por Mariana T. Noviello
Algumas semanas atrás, Lula, em carta à Folha de SP, disse que o caça às bruxas não era contra ele, mas contra o tipo de projeto que ele representa para o Brasil. Muitos vêm advertindo o mesmo, e nós brasileiros deveríamos prestar mais atenção sobre o que isso quer dizer.
A tentativa de destruição total, não só de uma pessoa, mas de todo um partido e de suas políticas, e o esforço imenso que tudo isso requer, só pode ser empreendido em nome de uma ideia maior, de uma ideologia.
Sim, ideologia, palavra que se aplica a projetos de esquerda, quando se quer dizer que seus conceitos são irreais, ou mesmo até surreais.
Pois se a direita é boa em alguma coisa, ela é boa em fazer prevalecer os seus conceitos, fazer que suas ideologias passem por verdade científica.
Tanto é que, com eles, não há debate, principalmente no Brasil. Há quanto tempo ouvimos falar que a economia só pode ser gerida de uma única maneira, envolvendo o corte de gastos sociais, diminuindo o tamanho do Estado, chamando investidores internacionais para alavancar a sua credibilidade, privatizações e políticas monetárias administradas por bancos centrais independentes?
E o mais incompreensível de tudo isso é a virulência contra os governos do PT, que nunca promoveram mais do que uma social democracia light, bondosa com os donos do poder, amiga de rentistas e industrialistas nacionais.
Acontece que, apesar da virulência, mesmo aqueles que advogam a favor desse modelo hegemônico sabem que o neoliberalismo não é – e nunca foi – a panaceia vendida ao mundo.
Enquanto aqueles que se apossaram do governo brasileiro seguem essa cartilha, tendo a cara de pau de bradar no estrangeiro que a derrocada do governo Dilma se deu por questões econômicas (vide Temer em Nova Iorque), os seus implantadores e inventores (FMI, Banco Mundial, os governos das nações chamadas desenvolvidas, etc.) lançam inúmeros relatórios mostrando que este modelo não funcionou, apesar da esquizofrênica conduta dos seus consultores que ainda referendam soluções, como as propostas deste (des)Governo.
Mas nos países chamados desenvolvidos, até naqueles administrados por conservadores, se começa a perceber os grandes estragos. Vou me ater ao Reino Unido, pais que conheço melhor e cujas políticas são copiadas mundo afora.
Depois da pílula amarga do Thatcherismo, Tony Blair foi eleito primeiro ministro advogando a terceira via: com a caída do muro de Berlim e o fracasso do comunismo não haveria mais necessidade da divisão entre esquerda e direita. Não importava mais quem prestasse os serviços, o Estado ou o privado, conquanto que estes fossem ‘eficientes’. Apelou-se à tecnicidade e o papel da política foi restringido: “Fazendo o que funcionasse melhor”. Assim, não haveria mais necessidade de ideologia, dizia esta ideologia.
Enquanto isso, a teoria da escolha pública argumentava que a concorrência era necessária para a eficiência porque, do contrário, teríamos um monopólio e não haveria incentivos para melhorias. Portanto, se o Estado se sentisse ameaçado pelo setor privado, ele teria que ser mais eficiente ou perderia ‘contratos’ para a iniciativa privada.
Assim, fosse qual fosse o resultado, o cidadão, agora em sua nova roupagem de cliente, (ator econômico racional, homo economicus por natureza) seria ‘rei’. Na prática, o que vimos foi a penetração ainda maior da iniciativa privada na esfera pública.
Descrevo aqui apenas algumas das mais gritantes consequências deste mantra hegemônico:
– Pelo menos nos países desenvolvidos, onde as taxas de juros são baixas, o empréstimo governamental sai mais barato do que concessões às empresas privadas. E o sagrado ‘custo benefício’ – razão mor das privatizações e concessões – é deixado de lado, enquanto encontram-se novas justificativas para estas práticas;
– As regras de concessão e privatização se tornam cada vez mais complexas: regras contratuais, de leilões, a maior atuação das agências regulatórias, multas e novas leis para ‘controlar’ a ação do mercado e assegurar que a iniciativa privada atue em prol da sociedade e não somente de seus acionistas. Em outras palavras, é essencial ‘corrigir o mercado’ se queremos obter resultados sociais;
– Setores oligopolistas substituem os monopólios públicos. Por exemplo, grande parte das concessões do setor público britânico estão nas mãos de apenas quatro empresas (Serco, Capita, Atos e G4S). Isso porque só um número limitado de empresas tem o tamanho e a capacidade necessários para participar das concessões governamentais.
Fica a pergunta: são estas oligarquias mais eficientes que os monopólios governamentais? Valeu a pena transferir o know-how público e quebrar toda a estrutura social, perder empregos de qualidade, para alavancar o lucro de algumas empresas privadas? O que nos leva ao próximo ponto;
– A perda do conhecimento nacional. O Reino Unido hoje sobrevive da prestação e venda de serviços e de alguma tecnologia de ponta, mas perdeu quase toda sua base industrial.
Assim, na fase pós-neoliberal, o país que inventou a revolução industrial luta para reativar suas indústrias – projeto favorito do Conservador George Osborne que quando Ministro das Finanças passava seu tempo de capacete visitando fábricas no norte da Inglaterra (quem dera Meireles fizesse o mesmo em vez de inventar PECs desastrosas…);
Vejamos também o problema do fechamento da siderúrgica da multinacional indiana Tata e a preocupação do governo (Conservador) com a manutenção deste minguante ‘setor estratégico’. Isto é, o governo se preocupa em preservar pelo menos uma parcela mínima da indústria no país e não perder o know-how (e o acesso militar estratégico) e os empregos que este setor ainda gera;
– A destruição da base social trabalhista, com o enfraquecimento de sindicatos, o desmantelamento das indústrias pesadas, a quebra do serviço público, a perda de direitos trabalhistas e o crescimento da insegurança no trabalho. Esta foi a intenção: o governo Thatcher quebrou a espinha dorsal dos sindicatos. O problema é que, trinta anos depois, o país está sentindo os efeitos nocivos desta reestruturação que retirou o poder conquistado a duras penas das mãos dos trabalhadores para devolvê-lo ao capital.
O resultado? Apesar de inúmeros projetos para revitalizar as áreas pós-industriais, enchendo-as de infraestrutura nova, a criação de empregos não foi adequada nem em termos quantitativos, nem qualitativos para compensar a perda dos gigantes complexos industriais, produzindo uma população alienada, desinteressada e descrente na política;
E nós no Brasil fomos usurpados e roubados da nossa democracia para assistir à implantação destas políticas ultrapassadas.
Como num filme de zumbis, os cadáveres enterrados em 2002 saem de suas covas para tomar conta da sociedade. Suas mentes, despidas de inteligência, são acionadas por comandos antiquados, vindos de outros mundos.
Estes zumbis brancos, de cabelos brancos, veneram o Deus Mercado: “Ajudem-nos, ó Investidores, que não queremos reinventar a roda… depositaremos em vossos altares nossas oferendas – pré-sais e elétricas, inúmeras concessões de infraestrutura…”
Ora, o Deus Mercado, antiquado ou não, não vai recusar. Não vai dizer aos nossos comandantes-comandados Mortos-Vivos: “Senhores, as nossas soluções são boas… mas só para nós mesmos. Sim, para nós investidores, acionistas, donos de private equity e fundos de pensões estrangeiros… Não são boas para o seu país…”
Portanto, não se surpreendam se o Mercado se mostrar contente com Temer Presidente. Se as ações da Petrobrás, que quase chegaram ao fundo do poço, subam vertiginosamente ante as privatizações e inúmeras concessões que estão por vir. O que é bom para eles, não é bom para nós.
E o que dizer da PEC 241?
A PEC 241 não é somente a submissão à conceitos ultrapassados como os descritos acima. Para começar, em termos econômicos ortodoxos, a percentagem que se ‘economiza’ congelando os gastos públicos afetados pela PEC não justificam sua aprovação, já que há outros gastos maiores no orçamento do governo.
Segundo, mesmo se aceitássemos a premissa de cortes dos gastos sociais, o prazo determinado não é em nada razoável. Num mundo instável, onde tudo está cada vez mais imprevisível, como podem querer congelar qualquer coisa por vinte anos?
Governos existem para administrar um país em benefício da sociedade e como pode uma sociedade querer congelar por tanto tempo gastos que melhoram e determinam o seu futuro? Em outras palavras, para que arrecadar impostos se não vão ser utilizados com o bem-estar da população?
Além do que, o fórum decisório é a esfera política, a economia deveria ser um mero instrumento para administrar recursos, portanto, seria correto acreditar que, caso a economia voltasse a melhorar, poderíamos gastar mais com o social, coisa que vinte anos de congelamento não permitiria.
Portanto, esta PEC não se justifica. A não ser que… se queira privatizar ainda mais a já privatizada educação e saúde brasileira, o que não deveria surpreender ninguém.
Só com a privatização, ou concessões ao setor privado, seria possível aumentar os gastos em educação e saúde sem que estes entrem para as contas do governo. Talvez a PEC 241 não seja mais do que uma maneira de privatizar (ainda mais) o Estado brasileiro, através de políticas públicas antiquadas.
Seja qual for o raciocínio por trás da PEC 241 – extrema maldade e irracionalidade, ou uma ideologia ultrapassada – ela representa o abuso do poder, que só pode ser praticado por um governo ilegítimo, com a conivência de um congresso clientelista que sabe que a eleição da maioria de seus membros em nada tem a ver com o bem do país.