Arpeggio – coluna política diária
Por Miguel do Rosário
A política brasileira ganhou contornos mais complexos e interessantes após a delação da Odebrecht, que explodiu nos últimos dias, e a pesquisa Datafolha, divulgada nesta segunda-feira. Vamos falar desses dois assuntos na coluna de hoje, um de cada vez, e depois tentar entender como ambos se cruzam na linha do horizonte.
Independente das críticas que faço à delação premiada, não posso negar que a delação da Odebrecht quebrou a narrativa central da Lava Jato. Neste sentido, ela não é uma delação como as outras. Até o momento, um ou outro delator arriscava falar alguma coisa contra tucanos, mas nada que trincasse a estrutura central da narrativa, segundo a qual o “partido no poder”, ou seja, o PT, é que comandava o processo de corrupção na Petrobrás. Essa é a razão pela qual Sergio Moro prendeu o tesoureiro do PT, João Vaccari, o marketeiro do PT, João Santana, e o suposto articulador do PT, José Dirceu. O personagem principal, Lula, já estava com pé na cadeia. Boatos sobre sua prisão surgiam diariamente, alguns tão verossímeis a ponto de mobilizar movimentos sociais dispostos a protestar nas horas seguintes contra uma nova violência judicial de Sergio Moro.
Esse desvio da narrativa provocado pela Odebrecht pode ter sido um movimento calculado pela própria Lava Jato, numa instância decisória acima da força-tarefa, para fazer frente à degeneração simbólica que vinha corroendo a operação nos últimos meses, sobretudo após o fracasso de Dallagnol, com aquela bizarra apresentação de powerpoint, em mostrar Lula como o “comandante máximo” de todo o esquema de corrupção na Petrobrás.
Essa “instância decisória acima da força-tarefa” pode ser o próprio Rodrigo Janot, procurador-geral da República, em consórcio com autoridades americanas e suíças, ambos motivados por interesses diversos, até mesmo opostos, mas com um objetivo comum: debilitar o Executivo e o Legislativo brasileiros, empoderando o Judiciário e o Ministério Público. Do lado internacional, é um movimento quase orgânico, porém extremamente forte nos países centrais, de manietar as democracias periféricas e seus sistemas políticos através de parcerias estabelecidas diretamente com suas respectivas burocracias jurídicas. É um movimento que, naturalmente, interessa à alta burocracia jurídica nacional. É uma reação lógica às articulações cada vez mais explícitas da classe política contra os projetos de poder da burocracia jurídica.
Os protestos de Temer e seus cúmplices contra o vazamento da Odebrecht soam apenas patéticos, como gritinhos de ratos antes de serem carbonizados num incêndio. O que vale, no Brasil de hoje, é o impacto na mídia de uma denúncia e sua repercussão. E a delação da Odebrecht foi uma operação de guerra midiática preparada com esmero.
Um outro cenário, mais provável, é que a Odebrecht passou por cima do “jogo” combinado da força-tarefa e, frustrada com toda a classe política brasileira, a quem financiou durante décadas, resolveu explodir o tabuleiro. Seja como for, ficou patente que a Odebrecht não respeita mais o congresso, nem o governo, como instâncias de poder.
Quem manda no Brasil, hoje, é a Globo, articulador central do golpe e principal fiador das reformas e privatizações conduzidas hoje por governo e congresso. A prova disso é o lucro líquido da Globo em 2015, de mais de 3 bilhões de reais. Esse lucro não é normal, e apenas se explica pela parceria da Globo com operadores do mercado financeiro que apostaram contra o Brasil. E explica também a defesa intransigente da Globo de um ajuste fiscal draconiano, conduzido por um governo sem legitimidade.
Michel Temer se mostra, cada vez mais, um presidente completamente desorientado. Bajulado pela mídia até outro dia, ele considerava a sua falta de popularidade como um “trunfo”, porque significaria que ele não precisava se preocupar com a opinião das pessoas para “salvar o Brasil”.
A linguagem salvacionista de Temer é sinal de senilidade e desespero, mas nasce do tratamento quase heroico que a mídia lhe deu durante todo esse tempo.
Após cumprir fielmente o papel que lhe reservaram, de destruir a toque de caixa o máximo que pudesse das políticas sociais, comunicação pública, o tempo de Temer parece ter se esgotado. As reformas do ajuste neoliberal estão todas encaminhadas: previdência, PEC 55, privatizações. A votação da PEC 55 deve se dar hoje no Senado. A partir daí, Temer será totalmente descartável.
Os dois editoriais da Globo, hoje, não poderiam ser mais transparentes. Num, defende a PEC 55 como única saída para a crise brasileira. A mistificação da Globo não tem fim. Os brasileiros, em sua maioria, não tem outra fonte de informação fora do cartel midiático comandado pela Globo. Há um pacto sinistro em que somente alguns assuntos são tratados pelo conjunto da mídia. A população não é informada sobre como outras nações superaram crises similares, e, portanto ignoram que a fórmula que se pretende implementar no Brasil é exatamente a mesma que fracassou em qualquer parte do mundo.
Como forma de atacar a Constituição cidadã de 1988, a Globo a compara à… União Soviética. É tão difícil de acreditar, que eu reproduzo o trecho abaixo:
A Constituição de 1988 foi costurada como uma espécie de plano de viagem para um Estado provedor, num país que precisaria crescer de forma exponencial, sem pressões inflacionárias, refratário a crises, com receitas sempre em alta. Isso não deu certo sequer em economias planificadas, amarradas até pela força discricionária, a extinta União Soviética o exemplo mais completo desse tipo de experimento.
É um cinismo incrível. A Globo não informa à população que o Estado de Bem Estar Social não foi implementado pela União Soviética e sim pelos países mais bem sucedidos do capitalismo ocidental, como Estados Unidos e nações europeias. Serviços gratuitos de educação, investimento pesado em pesquisa, crédito à população, juros baixos. Os EUA tiveram, em quase toda a sua história, por exemplo, o mais pesado tributo sobre herança do mundo, e a educação pública norte-americana foi, até meados dos anos 70, uma das melhores do mundo – ou seja, foram séculos de sistema tributário redistributivo e sistema educativo “socialista”. Sobre a Europa, nem se fala. Os países nórdicos, os mais bem sucedidos do mundo em termos de qualidade de vida, sempre registraram a maior carga tributária do planeta. Sem contar que, quando se fala em carga tributária, é preciso sempre falar de alíquotas máximas e mínimas, que permitem ao Estado cobrar mais de quem ganha mais.
No outro editorial, a Globo repete sua postura ao final da década de 80 e defende eleições indiretas, via congresso nacional, enfatizando que “qualquer cidadão com mais de 35 anos pode se candidatar”. É um chamado, obviamente, para a volta de Fernando Henrique Cardoso.
Nesse ponto, vários cenários convergem. A opinião pública brasileira vem sendo preparada há tempos para a volta de FHC, inclusive por ministros do Supremo, como Luis Roberto Barroso, que, em entrevista recente, chamou FHC de representante do “iluminismo”.
Alías, Barroso, com suas xaropadas sobre iluminismo, ao mesmo tempo em que trabalha em favor da idade média, se tornou um dos lacaios mais desprezíveis do golpe. Falaremos mais em outra ocasião sobre esse coveiro perfumado da democracia brasileira.
Entremos em outro tema importante: a resiliência de Lula revelada na última pesquisa Datafolha. É importante entender que não se trata apenas do ex-presidente. A sua disparada nas pesquisas revela muitas outras coisas.
O forte declínio da rejeição de Lula, por exemplo, que caiu para 44%, o menor em dois anos (havia atingido 57% em março deste ano), mostra, por um lado, o desgaste da estratégia dos ataques jurídicos-midiáticos, e os bons resultados da decisão de Lula de não se limitar a fazer uma defesa jurídica, mas apostar em estratégias midiática e políticas. Isso é o que o PT, e todos os réus do mensalão, deveriam ter feito desde 2005. O processo penal legal foi enterrado no Brasil desde que Joaquim Barbosa, hoje um golpista arrependido, usou o “domínio do fato” para prender Dirceu, e provas foram solenemente ignoradas, omitidas ou simplesmente invertidas, para condenar Henrique Pizzolato – dentre outros arbítrios fora-da-lei.
A ideologia golpista fez nascer, dentro do sistema jurídico nacional, núcleos positivamente criminosos, subversivos, que não hesitam em violar a Constituição brasileira, a ponto de, hoje, militarem ostensivamente contra a lei, tentando fazer passar mudanças que subvertem completamente a nossa ordem jurídica.
A esses núcleos subversivos do judiciário, que ganharam hegemonia (e por isso houve o golpe), se juntou uma mídia não apenas igualmente subversiva, como também a mais concentrada do mundo ocidental, uma bizarrice que, inacreditavelmente, por ignorância, covardia e oportunismo, não foi jamais denunciada pelos governos progressistas de Lula e Dilma.
Os núcleos delinquentes da burocracia jurídica não perdem nenhuma oportunidade de explicitarem o seu desprezo pela lei, como ficou patente com a nova denúncia contra Lula na Lava Jato, improvisada às pressas para fazer frente à notícia de que o ex-presidente dispara nas pesquisas de intenção de voto para 2018.
A queda da rejeição de Lula mostra uma tendência exatamente oposta àquela de Michel Temer, que está em acentuada curva para cima.
Não surpreende que a Lava Jato tenha reagido tão rápido aos números do Datafolha, subsidiando a mídia com manchetes que permitam neutralizá-los. Afinal, estamos falando de jornalismo de guerra.
Os números do Datafolha, no entanto, são incríveis. Em todos os cenários de segundo turno, Lula ganha dos tucanos. Ele só perde no segundo turno para Marina, porém a mesma pesquisa revela que o capital político dela vem minguando a um ritmo acelerado. Marina está numa curva para baixo, enquanto Lula está numa curva para cima.
Além do mais, qualquer analista sabe que pesquisas de intenção de voto, se já não valem quase nada em termos propriamente eleitorais quando feitas muito antes das eleições (valem apenas como termômetro da política hoje), os cenários que contam são os de primeiro turno, não os de segundo turno, cuja química é uma coisa completamente à parte, dependendo naturalmente do resultado e da conjuntura no primeiro turno.
E no primeiro turno para 2018, Lula não apenas ganha em todos os cenários como apresenta números superiores em todas as faixas de renda, níveis de escolaridade e regiões do país. Até mesmo nos conservadores e radicalizados Sul/Sudeste, Lula está à frente. O petista ganha de Marina até mesmo entre os evangélicos.
O histórico dos últimos anos, porém, mostraram que essas pesquisas dizem muito pouco sobre a conjuntura. Elas não medem, por exemplo, o nível de ódio de parcela da sociedade, cultivado cuidadosamente pela mídia.
Além disso, a má distribuição de renda nacional gerou uma geografia urbana que reflete essas distorções, de maneira que o eleitorado anti-Lula é extremamente concentrado nos bairros ricos das grandes cidades. Se somarmos o grau elevado de ódio político à concentração do eleitorado conservador nos bairros nobres, temos um cenário de criação de núcleos urbanos fascistas, e justamente onde residem a maioria dos formadores de opinião. Daí o “clima” horrível, de tensão e ódio, que se percebe no ar sempre que Lula e PT logram algum tipo de vitória política. São nesses mesmos bairros que se nota a força principal de candidatos como Jair Bolsonaro.
Note-se que os números de Lula são os mais equilibrados. Ele lidera, equilibradamente, em todas as colunas.
Já um Jair Bolsonaro tem um eleitorado fortemente concentrado no público masculino e entre as pessoas com renda superior.
Observe que Lula recuperou capital político entre as pessoas com nível superior. Isso só se explica como resultado das lutas políticas nas redes sociais. O petista tem 17% das intenções de voto entre pessoas com nível superior, bastante à frente de Marina e Aécio. A resiliência de Lula entre os mais pobres revela ainda que o ex-presidente permanece bastante vivo na memória desse público, e essa memória tende a crescer conforme a crise econômica se aprofunda. Já comentei também em post anterior que Lula se recuperou igualmente entre o público com renda mais alta. Entre os que ganham mais de 10 salários, o petista está em primeiro lugar, com 14%, empatado com Marina e à frente de Aécio.
O cenário D, com Sergio Moro na disputa, é um dos mais interessantes trazidos pelo Datafolha. Nele estão Lula, Marina, Aécio, Bolsonaro, Ciro, Temer, Alckmin, Serra, Roberto Justus, Carmen Lúcia…
A força de Moro é inteiramente concentrada nos mais ricos. Entre os que ganham mais de 10 salários, ele lidera isoladamente, com 25 pontos, contra 12 de Lula. A posição de Aécio, nesta coluna, é curiosa: apenas 3 pontos, contra 12 de Alckmin e 8 de Serra. Provavelmente porque o eleitor paulista prefere Alckmin. A faixa etária onde Moro tem mais votos é o eleitor com 35 a 44 anos. No geral, o cenário traz Moro em segundo lugar na disputa eleitoral, com 11 pontos.
Entre os mais pobres, Moro tem somente 7 pontos, contra 30 de Lula. Na coluna de escolaridade, Moro fica em primeiro lugar entre os que tem ensino superior, com 18 pontos, seguido de Lula, com 15 pontos.
Conclusão
Todos os cenários da política brasileira convergem, para o mal ou para o bem, na figura de Lula. Ele é o líder nas pesquisas. Ele é o alvo principal do consórcio golpista, em especial da burocracia jurídica subversiva. Ele é a manchete dos jornais.
Em tese, essa posição central na conjuntura política brasileira protegeria o ex-presidente de novas violências não fosse o grau de subversão da nossa burocracia jurídica, blindada de maneira igualmente criminosa por uma mídia que parece não ter plena consciência do perigoso ódio político que vem promovendo junto a setores importantes da sociedade.
Eu sempre procurei ser otimista, mas hoje me parece ingenuidade esperar qualquer reviravolta positiva no curto prazo. Se as eleições fossem hoje, por exemplo, a perspectiva de vitória de Lula causaria uma verdadeiro surto fascista junto à burocracia subversiva, que identifica no espelho uma imagem exatamente oposta daquilo que é na realidade. Ela se vê como protetora da democracia brasileira e, por isso, está disposta a violar a lei para defender seus princípios. Mas ela é, no fundo, a principal adversária da nossa democracia, e sua maior agressora.
A superação da crise brasileira virá no médio e longo prazo, com a diluição do ódio político e a reconstituição de um centro, capaz de reunir as forças econômicas e políticas em torno de alguns princípios básicos, em especial os de democracia e soberania. Para isso acontecer, porém, provavelmente teremos ainda de enfrentar longos anos de acirrada luta política, sobretudo contra a Globo, que cada vez mais se revela como uma espécie de porta-aviões imperialista ancorado no coração do país, impedindo a materialização de qualquer projeto democrático.