(Foto: Getty Images)
Caffè Americano – Coluna de Política Internacional do Cafezinho*
por Carlos Eduardo, editor do Cafezinho
A candidatura de Donald Trump foi polêmica do início ao fim. Fato.
Mas a campanha de Trump não se resume apenas às declarações politicamente incorretas – e muitas vezes fascistas – que definiram sua imagem.
Trump foi ousado o bastante para bater de frente com o establishment político norte-americano e ainda assim vencer as primárias – diferente de seu rival democrata, Bernie Sanders.
Costumo dizer que os caciques do Partido Republicano foram trapaceados em seu próprio jogo.
O jogo em questão são as primárias presidenciais, cujas regras já preveem a participação de outsiders como Donald Trump e Bernie Sanders, mas criadas de modo que tornam praticamente impossíveis a vitória de um candidato sem a benção do status quo, sem o apoio dos caciques republicanos e democratas, sem financiamento empresarial e sem espaço na grande mídia.
Ainda assim, remando contra a maré, Trump foi vitorioso, deixando os analistas políticos de queixo caído.
Com a vitória de Donald Trump, podemos concluir que a elite político-econômica dos Estados Unidos perdeu momentaneamente o controle sobre as eleições presidenciais. Porém, ainda é cedo para concluir o impacto que isto terá no destino do país e do mundo.
Eis aqui os três fatos que tornaram a campanha de Donald Trump um marco histórico na política norte-americana:
Um: Esta é a primeira eleição, desde 1940, em que um dos grandes partidos teve como nomeado um candidato à presidência sem qualquer experiência política ou militar
O último candidato a presidente ‘não-político’ e sem passagem pelas forças armadas norte-americanas foi Wendell Willkie, um advogado liberal e empresário de sucesso, nomeado pelo Partido Republicano em 1940, com uma campanha contrária ao plano New Deal proposto pelo democrata Franklin D. Roosevelt.
O resultado todos nós conhecemos de cor e salteado: Franklin D. Roosevelt tornou-se o presidente que derrotou os nazistas enquanto Wendell Willkie foi completamente esquecido pela história.
Embora a candidatura de Willkie tenha sido incomum para sua época, desde então o Partido Republicano tem valorizado candidatos com experiência empresarial, o típico homem de negócios que os americanos chamam de self-made man.
Dois exemplos recentes dentro do Partido Republicano foram George W. Bush e Mitt Romney, e Trump soube explorar muito bem essa faceta que agrada bastante o eleitorado republicano de classe média branca, protestante e conservadora.
Dois: Esta é a primeira vez, desde Herbert Hoover em 1932, que um candidato presidencial dos grandes partidos fez uma campanha contra o liberalismo econômico, anti-livre comércio e antiglobalização.
Para os coxinhas que foram à Av. Paulista defender Donald Trump contra o suposto ‘esquerdismo’ de Hillary Clinton, pode ser difícil de acreditar, mas já houve um tempo em que os presidentes americanos eram a favor do protecionismo econômico e ai de quem defendesse o livre comércio. Era derrota na certa.
Isto já faz muito tempo, é claro, o último candidato norte-americano abertamente contrário às políticas de globalização da economia foi Herbert Hoover, há mais de 80 anos, em 1932. Hoje, quando se fala nos ideais republicanos, o primeiro nome que vem à cabeça é Ronald Reagan.
Em maio, logo após a nomeação de Donald Trump, escrevi aqui no Cafezinho artigo intitulado: ‘Os motivos que levaram americanos e brasileiros a apoiar políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro’.
Segue um trecho:
A meu ver o fenômeno Trump tem uma explicação fácil de entender: ele é produto da crescente desigualdade social nos Estados Unidos, que está ‘matando’ a classe média tradicional branca, anglo-saxônica e protestante – conhecida historicamente como WASP, ou White, Anglo-Saxon and Protestant, em inglês.
Eu havia prometido a mim mesmo que nunca repetiria esta expressão em um artigo, por considerá-la batida demais. Na imprensa brasileira tornou-se um clichê, todo ano alguém publica artigo com o mesmo título, mas não vejo outro modo de explicar a ascensão de Donald Trump senão parafraseando James Carville, então assessor da campanha de Bill Clinton em 1992, que cunhou a frase: “É a economia, estúpido!”.
Está cada vez mais claro que Donald Trump é resultado do desespero de uma parcela da população sem esperança nos políticos tradicionais e atolada numa crise econômica que perdura há décadas.
Desde o governo de Ronald Reagan, primeiro presidente dos Estados Unidos a implantar no país o que hoje chamamos de ‘neoliberalismo’, a classe média norte-americana vem empobrecendo ano após ano – e quando falo de classe média norte-americana, me refiro àquela parcela da população com renda familiar de aproximadamente US$ 40 mil dólares ao ano.
Para termos uma noção do impacto do governo Reagan na economia, durante a administração do democrata Jimmy Carter a renda anual de uma família classe média girava em torno de US$ 48 mil dólares/ano. Durante o governo Reagan este número reduziu para cerca de US$ 43 mil dólares/ano e atualmente gira em torno de US$ 33 mil dólares/ano.
O salário mínimo norte-americano atingiu seu maior patamar em 1968, quando pagava US$ 1.60 dólares por hora de trabalho, o equivalente a US$ 10.86 dólares em valores atuais, e de lá pra cá não para de cair.
Não é à toa que o aumento do salário mínimo de US$ 7.25 para US$ 15.00 dólares a hora de trabalho seja uma das principais bandeiras do socialista Bernie Sanders. Desde os anos de 1960 a produtividade do trabalhador americano mais que dobrou enquanto os salários só diminuíram, em valores reais.
Pela primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, a nova geração da classe média branca norte-americana, os millennials, se veem mais pobres que seus pais. Resultado do liberalismo econômico sem limites iniciado por Ronald Reagan, mas ampliado e aprofundado na gestão Bill Clinton, com acordos de livre comércio como o NAFTA e a desregulamentação total do fluxo de capitais.
A verdade é que o ‘neoliberalismo’ praticado a partir da década de 1990, e que perdura até hoje, beneficiou apenas uma pequena parcela da sociedade – principalmente bancos, empresas multinacionais e seus acionistas majoritários.
Já os trabalhadores foram os mais prejudicados e isso explica bastante porque o discurso antiglobalização, anti-imigrantes, contrário aos acordos de livre comércio e protecionista de Donald Trump atrai tantos eleitores.
Três: Esta é a primeira vez, desde a instituição das primárias em 1964, que o Partido Republicano lança um candidato à presidência da República sem o apoio dos líderes nacionais e dos grandes empresários que financiam a legenda
Na visão dos caciques republicanos, Donald Trump foi um terremoto que abalou as estruturas do partido.
Em abril, pouco antes da nomeação de Trump, o jornal The Huffington Post denunciou que os irmãos Koch – maiores financiadores de campanha do Partido Republicano – estariam tramando um jeito de suspender as primárias republicanas e nomear automaticamente o deputado Paul Ryan, atual presidente da Câmara de Deputados (House of Representatives, em inglês).
Para isso, bastaria apenas que Donald Trump não alcançasse o número mínimo de delegados requisitados pela norma interna do Partido Republicano para ser nomeado candidato à presidência. No entanto, Trump alcançou o número de delegados e até hoje não se sabe a veracidade da denúncia.
Fato é que pegaria muito mal para a “maior democracia do mundo” um golpe contra a decisão da maioria dos eleitores, ainda por cima nas primárias presidenciais.
Conforme escrevi em julho, no artigo ‘Donald Trump tem alguma chance de ser eleito? Claro, é 2016 e o mundo está de cabeça para baixo’:
Trump desperta o ódio dos líderes republicanos, trapaceados em seu próprio jogo pelo empreiteiro popstar, famoso por demitir pessoas na televisão.
Ele foi sábio ao se apropriar da hipocrisia republicana e incrementá-la com doses de nacionalismo, xenofobia, preconceito e, principalmente, um discurso antiglobalização que agradou muitos eleitores.
Não estranhem se nas próximas eleições os republicanos criarem, eles também, um sistema de ‘superdelegados’ similar ao que existe no Partido Democrata, para que um candidato como Donald Trump jamais se repita.
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*A pedido do jornalista Miguel do Rosário, editor-executivo do Cafezinho, estreio hoje minha coluna de política internacional focada principalmente nos Estados Unidos — Caffè Americano.
O Miguel do Rosário chamou sua coluna de Arpeggio, por este ser seu sabor predileto da Nespresso.
Optei pelo nome Caffè Americano por duas razões: a primeira, óbvia, por se tratar de uma coluna sobre a política norte-americana; a segunda porque nas vezes em que visitei os Estados Unidos era raro encontrar o típico café brasileiro, feito na cafeteira com coador. O que mais se assemelhava é o Caffè Americano, uma dose de espresso com uma ou duas doses de água quente.
A princípio minhas colunas serão abertas ao público, mas algumas poderão ser fechadas para os assinantes. Por isso, peço aos leitores que façam uma assinatura, dependemos da ajuda de vocês para continuar com nosso trabalho.
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