Denúncia: Apartamentos do Minha Casa Minha Vida estão sob controle de ricos

Atuando em brecha da lei, Dallagnol compra apartamentos do Minha Casa Minha Vida para revender a preços mais altos. Entre outros motivos, programa também falha porque quem teve dinheiro para pagar à vista ou em poucas parcelas, quando o condomínio foi lançado, agora domina o mercado imobiliário que o Governo criou para os mais pobres. 

No DCM

Dallagnol comprou apartamentos construídos para o Minha Casa Minha Vida

Por Joaquim de Carvalho

O procurador da república Deltan Dallagnol é conhecido por sua atuação como chefe da Operação Lava Jato e pela sua campanha contra a corrupção, que o tem levado a reuniões em grandes veículos de comunicação e a igrejas, principalmente evangélicas – é membro da Batista do Bacacheri, em Curitiba.

Esta é a face conhecida do procurador Dallagnol. Mas tem outra, a de investidor em imóveis. Segundo registro do Cartório de Imóveis de Ponta Grossa, em fevereiro do ano passado, Dallagnol comprou duas unidades no condomínio Le Village Pitangui, construído pela construtora FMM.

 Para fazer a construção, a FMM recorreu a financiamento da Caixa Econômica Federal destinado ao Programa Minha Casa Minha Vida. Mas os compradores não precisavam ser, necessariamente, pessoas de baixa renda.

Dallagnol pagou R$ 76 mil por um apartamento, o 104 do bloco 7, e 80 mil reais em outro, o 302 do bloco 8. Nas duas compras, uma escritura foi assinada em 22 de agosto de agosto de 2013 e outra, de rerratificação, em 20 de fevereiro do ano passado.

As escrituras foram assinadas pelo dono da construtora, Fernando Mehl Mathias, como vendedor, e por Deltan Dallagnol e a esposa, que é advogada, como compradores.

Dallagnol é natural de Pato Branco, no interior do Paraná. Nenhum dos apartamentos comprados em Ponta Grossa foi para moradia própria. Segundo o endereço fornecido ao cartório para a escritura, Dallagnol reside num bairro de classe média da capital paranaense.

Na internet, há o anúncio de venda de um apartamento no mesmo condomínio que o dele em Curitiba. O preço é R$ 895 mil. Tem 130 metros quadrados, com três suítes, cinco banheiros e duas vagas na garagem.

Muito diferente dos seus apartamentos de Ponta Grossa, padrão Minha Casa Minha Vida: 55 metros quadrados de área privativa, num condomínio com 29 blocos de quatro andares, com quatro apartamentos por andar. Uma vaga na garagem, em princípio descoberta.

O Le Village Pitangui de Ponta Grossa tem ainda três quadras de esportes, três salões de festas e três quiosques com churrasqueira – isso para atender os 464 apartamentos. A taxa de condomínio é R$ 210, já incluída a conta da água, que é coletiva.

Procurei a construtora FMM, que fez o condomínio. O chefe dos corretores disse que todos os apartamentos do Le Village Pitangui foram vendidos. Quem quiser comprar agora tem que procurador investidores como Dallagnol.

No caso dele, os apartamentos estão sendo vendidos a R$ 135 mil cada – diferença de 59 mil reais em uma unidade (77,6%) em relação ao que ele pagou e de 55 mil na outra unidade (68,7%).

Uma corretora de Ponta Grossa disse que muitos apartamentos do condomínio ficaram nas mãos de investidores – “acho que a maioria”. Ou seja, quem tinha dinheiro para pagar à vista ou em poucas parcelas, quando o condomínio foi lançado, fez um excelente negócio, ao contrário de quem agora está nas mãos dos investidores.

Os investidores pagam barato esperando pela valorização ou colocam o apartamento para alugar – os do procurador Dallagnol nunca foram ocupados e, segundo uma corretora, ele não tem interesse no aluguel, em torno de R$ 600. Conversei com ela sem dizer o nome do procurador, e ela se referiu ao proprietário também sem dizer o nome dele.

Comprar apartamento destinado preferencialmente ao programa Minha Casa Minha Vida não é ilegal, mesmo quem tem altos rendimentos. Em outubro, os vencimentos totais brutos de Deltan Dallagnol foram de R$ 35.607,28, segundo o Portal da Transparência do Ministério Público Federal.

Os vencimentos líquidos do procurador foram de R$ 22.657,61, mas neste ano houve um mês – abril –,  em que ele recebeu líquidos R$ 67.024,07, com “indenização” e “outras remunerações retroativas/temporárias”, acima do teto constitucional.

Quem compra apartamentos habilitados para o Minha Casa, Minha Vida tira a oportunidade de quem procura conseguir um imóvel com financiamento com taxa de juros subsidiada – máximo de 8,16% ao ano. Na mão do investidor, caso de Deltan Dallagnol, o comprador terá que pagar à vista ou recorrer ao financiamento imobiliário regular – com taxa de 12% ao ano.

“Podemos dizer que ele fez um excelente negócio. A valorização foi muito maior do que a maior parte dos investimentos. Mas não cometeu nenhuma ilegalidade”, diz um advogado, especialista em Direito Imobiliário, que não quer ter o nome divulgado por temer represália.

A ex-secretária nacional de Habitação no governo Dilma Rousseff, Inês Magalhães, disse que, durante a regulamentação do programa Minha Casa, Minha Vida, houve preocupação de vetar o duplo subsídio.

“O imóvel que é financiado uma vez recebe o subsídio, mas, se o imóvel for vendido, o segundo comprador não poderá ter o financiamento com taxa subsidiada. Isso nós evitamos, mas não pudemos impedir que quem tem dinheiro compre sem financiamento e ganhe com a especulação imobiliária”, disse Inês Magalhães.

O procurador Dallagnol comprou como investimento, apostando na valorização de um imóvel popular (veja entrevista dele abaixo), mas, como não recorreu a financiamento, não houve meio legal de impedir que ele (e outros investidores) fizesse isso.

“Impedir que quem tem dinheiro compre é interferir nas regras de mercado. Mas esta é uma discussão que temos de fazer: quem tem dinheiro pode comprar imóvel destinado ao Minha Casa Minha Vida?”

Inês não quis entrar no mérito ético da compra dos imóveis por parte do procurador: “Hoje, nós estamos sendo vítimas de julgamentos morais, numa campanha que tem à frente alguns procuradores. Eu não me sinto à vontade para fazer o mesmo. Mas que temos de discutir essa questão da especulação imobiliária, à luz da política habitacional para o País, isso temos.”

Dallagnol, na sua campanha em favor do projeto das dez medidas contra a corrupção – propostas idealizadas por ele e outros procuradores da Lava-Jatou — já esteve em grandes jornais e igrejas.

Em fevereiro deste ano, em entrevista para o canal do YouTube da Igreja Batista Atitude Central da Barra, do Rio de Janeiro, foi questionado sobre a razão de “trazer” o tema para debate. Dallagnol respondeu:

“Esse processo de transformação envolve todos os atores da sociedade, e a Igreja, em especial, tem um papel muito particular nisso, porque a Igreja é uma instituição ou um grupo de pessoas que amam a Deus, mas que tem um mote central de amor ao próximo, de amor à sociedade.”

A apresentadora ainda pergunta sobre o que as pessoas podem fazer para participar do combate à corrupção:

“Em primeiro lugar, devemos deixar de praticar as pequenas corrupções do nosso dia a dia, que acabam gerando uma tolerância com a grande corrupção.”

Em seguida, Dallagnol cobra “atitude, nós precisamos agir” e pede que os telespectadores assinem a proposta das dez medidas contra a corrupção – esta que está sendo agora votada pelo Congresso Nacional.

*****

Procurei a assessoria de imprensa da Procuradoria da República em Curitiba e falei sobre esta reportagem. Pedi para falar com o procurador Dallagnol e fui orientado a enviar um e-mail com perguntas, que o procurador respondeu:

1) O senhor costuma fazer investimentos em imóveis?

Adquiri, para fins de investimento, os dois apartamentos localizados em Ponta Grossa, com recursos oriundos de salários. Todos estão declarados em Imposto de Renda e foram pagos todos os tributos e taxas atinentes.

2) Como tomou conhecimento de que havia essa oportunidade de negócios em Ponta Grossa?

Funcionário da construtora FMM Engenharia, em Curitiba, ofereceu a possibilidade de aquisição dos apartamentos.

3) Construções destinadas ao Programa Minha Casa, Minha Vida são viabilizadas com dinheiro barato, através da Caixa Econômica Federal. Comprar apartamentos destinados a famílias com renda máxima de R$ 6.500,00 e depois revendê-los com um ganho superior a 60% em um ano e meio não seria uma prática questionável do ponto de vista ético? (não é um juízo de valor, é só uma pergunta).

O programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) funciona com quatro faixas (faixa 1, faixa 1,5, faixa 2 e faixa 3). Dentre essas faixas, apenas a primeira oferece empreendimentos exclusivamente voltados para famílias de baixa renda. As demais faixas oferecem linhas de crédito para pessoas que atendam aos requisitos do programa. Repetindo: a primeira faixa oferece empreendimentos exclusivos enquanto as demais oferecem financiamentos para a compra de imóveis – mesmo em empreendimentos não exclusivos do programa – por pessoas que atendam os requisitos. O Le Village Pigangui é um empreendimento não exclusivo do programa. Assim, os imóveis comprados estavam disponíveis para aquisição por qualquer pessoa, independentemente de atender os requisitos do programa MCMV. Os apartamentos que adquiri foram comprados com recursos próprios, à vista, declarados em imposto de renda e sem qualquer financiamento. Não obtive financiamento do program MCMV ou de qualquer outro banco, pois comprei à vista.

Os apartamentos foram quitados em agosto de 2012, tendo sido sempre declarados em imposto de renda, mas a construtora só pôde realizar a transferência via escritura pública e o consequente registro mais recentemente. O dinheiro investido nos apartamentos, caso tivesse sido investido em títulos do Tesouro Direto, do Governo Federal, atualizados pela SELIC, resultaria em valor muito próximo ao valor pelo qual os apartamentos foram anunciados para venda. O valor de aquisição de um dos apartamentos, com a variação da SELIC no período (que seria similar à variação de investimento em banco) e somado aos custos de transferência, resulta em R$ 127 mil. O valor de aquisição do outro dos apartamentos, fazendo-se a mesma conta, é de R$ 134 mil.

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