.
Mas Dilma já começou seu segundo mandato dando sinais errados, trazendo Joaquim Levy, achando que ia aplacar o mercado, pondo pessoas como Kátia Abreu no Ministério da Agricultura, que apesar de ter se revelado uma pessoa extremamente coerente, na época desagradou muita gente e minou a popularidade do governo, deixando-o fragilizado vis-à-vis seus apoiadores.
As taxas de popularidade caíram rapidamente. Se pensarmos que quando ela ganhou as eleições ela tinha aproximadamente 50% da população a seu lado.
Lembremos também que a política brasileira é baseada no presidencialismo de coalizão, que sempre funcionou de duas maneiras: através da identificação de ideais, mas também com favores, isto é, cargos no governo, etc.
E esta coalizão parlamentar aprovou absolutamente tudo até 2014. Entretanto, para eles também teve grande relevância a ‘atmosfera política’. Eles não tinham lealdade incondicional ao governo e a atmosfera política estava virando cada vez mais contra o governo Dilma. Tudo isso se juntou aos problemas complexos a serem resolvidos, principalmente em relação à economia, e aos erros de manejo da conjuntura.
MN – E os fatores internacionais?
MAG – A Crise, sem dúvida é um fator importante que incide na economia e talvez o Governo Dilma não tivesse tomado todas as medidas necessárias para fazer frente à crise.
Na Região, na América Latina, modelos parecidos também começam a entrar em crise. Temos, por exemplo, a eleição de Macri na Argentina.
Para além disso, nos últimos dez anos temos presenciado situações disfuncionais, com movimentos cujo objetivo principal é a desestabilização. Houve certamente o financiamento de grupos. Se olharmos a Primavera Árabe, com exceção da Tunísia, nenhum destes movimentos resultaram em mais democracia. Quando houve as manifestações no Brasil, em 2013, o então Primeiro Ministro da Turquia (e agora Presidente), Recep Tayyip Erdogan, advertiu o governo brasileiro. Ele já tinha experimentado demonstrações parecidas em seu próprio país naquele ano.
Sabemos com absoluta certeza que houve interferência na queda do Presidente da Ucrânia, por exemplo. A mídia participou estimulando a população a protestar nas ruas. Todos estes episódios estavam assentados em bases reais. No nosso caso, a existência da corrupção.
Mas estimular este tipo de movimentação é arriscado, não é compatível com a estabilidade. E os usurpadores também não têm controle sobre estes eventos. Qualquer país que tenha suas entranhas expostas, como aconteceu no caso do Brasil, entraria numa crise igual a nossa. Quando se a aperta um tubo de pasta de dente e a pasta sai para fora, como fazê-la entrar no tubo de novo? Os artífices do golpe não conseguem mais controlar isso tudo.
Vivemos num clima constante de denúncias. A não é nem só a denúncia que importa, mas a ameaça da denúncia já é suficiente. Ou seja, estamos vivendo sob o ‘terrorismo do boato’, como vendo com o caso da Odebrecht. Isso leva à desestabilização maciça.
E as nossas instituições não eram tão fortes como pensávamos, e o resultado é a imprevisibilidade e soluções de exceção. O que o parlamento não pode fazer, agora o judiciário entra e faz. Eu não ficaria surpreso se o Brasil entrasse num estado de total convulsão social.
MN – E como você vê o papel do judiciário em tudo isso?
MAG – Nós temos a separação dos três poderes onde dois – o legislativo e o executivo – estão sujeitos à vontade popular. E temos também o judiciário que supostamente funciona através da meritocracia. Ele está lá para fazer cumprir as leis. O legislativo pode ser cassado, o presidente pode ser revogado. E o juiz? O que acontece quando ele erra?
O judiciário se atribuiu funções que são essencialmente políticas. Fazem coisas que não seriam possíveis em outros judiciários. A mudança de voto, a flexibilização das leis, da constituição, dão suas opiniões à imprensa sobre casos em julgamento. Não há imparcialidade. Dizem que o judiciário se mobilizou para dar sua opinião sobre a PEC 55, por exemplo.
MN – Soluções?
MAG – A esquerda precisa encontrar um discurso para neutralizar a direita. No Brasil, sem o combate aos privilégios não haverá mudanças. É importante também pensar nos erros da esquerda. Em termos de relações internacionais, o processo de integração regional deveria ter sido mais sólido. Quem sabe isso teria trazido mais estabilidade. Deveríamos ter tido mais ímpeto para propor novos foros e novos espaços para fortalecer esta integração.
MN – Mas havia espaço para a maior integração?
MAG – Vou dar um exemplo. Em termos comerciais, o Brasil é superavitário com todos os países da América do Sul, exceto a Bolívia, pela questão do gás. A pauta brasileira de exportação é muito ampla, enquanto que somente 4 ou 5 produtos formam a matriz de exportação da maioria dos outros países. Mas estes produtos são essenciais para eles. Por outro lado, a exportação brasileira corresponde somente a aproximadamente 12% a 13% do nosso PIB.
O Brasil poderia ter tido uma política de substituição das importações chinesas com os países da região. Isto é, em vez dos países latino-americanos importarem produtos chineses, eles poderiam estar importando produtos brasileiros. Mas para isso precisaríamos também importar produtos deles. Por que, por exemplo, não importamos bananas do Equador? Se importássemos bananas do Equador, abriria mais espaço para a exportação de produtos brasileiros para aquele país.
Tivemos algum êxito nesta área em relação ao Uruguai, isso porque abrimos as nossas fronteiras e a integração energética com este país foi espetacular. Diga-se de passagem que a Presidente Dilma teve um papel extremamente importante neste processo.
A integração comercial com a América do Sul não tem sido um processo rápido, mas quando aconteceu trouxe enormes benefícios.
MN – Como você avalia a ascendência de Trump à presidência dos Estados Unidos?
MAG – É possível que isso afete a efetividade do golpe, que espera a salvação do Brasil pela via da direita. Um dos êxitos da política exterior dos governos Lula, em particular, foi o movimento em direção a um mundo mais multilateral e multipolar e a criação de novos foros como a Unasur, os Brics e o Conselho Sul-americano de Defesa (CSD), entre outros. Com estas políticas, conseguimos reverter algumas das ameaças políticas na região. Os foros neoliberais como a Alca perderam espaço. As ideias do consenso de Washington não são mais consenso, pelo menos não em Washington. O protecionismo Norte Americano que se espera com Trump no poder pode ser uma oportunidade para o Brasil aprofundar o diálogo com a América Latina, com a China e com outros grupos de países e blocos.
MN – E como você vê a política externa do atual governo?
MAG – Um total descalabro. Vamos ter que reconstruir tudo e, é claro, levando em conta os equívocos das administrações passadas já pontuadas aqui.
MN – Como você vê o futuro?
MAG – Nós experimentamos uma época de muita imprevisibilidade. Não é possível prever nada no momento, mas é importante que este governo usurpador caia, e a médio prazo ter eleições não só para presidente, mas gerais. Esse parlamento que temos hoje já não é mais sustentável.