(Foto: Henry Milleo, no site da Tribuna do Paraná).
Arpeggio – 28/10/2016
Por Miguel do Rosário
O voto de Luiz Fux, na votação de ontem sobre o direito de greve do funcionalismo público, não deixou dúvidas de que os ministros aderiram ao golpe de maneira muito consciente e determinada. Fux não escondeu o raciocínio: “na atual situação do Brasil, muitas greves virão. Estamos aqui para evitar que o Brasil pare”.
É uma dessas frases lapidares, de altíssimo valor histórico, similar ao “às favas com os escrúpulos”, de Jarbas Passarinho, e ao “primeiro fazemos o bolo crescer, para depois dividirmos”, de Delfim Netto.
Fux admitiu que o STF prejudicou o direito de greve do funcionalismo público com objetivo explícito de enfraquecer a força política dos setores mais organizados da classe trabalhadora, todos em luta contra o processo de retirada de direitos inaugurado pelo golpe.
Sou crítico à greve do funcionalismo público. Assim como sou crítico a muitos clichês esquerdistas que eu considero simplesmente formulações mal feitas.
Entretanto, a questão da greve no serviço público era uma coisa que já vinha sendo discutida no legislativo, com debates abertos e transparentes. Na verdade, a Constituição Brasileira já permite que o judiciário corte o salário de grevistas em alguns casos, e há várias regras, distintas para as diferentes categorias, que devem ser seguidas pelos servidores, de maneira a preservar o direito do cidadão ao atendimento.
A decisão do STF é uma demonstração de autoritarismo, como quase tudo que tem vindo de lá.
Recentemente, Ricardo Lewandowski disse numa palestra que o século XXI seria o século do judiciário, assim como o século XIX teria sido do legislativo e o século XX do executivo. O Nassif fez uma crítica e Lewansowski ligou para o blogueiro para explicar sua posição.
O ministro Luis Roberto Barroso seguramente deve concordar com Lewandowski, pois também tem rodado os salões repetindo uma coisa parecida, o de que o STF representaria uma espécie de vanguarda.
A frase de Lewandowski é uma estupidez, um lugar comum idiota.
Aconteceu alguma coisa muito grave no Brasil. Jogaram algum tipo de tóxico na água bebida por nossa casta jurídica, que faz com que até mesmo os seus representantes mais ilustres se deteriorem intelectual e moralmente,
Se há algum sentido falar em século do judiciário seria para criticar profundamente essa aberração, e não festejá-la.
Quando se fala que o século XX foi do Executivo, por exemplo, o sentido moral a ser extraído de tal afirmação não deveria ser sob a forma de uma profunda crítica a um modelo que produziu os maiores massacres da história da humanidade?
Se o século do Legislativo testemunhou, no auge da revolução industrial, a mais desumana e brutal exploração da mão-de-obra, e o século do Executivo foi um tempo de ditaduras e guerras, o século do Judiciário caminha para se tornar uma era de golpes brancos, autoritarismo disfarçado e Estado policial.
Lewandowski é outra decepção. Ele é a prova viva de que não adianta apenas, para um presidente da república, indicar ministros do Supremo. Por melhores que eles sejam, e por mais garantias que possuam, eles permanecem vulneráveis às investidas da mídia. De uma forma ou outra, todos são cooptados e corrompidos. Os vaidosos ganham prêmios. Os tímidos são intimidados. Os corruptos são comprados.
Evidentemente, é muito mais barato para as elites cooptarem alguns ministros do que seu candidato obter mais de 54 milhões de votos.
O governo teria de indicar ministros, mas investir também num sistema de comunicação que não os abandonassem no meio da floresta, cercados pelas bestas-fera da mídia, que é o principal partido político da direita brasileira. Não basta indicar ministros. É preciso protegê-los da cooptação midiática.
O direito de greve do funcionalismo público deveria ser regulamentado via congresso nacional, através de um debate com representantes das categorias. Com sua decisão, o STF não apenas promoveu um retrocesso no campo dos direitos sociais, que prejudicará os pequenos servidores na base da pirâmide do serviço público. Ele também deixou claro que, para o golpe, interessa apenas o atendimento aos interesses da pequena casta de nababos encastelada na sua pontinha superior.
Ainda ontem, uma comissão no Congresso aprovou um projeto de medidas enviado pelo próprio governo que dará, entre outras coisas, em plena crise fiscal, aumento de 37% aos delegados de polícia federal.
A conta do golpe está sendo paga às custas do sacrifício da imensa maioria da população brasileira. Uma casta jurídica se descolou completamente do interesse da população, agora vista como um inimigo a ser combatido. Mas os seus interesses de casta, eles sim, estão sendo atendidos.
Nesse contexto de direito penal do inimigo, ainda vemos a atual presidenta do STF, ministra Carmen Lucia, convocando reunião para discutir segurança pública com agentes do exército.
José Serra é mencionado numa delação da Odebrecht de ter recebido caixa 2 numa conta da Suíça. Para a imprensa, porém, não vem ao caso. O que importa são os pedalinhos de Lula sobre os quais não pairam nenhuma prova de que foram comprados com dinheiro sujo.
Na Carta Capital, a matéria de capa repercute furo do Cafezinho sobre a nova política de publicidade federal do governo Temer: às corporações de mídia, tudo; aos outros nada.
O golpe é uma noite sem estrelas.
No meio de um breu tão absoluto, a luta dos estudantes das escolas públicas contra as reformas autoritárias do governo Temer emerge como um facho tão brilhante que, por um segundo, pareceu iluminar o país inteiro.
O que foi possível enxergar durante este segundo, tão rápido quanto um relâmpago, não foi o presente, ainda imerso nas sombras da truculência de nossas elites.
Pudemos enxergar, no entanto, um pouco do nosso futuro. Vimos as novas gerações determinadas a resistir pelo tempo que for preciso até recuperar seus direitos, sua esperança e a soberania de todos.
O discurso de Ana Julia despertou um espírito novo.
Num país dominado por traidores e covardes, no estado onde se desenvolveu a casta jurídica mais truculenta, elitista e parcial, nasceu uma delicada e poderosa flor.
Na voz de uma frágil e sensível menina de dezesseis anos, o Brasil voltou a reconhecer a si mesmo. Não somos os brutucus de camisa verde e amarela manipulados pela Globo. Não somos os violentos que xingam adversários políticos em hospital.
O Brasil é uma democracia adolescente, frágil, que precisa lutar contra todos os poderosos do mundo para se consolidar, e que, neste processo de luta, assim como Ana Julia, aprenderá o que é política, cidadania e liberdade.
Finalmente, o monstro golpista, com seus juízes, delegados, promotores, barões de mídia, com seus aliados no imperialismo, encontrou uma força maior do que ele: uma menina que luta.
O golpe, dominado por velhos, homens, brancos, ricos, truculentos, cretinos, ignorantes, encontrou, em Ana Julia, o seu pior adversário: ultrajovem, mulher, mestiça, simples, inteligente, culta, sensível.
Na voz de Ana Julia, vislumbramos a nossa vitória.