O editorial do jornal OGlobo de hoje, 13, que propõe eleições indiretas caso Michel Temer seja inviabilizado, marcou o fim do último reduto midiático do presidente. A crise está escancarada. Jornalista apresenta dossiê do que está por vir nos próximos meses para o Brasil.
No Jornal GGN
Xadrez dos senhores da guerra contra o pacto nacional
Por Luis Nassif
Peça 1 – o vazamento da delação da Odebrecht
O Procurador Geral da República Rodrigo Janot ordenou abertura de sindicância para investigar o vazamento da delação do lobista Cláudio Monteiro, da Odebrecht.
É blefe. Como é blefe a desculpa de que há várias fontes de vazamento, não sendo possível apurar a origem do vazamento.
Dado o alto grau de octanagem da delação – que deixa em suspenso todo o mundo político – só há duas explicações para o fato do PGR não ter montado um sistema severo de controle sobre os documentos:
Hipótese 1 – o vazamento partiu da própria PGR.
Hipótese 2 – o vazamento partiu de operadores da Lava Jato, para rebater tentativas de interferência do PGR sobre a operação.
Nos dois casos, o ponto em comum é a aliança cada vez mais explícita do PGR com o PSDB.
Pela Hipótese 1, Janot estaria empenhado em implodir o esquema Michel Temer no governo para abrir espaço para o PSDB.
Pela Hipótese 2, Janot estaria interferindo na Lava Jato visando proteger as lideranças tucanas.
Há um conjunto de evidências reforçando essas hipóteses.
A primeira evidência está na ofensiva de Janot visando manter a OAS fora da delação.
Desde o início, a estratégia traçada pelos tucanos – verbalizada várias vezes por FHC e pelas tentativas de anistia ao caixa 2 lideradas por Aécio Neves – consistia em dividir as propinas em dois grupos. O primeiro grupo seria o financiamento de campanha através do caixa 2. O segundo, a corrupção propriamente dita, que consiste no recebimento de percentuais das obras feitas.
A delação da Odebrecht mirou apenas o caixa 2. A da OAS entraria pelo universo das propinas, inclusive relatando o sistema de pagamentos aos governos Geraldo Alckmin e José Serra – que, aliás, obedecia à mesma tabela de 5% cobrada por Sérgio Cabral.
Janot já brecou duas vezes as delações.
A segunda evidência no fato de, dispondo de uma enorme relação de políticos denunciados – incluindo José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves -, na segunda-feira Janot ter tirado da gaveta a denúncia contra o presidente do Senado Renan Calheiros.
Qual a lógica, em um momento em que tanto Senado quanto Supremo Tribunal Federal negociam uma distensão?
Aí, entramos na peça 2 do Xadrez, a disputa pelo pós Temer.
Peça 2 – pacto político ou guerra
O governo Temer definitivamente naufragou.
Há três perspectivas em vista.
1. Um grande pacto político que consiga brecar a crise e prepare a transição para eleições diretas.
2. A queda de Temer e a eleição indireta de um novo presidente.
3. A manutenção de um Temer repaginado, definitivamente sob a tutela do PSDB.
A primeira hipótese não interessa ao PSDB – e, por extensão, a Janot. Ao PSDB porque todas as pesquisas de opinião mostram o partido sem um candidato competitivo. A Janot porque a recomposição política – em torno de um pacto – significaria o fim da eleição direta para PGR pelo Ministério Público Federal. Janot será reconhecido no futuro, pela categoria, como o coveiro da lista tríplice.
Restam as duas hipóteses seguintes.
A menos pior das alternativas – para o PSDB – seria manter Temer como boneco de ventríloquo e operar por trás a implementação do saco de maldades do desmonte do estado social e nacional. A segunda alternativa, mais custosa, seria o PSDB assumir em uma eleição indireta.
Em ambas as situações, a aliança PSDB-Globo-PGR teria que enfrentar a competição dos dois principais operadores do Senado, Renan e Romero Jucá.
As ideias ainda estão no ar, sem estarem completamente assentadas, mas há uma conjunção ampla de indícios apontando na mesma direção de inviabilizar diretas e pactos:
· Na segunda, Janot atirou em Renan.
· Não por coincidência, na terça o Globo lançou a campanha “indiretas, já” e focou em Romero Jucá os ataques mais fortes de seu editorial. Defendeu a Constituição contra “artificialismos” – no caso, eleições diretas, que embutem esse “artificialismo” extravagante de devolver o poder ao voto.
· No Estadão, as lideranças tucanas propõem a Temer jogar ao mar seus auxiliares restantes e casar de papel passado com o PSDB.
Não se surpreenda se o próximo alvo da PGR for Jucá, enquanto mantém em banho maria as investigações sobre a tríade tucana.
Peça 3 – o avanço do estado de exceção
Assim como o impeachment abriu uma caixa de Pandora que colocou em curto circuito todos os controles institucionais, a escalada do arbítrio ganhou vida própria.
Nos últimos dias o Exército ocupou Recife, devido a uma possível greve de soldados. Nas TVs locais, o comandante do Exército fala sobre a quantidade de soldados disponíveis para policiamento ostensivo nas principais capitais, incluindo Brasilia.
Em todos os estados, a cada dia aumenta a violência da repressão da Polícia Militar.
Está se tornando o novo normal.
No Paraná, o juiz Sérgio Moro prossegue em suas manipulações autoritárias, com o uso abusivo do poder que lhe foi conferido. Questionado pelos advogados de Lula sobre a tentativa do procurador de induzir à resposta da testemunha, simplesmente cassou o direito dos advogados de defesa. Tomou o partido da acusação sem a menor preocupação em disfarçar.
Há toda uma discussão no direito administrativo sobre o poder-dever ou dever-poder na administração pública.
Há um conceito unânime, entre os administrativistas, da prioridade do interesse público sobre o interesse particular. Ao Estado cabe atender o interesse público. O poder do agente público é um mero instrumento para o atendimento do objetivo maior, que é interesse público. Sendo assim, o poder deve se submeter aos princípios da dignidade da pessoa humana.
São conceitos civilizatórios, como diria nosso “iluminista” Ministro Luís Roberto Barroso. Perdão, me enganei! O “iluminismo” apud Barroso diz que o caminho da civilização é o estado de exceção. Sobre ele, falamos mais abaixo.
Peça 4 – os dois caminhos possíveis
Há dois caminhos possíveis para o pós-Temer.
O inevitável será o grande acordo nacional, em um ponto qualquer do futuro, que garanta o enfrentamento da crise econômica e defina as bases para o novo tempo político – cujo desfecho serão as eleições diretas. A incógnita, no caso, é saber em que ponto do futuro e em que nível de esgarçamento social e econômico baixará o bom senso.
O alternativo é o aprofundamento do desmonte do Estado sendo empurrado goela abaixo do país por um governo sem a legitimidade dos votos.
Trata-se de uma tática suicida – em termos de país e em termos de estratégia -, que demonstra bem a truculência e miopia dessa parte da elite brasileira que se rendeu ao protagonismo midiático.
A insistência no desmonte do Estado aprofundará ainda mais a crise.
Só quando o quadro estiver totalmente caótico, se entenderá que o único caminho será o do grande pacto que permita as saídas tradicionais: um grande programa de investimentos públicos, retomada do papel dos bancos públicos para renegociar as dívidas acumuladas do setor privado, oxigênio para os estados, retomada da cadeia do petróleo e gás, interrompendo o trabalho de destruição da economia comandado pelo Ministério Público Federal e a legitimação política para uma política isonômica de equilíbrio fiscal.
E se o tecido social chegar a tal nível de esgarçamento que leve a uma semi-guerra civil, acelerando a entrada dos militares no jogo? E se surgir um Napoleão no meio do caminho, não um maluco como Bolsonaro, mas um general articulado?
Os mediadores
A decisão final dependerá do papel dos mediadores. E quem serão os mediadores?
Os possíveis interlocutores do Senado estão sendo bombardeados por Janot e pela Globo.
O Supremo definitivamente perdeu a condição de mediação.
Lá, o Ministro Luís Roberto Barroso – aquele que em cada três entrevistas menciona seis vezes a palavra “iluminismo” – tornou-se o principal avalista do estado de exceção.
Ontem, no Estadão, Barroso vestiu-se com o desprendimento dos sábios iluministas, como quem seleciona o grande gesto da mesma maneira que escolhe uma gravata da moda, e mencionou as críticas que têm recebido, considerando inevitáveis a quem, como ele, pretende “avançar com certas doses de iluminismo em locais onde ele ainda não chegou”.
Como não é de ferro, teve seu momento de Carmen Lúcia, com a frase “viver não é esperar a tempestade passar, mas aprender é dançar na chuva”. E aceitou estoicamente as incompreensões de que tem sido alvo: “Vai ficando cada dia mais difícil, porque você vai colecionando pessoas que vão ficando desagradadas. Mesmo assim, a gente tem que ‘empurrar’ a história e fazer aquilo que acha certo”.
Mencionou, como alvo das incompreensões, suas bandeiras iluministas sobre aborto e relações homoafetivas, que o deixam mal apenas nos grotões, não nos salões da sociedade e da academia.
Ora, o problema desse agente da história – e do Supremo – não é o das decisões contramajoritárias – que deveriam ser o foco de sua atuação –, mas a falta de coerência, a maneira como se curvou ao clamor da turba e da mídia e se tornou um dos principais agentes do atraso mais anacrônico, o direito penal do inimigo e o desmonte da precária rede de proteção social que o país construiu.
Não se trata de um iluminista, mas de uma luminária que não consegue projetar sua luz além dos limites estreitos do seu grupo social.
A desordem institucional do país, aliás, teve início quando o Ministro Teori Zavascki ordenou a prisão de um senador, Delcídio do Amaral, atropelando a Constituição, como lembrou o cientista social Marcos Nobre em sua coluna no Valor. A partir daí, desandou de vez o estado de direito, abrindo espaço para arbitrariedades de todos os níveis e para uma ampla subversão nas próprias instituições, da qual o exemplo mais candente é a autonomia de vôo e as seguidas provocações da força tarefa da Lava Jato ao PGR Janot.
Portanto, conte-se pouco com o Supremo para a tarefa de mediação.
Peça 5 – o caminho do acordo
A batalha civilizatória real, que decidirá nosso futuro como nação, dependerá das lideranças razoáveis começarem a desenhar o caminho do grande acordo, cuja celebração maior se dará nas eleições diretas e nos pactos a serem firmados no segundo turno.
Que as lideranças responsáveis do PT, do PSDB, do Senado e da Câmara, que os Ministros responsáveis do Supremo comecem a desarmar suas hostes e a desenhar os termos do grande pacto.
Haverá dificuldades de monta.
Uma delas, o PSDB-mídia aceitar a inevitabilidade da volta do protagonismo de Lula. O maior prejuízo imposto ao país não foi a destruição de Lula como liderança de esquerda, mas do mediador que conseguiu civilizar os movimentos populares, conter a esquerda mais radical e compor com as forças políticas e econômicas tradicionais. Lula é a única pessoa capaz de unificar todas as esquerdas e convencê-las da importância do pacto.
Outra dificuldade será o PT e as forças de esquerda aceitarem o protagonismo de FHC. Em que pese seu oportunismo e mesquinharias, tantas vezes demonstradas ao longo da campanha do impeachment, FHC ainda é a esperança de bom senso na frente golpista. Também é a única voz do PSDB com influência no mercado e no meio empresarial.
No Senado, se não forem queimados pela ação oportunista de Janot, e se a saída buscada não for a do estado de exceção, Renan Calheiros e Romero Jucá são interlocutores políticos de peso.
O empresariado precisará se recompor em torno de lideranças responsáveis. Há instituições que não perderam a respeitabilidade, como o IEDI (Instituto de Estudos de Desenvolvimento Industrial), a Abimaq (Associação Brasileira de Máquinas), a ABDIB (Associação Brasileira da Indústria de Base) entre outras, como o Instituto Ethos. A FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) terá que se desvencilhar do oportunismo rasteiro de seu presidente Paulo Skaf.
Não haverá como fugir do grande pacto, que desembocará em eleições diretas civilizadas, nas quais será possível aos dois lados explicitar seus conceitos e doutrinas, clarificar seus projetos de país, explicitar pontos em comum na grande agenda nacional.
A única incógnita é o tamanho necessário da crise para eliminar resistências e promover a pacificação.
Espera-se que seja antes de se ter o país transformado em escombros, envolto nas guerras bárbaras.