(Foto: Twitter de Marcelo Freixo).
Arpeggio – coluna política diária
Por Miguel do Rosário
Pior momento da esquerda’
“A esquerda brasileira vive agora o seu pior momento desde o fim da ditadura militar. É uma pena, mas pagamos o preço por tudo de ruim que aconteceu durante o ciclo do PT na Presidência da República, apesar de não termos feito parte daquele governo. Na verdade, essa não é apenas uma questão carioca. Se olharmos os resultados das eleições municipais em todo o Brasil, vemos que a esquerda sofreu uma derrota nacional. É uma boa hora para refletirmos. Muitos questionamentos que surgiram durante as manifestações de 2013 ainda permanecem sem resposta e os eleitores se sentem distanciados do processo político”.
O desabafo de Marcelo Freixo à imprensa carioca, nesta segunda-feira, enfureceu os setores da esquerda ex-governista, que se sentiram atacados num de seus momentos mais vulneráveis.
Previsivelmente, a imprensa conservadora deu amplo destaque a esse trecho, porque interessa a ela que não haja nenhum movimento de convergência no campo progressista.
Entretanto, Marcelo Freixo não falou nada demais. A esquerda brasileira, inclusive a não-partidária, a chamada esquerda social, paga hoje o preço dos erros políticos cometidos pelo Partido dos Trabalhadores.
Esses erros, naturalmente, não são os mesmos apontados pela imprensa conservadora e pela oposição de direita, embora também não se possa ignorá-los.
A esquerda petista precisa baixar as armas. A política é uma guerra, mas também não é uma guerra. A diferença entre a guerra e a política é que, na política, não é necessário destruir o adversário para vencer; pode-se transformá-lo. Isso significa que o derrotado, em política, não é necessariamente eliminado, ele pode se transformar, seja para ser incorporado ao vencedor, seja para reconstruir suas estratégias e vencer mais tarde.
Depois da derrota dupla sofrida este ano, primeiro com o golpe depois com o resultado eleitoral, o mínimo que se espera de toda a esquerda nacional é ouvir as pessoas e os quadros, com mente aberta e espírito crítico.
Esta sensibilidade excessiva, que reage agressivamente a qualquer crítica, não contribui para iniciarmos um processo de revisão dos erros cometidos, única maneira de reconstruir institucionalmente, politicamente, o campo progressista.
Os internautas sabem que o Cafezinho é um blog profundamente crítico à mídia corporativa. Os blogs são uma espécie de anticorpo jornalístico à manipulação das notícias e da verdade feita diariamente pela grande imprensa. Já escrevi muito sobre esse fator darwiniano que, infelizmente, não é compreendido pelas empresas de mídia. Os blogs sempre vão existir porque são fenômenos naturais, necessários, e sempre serão particularmente fortes no Brasil justamente por causa da nossa realidade midiática: um sistema de comunicação dominado por poucas famílias, sendo que uma delas, a Globo, detêm um poder comparável somente ao de monarcas absolutos do oriente médio.
Os blogs são necessários, como anticorpos, para a sobrevivência da própria mídia comercial brasileira, porque são os blogs que combatem os vírus da manipulação e da mentira, que comprometem seus últimos vestígios de profissionalismo.
Mesmo assim, não é possível atribuir a derrota da esquerda apenas à grande mídia, até porque uma das principais críticas que se faz aos governos petistas tem sido, justamente, o de não ter combatido o sistema cartelizado da imprensa nacional.
O PT não fez nada e até hoje não faz nada para combater o monopólio. Em 13 anos de governo, nunca organizou um mísero seminário – aberto a todos os partidos, movimentos sociais, sociedade em geral – para discutir mídia. Os encontros de comunicação organizados pelo PT sempre foram ridiculamente fechados, uma espécie de treinamento para produzir soldadinhos de internet pró-PT, ao invés de se abrir à sociedade.
Os eventos partidários do PT, em todos esses anos, sempre foram fechados, sectários, elitistas, inclusive em 2014 e 2015, quando o mundo já desabava sobre o partido.
A comunicação da legenda se limita a patrocinar uma “Agência PT”, o que é evidentemente uma péssima ideia, o conceito mais antijornalístico que se possa imaginar. O partido precisa ter seu site, com notícias de partido, naturalmente, mas a comunicação maior precisava ser minimamente não-partidária, para ter resultados práticos na formação da opinião pública.
Os dirigentes do PT, ainda hoje, depois de tudo que aconteceu, são incapazes de formulações minimamente embasadas para criticar a mídia. Limitam-se a repetir uma crítica ou outra que leram em blogs e apenas para dar uma resposta apressada à militância ao último ataque da imprensa ao partido. Não sabem como é a mídia em outros países, então não tem como oferecer à população nem à sua própria militância a argumentação necessária para combater o arbítrio midiático.
Entretanto, o pior erro do PT, pelo visto, está em sua incapacidade de ouvir críticas, que não significa apenas ouvir, mas assimilá-las e reagir dialeticamente a elas.
A esquerda no Brasil vive hoje o seu pior momento: não tem mais governo, não tem mais recursos, não tem mais voto.
O único recurso que lhe resta são estas jazidas de inteligência política, esparsas, fragmentadas, porém imensas, inesgotáveis, porque podem ser encontradas não apenas em território nacional e não apenas no presente, mas no mundo inteiro e em toda a história.
A vantagem de não ser mais governo, de não ter mais nada a perder, é esta liberdade maravilhosa de ouvir críticas sem que isso se torne um problema de “governabilidade”.
Nem todas as críticas são justas, ou inteligentes, ou corretas. Mas todas as críticas podem nos levar ao auto-aperfeiçoamento. As críticas injustas nos permitirão reafirmar valores e acertos. As críticas justas nos farão ver onde erramos e a desenvolver projetos e ideias que serão os vencedores amanhã.
A reação à crítica, no entanto, deve ser serena e inteligente, e sobretudo entender que se um partido é criticado é porque ainda há quem lhe dê importância. Ninguém critica o PP, por exemplo.
A questão da mídia é organicamente ligada à questão política. Ao não entender este ponto, o PT perdeu a batalha sem lutar: a mídia promoveu uma lavagem cerebral de toda a população brasileira sem que houvesse, jamais, uma mísera denúncia disso por parte do governo.
Por ocasião da morte de Roberto Marinho, Palocci, importante quadro do PT, divulgou nota dizendo que ele tinha sido muito importante para a democracia… Hoje Palocci é um preso político da Globo.
O ex-ministro da Comunicação, Paulo Bernardo, foi preso por Sergio Moro e quase ficou por lá para sempre, tornando-se mais um preso político na Guantanamo da Globo em Curitiba, e isso depois de também jamais ter feito nada, como ministro, para combater o monopólio.
Apenas depois do golpe consumado, a presidenta Dilma admitiu, em entrevista, que agora existia “massa crítica” para se acusar o golpismo dos meios de comunicação. Ora, isso é como afirmar que só após 1942 existia massa crítica para se criticar o nazismo…
A comunicação falha gerou outros problemas: ao não desenvolver uma estratégia inteligente de comunicação, o PT não ouviu as massas, ou então as ouviu mal.
Erros de projeto também são gerados por falhas de comunicação.
A questão da pobreza e da fome, que naturalmente sempre foram essenciais no país, foi atacada muitas vezes de maneira superficial, com investimento insuficiente em saneamento básico e mobilidade urbana.
Voltando um pouco à questão da comunicação, hoje eu vejo que a tão festejada pulverização de recursos da Secom durante a gestão de Franklin Martins, no primeiro governo Lula, foi na verdade uma iniciativa demagógica, que não resultou em nenhuma mudança estrutural na produção de notícia. Uma análise dos contratos da Secom mostram a distribuição de quantias incrivelmente ínfimas para uma quantidade enorme de rádios e pequenos jornais.
Num primeiro momento, esses recursos podem até ter sido importantes, mas depois de um tempo eles são naturalizados. Os custos aumentam, e o volume de recursos continua o mesmo. Mil reais para um pequeno jornal do interior já não significam mais nada. Não permitem o surgimento de nenhum tipo de jornalismo diferente. Pagam uma continha ali e aqui.
O governo, se quisesse usar seus bilhões anuais de publicidade federal para mudar a super-estrutura da comunicação social brasileira, tinha que ter ajudado a criar centros de produção de jornalismo autônomos e autossustentáveis, em todo o território nacional, em rádio, jornal impresso, internet e tv. Essa seria uma estratégia central inclusive para oferecer um mínimo de segurança midiática a seus próprio quadros.
De que adianta nomear um ministro do STF ou STJ e deixá-los expostos, nus, desarmados, às feras da grande mídia? O resultado foi que todos os ministros indicados pelo PT se converteram à mídia, à direita e ao golpe.
O não investimento em mídia deixou cidadãos e empresas expostos à selvageria midiática. A Lava Jato esta aí, para provar. Grandes empresas de engenharia foram vítimas de uma mídia sem nenhum compromisso com estratégias de crescimento econômico de longo prazo.
A falta de democracia na mídia foi fatal inclusive para a saúde do capitalismo brasileiro.
Isso sem falar na questão liberal. Os institutos liberais brasileiros são pastiches hipócritas, contraditórios e cretinos, porque o liberalismo pressupõe respeito à pluralidade política, às garantias constitucionais contra a perseguição do Estado, à segurança jurídica e à liberdade individual, fatores que foram destruídos por esse golpismo patrocinado pelo monopólio midiático.
Claro que essa sempre foi uma batalha difícil. Mas era central, e a mídia sabia disso, tanto que, mesmo sem o governo fazer nada, ela iniciou um ataque maciço à qualquer ensaio ou mero discurso de mudança, taxando-o de bolivariano ou coisa parecida. E o governo cedeu antes de lutar, como aqueles lutadores de sumô que desistem apenas com uma troca de olhares com o adversário.
No campo da corrupção, os governos Lula e Dilma, que poderiam colher frutos de várias iniciativas inéditas, como o portal da transparência, as auditorias, o investimento na Polícia Federal, deixaram de fazê-lo pela mesma razão de sempre: uma inexplicável e imperdoável ausência no campo da comunicação política.
O PT, sempre que tentava fazer, às pressas, algum tipo de comunicação, fazia mal, confundindo comunicação com propaganda.
A ausência de comunicação também gera corrupção. Os gastos precisam ser abertos para que a sociedade possa monitorá-los. A lição dos países mais bem sucedidos na guerra contra a corrupção é maior transparência e participação social no processo de execução orçamentária. A corrupção acontece obviamente onde circula dinheiro, então para combatê-la é preciso muita luz sobre essas áreas.
Não tenho sido um eleitor do PSOL, mas acho injusto que se queira criticar Marcelo Freixo por ter dito uma verdade, uma verdade que é ainda mais sólida por partir de um partido que, de fato, justa ou injustamente, fez oposição acirrada aos governos do PT.
Se o PT quiser ajudar a construir uma unidade na esquerda, precisa ouvir críticas. O PT aprendeu a engolir muito sapo ao longo dos últimos anos. Teve que fazer aliança com o que existe de mais podre na direita, e a sociedade entendeu que várias dessas alianças eram necessárias para a governabilidade, tanto que votou no PT e o PT governou o país por 13 anos. A mesma tolerância e espírito aberto que a direção do PT exigiu de seus militantes, para entenderem alianças estranhas mas pontualmente necessárias para governar o país, deve ser usada agora para ouvir críticas de setores da esquerda amargurados com o momento tão difícil vivido pelo país.
Sem unidade popular, não há esperança para nenhuma reconstrução da esquerda. A rixa entre PSOL e PT tem de acabar.
E o papel mais difícil, a postura mais humilde, por ter sido governo, por ser uma legenda muito maior, cabe ao PT. O PSOL saiu de sua infância quando seus principais dirigentes apoiaram Dilma no segundo turno de 2014, e quando foram para a linha de frente na luta contra o golpe. Essas críticas, além disso, não vem apenas do PSOL, vem da esquerda social, que é grande e que voltará a governar o Brasil antes do que a direita imagina, porque os problemas estruturais do país estão além do alcance de sua visão egoísta.
O capital político conquistado por Freixo nas eleições deste ano, não apenas no Rio, mas no Brasil todo, não pertencem apenas a Freixo, nem apenas ao PSOL; pertence à toda a esquerda, e, portanto, não pode ser jogado fora por incompreensão, impaciência ou sectarismo.
Se o PT quiser renascer como grande legenda de esquerda, precisa ouvir as críticas, mesmo as injustas, com serenidade, porque todas serão oportunidade para que o partido se reinvente.